terça-feira, 19 de março de 2013

Chipre -- mais uma mancada da troika, para desgraça da União Europeia

O confisco bancário que a troika da União Europeia (UE) -- Banco Central Europeu (BCE), Comunidade Europeia (CE) e Fundo Monetário Internacional (FMI) -- propôs (leia-se impôs) para Chipre, como condição para conceder-lhe um resgate financeiro, é dessas medidas tão ridícula e tragicamente absurdas, que é extremamente difícil acreditar que a economia e o futuro dos 27 países da UE e de seus milhões de habitantes estejam à mercê das cabeças de bagre que pariram essa solução!

Nada se salva nesse tratatamento dado a Chipre:
  • se o tamanho da economia de Chipre (0,2% do PIB da zona do euro) levou os gênios da troika a achar que podiam pintar e bordar com ela e com os correntistas do sistema bancário cipriota, isso revela ao mesmo tempo uma miopia burra e uma insensibilidade criminosa;
  • numa região assolada, fragilizada e insegura pela crise existente, mexer nos sagrados depósitos bancários de pessoas e empresas é acender um fósforo para examinar o nível da gasolina que um caminhão-tanque carrega;
  • o recado que a troika deu em Chipre foi que a crise não é só recessão, aumento de impostos e desemprego -- agora pode incluir também confisco bancário, coisa impensável para os europeus. Dá para imaginar o que passa pela cabeça de portugueses, espanhóis, italianos, irlandeses, ...
A prestigiosa revista inglesa The Economist vem publicando uma série de artigos precisos, criticando acerbamente o plano da troika para Chipre. Um deles chamou o acordo de desleal, míope e autodestrutivo. Escolhi como referência, aleatoriamente, um publicado no dia 17 e assinado por Buttonwood (certamente um trocadilho com Bretton Woods). Nesse texto, o autor diz que um ex-colega seu que sabe das coisas lhe dissera no início da crise na eurozona: "Os poupadores pagarão pela bagunça -- eles são os únicos que ficaram com algum dinheiro". Com o anúncio do plano para Chipre, esse cara acertou na mosca.

O autor diz, ironicamente creio eu, que se tem certa simpatia com aqueles que tentam organizar um resgate para um país no qual o setor bancário é várias vezes maior que seu PIB -- no final de 2010, a dívida bancária cipriota valia cerca de nove vezes o PIB do país. Diferentemente de Luxemburgo, cujo setor bancário é cerca de 20 vezes o PIB do país mas é composto quase totalmente de bancos estrangeiros, a banca cipriota tem dois terços de seus ativos nas mãos de bancos domésticos. Além disso, mesmo excluindo-se as instituições financeiras, Chipre tem a segunda relação dívida do setor privado/PIB da zona do euro.  [O impressionante e incompreensível é que nada disso era secreto, isso era visível inclusive para a troika que, como nos demais casos de resgate, se omitiu quanto a providências preventivas e só se mexeu quando o problema já estava consolidado.

Outra "peculiaridade" do sistema financeiro de Chipre é que boa parte do dinheiro nele depositado é de russos, que usam os bancos cipriotas como um paraíso fiscal -- dos 70 bilhões de euros depositados em contas cipriotas cerca de 20 bilhões seriam de dinheiro russo, segundo a agência oficial Itar-Tass, que cita uma fonte da Comissão Europeia. O presidente da Rússia, Vladimir Putin, reclamou muito e chamou o resgate cipriota de "perigoso, injusto e amador", mas informou que ajudará o país se for informado sobre os investimentos russos ali existentes.]

Quando o setor bancário é tão grande, o governo doméstico não tem como garantí-lo, nem se garantir contra ele -- a Islândia precisou de um empréstimo do FMI, a Irlanda recorreu à UE. Nesse processo, uma parcela da dívida será considerada perdida/cancelada, mas esta é a parte complicada e matreira da história -- quem pagará isso? Se você cancelar dívida devida a bancos domésticos, você depois terá que socorrê-los. Se você cancelar depósitos não segurados haverá um efeito contagiante, pois depositantes não segurados em outros países ficarão extremamente assustados. E se você cancelar dívida devida a credores oficiais, isso cobrará um preço em termos de austeridade -- esse preço, no curto prazo, causará danos à economia e o eleitorado se sentirá ofendido.

Esse problema está associado ao risco moral, e isto pode ser aplicado tanto aos credores quanto aos devedores -- os primeiros devem ser punidos por fazerem empréstimos temerários, e os segundos por viverem acima de suas possibilidades. O colapso do Lehman Brothers é visto como um exemplo de raciocínio equivocado por trás do risco moral -- ao se deixar o banco quebrar, a crise se espalhou pelo sistema financeiro. Mas, o ato de salvar cada credor (ou de intervir para resgatar os mercados cada vez que eles cambaleiam) é a razão pela qual estamos nessa confusão.

O melhor momento para as autoridades aplicarem a lição do risco moral é quando a economia vai bem. Mas, nesse instante as instituições financeiras não irão explodir. Olhando em retrospectiva, a oportunidade foi perdida quando o Long-Term Capital Management quebrou em 1998, mas naquela hora todo mundo estava preocupado com a crise asiática.

Como Chipre é pequeno, acrescentar sua dívida à das nações mais fortes da UE não fará tanta diferença. Mas, como um todo, a economia da zona do euro simplesmente não está crescendo -- a previsão de consenso é de uma queda de 0,2% no PIB este ano. Se olharmos para a trindade profana de opções disponíveis para as nações endividadas -- inflacionar, estagnar, não pagar -- fica-se com a impressão de que a UE, assim como o Japão, está optando pela segunda delas.  [Acho o texto um tanto contraditório nestes dois parágrafos finais, principalmente no primeiro. Apesar do rombo quantitativo ser pequeno, o efeito moral do confisco bancário cipriota no seio da UE é extremamente  desastroso. Além disso, o peso negativo do default cipriota na economia da zona do euro é igual ao declínio do PIB da zona para este ano ou seja, um default cipriota duplicaria a queda do PIB da eurozona.]

2 comentários:

  1. Amigo VASCO:
    Em outra oportunidades, já comentei sobre essa questão da MOEDA ÚNICA.
    Em minha opinião, não dá para haver moeda única com diversidade
    de países, cada um sob uma orientação política, e que, ao longo de muitos anos estabeleceu seus VALORES para os BENS e SERVIÇOS que necessitam, e que podem ser negociados. Daí o CÂMBIO.
    Essa artificialidade da moeda única é a única responsável por essas e outras situações econômicas da Zona do Euro que ainda veremos.
    Infelizmente, eu não vejo uma possibilidade de reverter esse processo de unificação europeia, que mais mal tem causado do que bem.

    Abraços - LEVY

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  2. Eis um excelente quadro econômico pintado com requintes de precisão, até mesmo pelas contradições identificadas, como sublinha o final do texto. Deixa claríssimo que uma pseudo plêiade de economistas (UE/BCE/CE/FMI) consegue com certa facilidade dar um tiro de canhão nos dois (nos quatro) pés.Decididamnete, esse mundo globalizado tornado exclusivamente econômico, onde manda e desmanda a economia com todo seu vigor, precisa encontrar uma outra ciência que o governe sem rédeas. Esses janotas idiotas, que andam mundo afora ditando regras, NÃO DÃO CONTA DO RECADO! Recebam meus desrespeitos.

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