A Dassault, fabricante do caça francês Rafale, chegou a admitir a interrupção da fabricação desse avião militar caso não conseguisse vendê-lo no exterior -- a força aérea francesa é, até hoje, a única a utilizá-lo. Suas esperanças eram, até dezembro passado, as concorrências das forças aéreas da Índia e do Brasil (a nossa já foi adiada duas vezes).
Para alívio dos franceses, o Rafale foi o escolhido pela força aérea indiana, num contrato inicialmente estimado em US$ 10,4 bilhões [fontes francesas falam em US$ 12 bilhões] mas que, admite-se, poderá chegar a um valor entre US$16 e US$ 18 bilhões. A polêmica agora, na França, é a cláusula de transferência de tecnologia que, juntamente com o valor da oferta francesa, foi capital para a vitória do Rafale -- a Índia fabricará em Bangalore 108 dos 126 aviões encomendados -- conforme reportagem de sexta-feira do jornal Le Monde.
A questão não é somente econômica, mas eminentemente política. O contrato de venda dos Rafales da Dassault à força aérea indiana ainda nem foi assinado e a questão da transferência de tecnologia -- uma das cláusulas desse documento -- preocupa, principalmente a esquerda francesa.
"Essa transferência (...) gerará a criação de concorrentes em um país que não é mais do terceiro mundo, mas sim um país emergente considerável", avaliava no dia 31 de janeiro Paul Quilès, ex-ministro socialista da Defesa. Por sua parte, Jean-Yves Le Drian, responsável pela Defesa na equipe de François Hollande, candidato presidencial socialista, solicitava "um exame atento" das cláusulas contratuais a esse respeito.
A direita francesa, ao contrário, louva a exportação da expertise francesa. "Com esse importante contrato de exportação, é o know-how de nosso país que é honrado, já que o Rafale concentra numerosas tecnologias situadas entre as mais sofisticadas", rejubilava-se na terça-feira o presidente da Assembleia Nacional, Bernard Accoyer. Nenhuma preocupação também por parte do ministro da Defesa, Gérard Longuet, para quem essa cláusula do contrato é "natural".
A questão da transferência de tecnologia específica do Rafale -- que envolve conhecimento, técnica e know-how -- se coloca de maneira mais sensível porque é a primeira vez que o avião emblemático da indústria bélica francesa é exportado. Mas, como os detalhes do contrato não estão ainda concluídos, é difícil no momento ter-se uma ideia da amplitude dessa transferência.
A única certeza, explicitada no contrato, é que tanto a produção como a manutenção atingiriam, segundo uma fonte do ministério da Defesa indiano, a cifra de US$ 12 bilhões (9 bilhões de euros). A empresa líder da aeronáutica indiana, HAL - Hindustan Aeronautics Ltd, fabricará sob licença, em Bangalore, 108 dos 126 aviões contratados.
Entretanto, há pouca chance de que a transferência de tecnologia seja proporcional à porcentagem de fabricação local. "Não se sabe ainda a extensão dos conhecimentos [a serem] transmitidos. Tudo depende do que é montado ou fabricado localmente. Mas, é evidente que todo país que tem forças armadas não quer tornar acessíveis as técnicas específicas para sua própria defesa", avalia Didier Adda, consultor para propriedade industrial na TPC - Technologies Partenaires Conseils.
"Se se trata apenas de montar peças isoladas, a transferência de tecnologia é baixa", diz ele. Para ele, "essa venda permitirá à Dassault estimular trabalhos de pesquisa e desenvolvimento para a nova geração do Rafale, e aos indianos a aquisição de novas competências. Além disso, os países emergentes não assinam senão contratos que incluam transferência de tecnologia".
A manutenção, um tema estratégico
Quando da compra, em 2009, de quatro submarinos do grupo naval francês DCNS, o Brasil exigiu também transferências de tecnologia importantes, principalmente no que se refere à fabricação. Várias dezenas de brasileiros que trabalham nessa área vieram desde então se formar em Lorient, em uma escola criada para esse objetivo.
O ponto chave é saber até que limite vai a formação [profissional], e qual o limite a não ser ultrapassado em matéria de transferência de know-how, sobretudo naquilo que ainda está em fase de desenvolvimento. A questão é que os países compradores têm bom gosto e sabem o que querem: a título de exemplo, a fabricante de aviões americana Boeing teve que prometer aos brasileiros, compradores de seus aviões, a montagem integral de seus aparelhos no país. [Nunca soube disso, e se essa promessa porventura existiu jamais foi cumprida -- acho que o Le Monde (ou o Brasil ...) comeu gato por lebre.]
O ponto nevrálgico está no tema da manutenção dos aparelhos vendidos, prevista no contrato. Se a manutenção dos Rafales ficar com a França, isto permitirá à Dassault manter o controle da fabricação e da melhoria tecnologia das peças. Ao contrário, se a manutenção for delegada à Índia ela incluirá um termo de transferência de tecnologia muito mais importante.
Entretanto, mesmo se fosse o caso, "os indianos não estão ainda prontos para competir com a França no setor aeronáutico", avalia Didier Adda, que acrescenta que "pode ser que estejam em algumas décadas". [Já estou achando esse consultor meio fracote demais, ele surpreendentemente parece desconhecer, por exemplo, a capacidade tecnológica e industrial da Índia no setor aeroespacial, no qual exatamente a HAL que fabricará os Rafales para os indianos desempenha papel chave.] - Esta é uma estimativa suficientemente longa para dar tempo à Dassault de consolidar sua liderança sobre países prontos a aprender, mas que necessitam ainda de dezenas de anos de progresso em pesquisa e desenvolvimento para isso.
[Esse contrato com a Índia é a tábua de salvação de que a Dassault necessitava desesperadamente para não interromper a fabricação do Rafale, e tem ainda o importantíssimo resultado de permitir à França e à sua indústria aeronáutica bélica de se posicionar num país (Índia) e numa região (Ásia) de extrema importância estratégica no cenário mundial. Isso inevitavelmente dará um calor adicional às já complicadas relações entre indianos e chineses, e poderá até dar um empurrãozinho importante à periclitante reeleição de Sarkozy na França.
Outro efeito colateral possivelmente positivo para a Dassault seria o fortalecimento da posição do Rafale na concorrência da FAB -- por enquanto adiada p'ras calendas gregas --, desde que a transferência de tecnologia acordada com a Índia seja plenamente compatível com o que pleiteia o Brasil nesse campo.]
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