quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Um tango de 1934 (Cambalache) tem letra tão atual que poderia ser o hino dos governos dos últimos 12,7 anos





Depois que postei na minha página do Facebook (Vasco Costa) a gravação do tango Cambalache, cantado por Adriana Varela, recebi por emails pedidos sobre a tradução da sua letra. Aí vai ela. Observem que, mesmo depois de 81 anos, a letra é tão atual e tão coerente com o que vem nos acontecendo nos últimos 12,7 anos que poderia tranquila e perfeitamente transformar-se no hino dos (des)governos desse período.

A letra em espanhol:




Cambalache

(Tango, Enrique Santos Discépolo, 1934, composto para o filme "A alma do bandoneón")

Que el mundo fue y será una porquería, ya lo sé,
en el quinientos seis y en el dos mil también;
que siempre ha habido chorros,
 maquiavelos y estafáos,
contentos y amargaos, barones y dublé.
Pero que el siglo veinte es un despliegue
 de maldad insolente 
ya no hay quien lo niegue,
vivimos revolcaos en un merenguey en un mismo lodo todos manoseaos.


Hoy resulta que es lo mismo ser derecho que traidor,ignorante, sabio, chorro, generoso, estafador.¡

Todo es igual, nada es mejor,
lo mismo un burro que un gran profesor!
No hay aplazaos ni escalafón,los inmorales nos han igualao...
Si uno vive en la impostura y otro roba en su ambición,
da lo mismo que sea cura,colchonero, rey de bastos,
 caradura o polizón.

¡

Qué falta de respeto, qué atropello a la razón!¡
Cualquiera es un señor, cualquiera es un ladrón!
Mezclaos con Stavisky van don Bosco y la Mignon,don Chicho y Napoleón, Carnera y San Martín.
Igual que en la vidriera irrespetuosade los cambalaches se ha mezclao la vida,
y herida por un sable sin remache ves llorar la Biblia contra un calefón.


Siglo veinte, cambalache, problemático y febril,
el que no llora no mama y el que no afana es un gil.¡

Dale no más, dale que va,que allá en el horno nos vamos a encontrar!¡
No pienses más, siéntate a un lao,
que a nadie importa si naciste honrao!
Es lo mismo el que laburanoche y día como un buey
que el que vive de los otros,
que el que mata que el que cura o está fuera de la ley

A versão em português (a tradução feita não teve nenhuma preocupação com métrica ou rima):


Brechó [1]

Que o mundo foi e será uma porcaria, eu já sei
em 506 e no 2.000 também;
que sempre houve ladrões, maquiavéis e vigaristas,
felizes e amargos, autênticos e imitações.
Mas que o século 20 é um alarde
de maldade insolente não há quem o negue,
vivemos envoltos em uma desordem
e em um mesmo lodo todos manipulados.

Hoje resulta que dá no mesmo ser direito ou traidor,
ignorante, sábio, ladrão, generoso, vigarista.
Tudo é igual, nada é melhor,
dá no mesmo um burro e um grande professor!
Não há reprovados nem hierarquia,
os imorais nos igualaram …
Se alguém vive na impostura
e outro rouba em sua ambição,
dá no mesmo que seja padre,
fabricante de colchões, rei de paus,
caradura ou clandestino.

Que falta de respeito, que atropelo à razão!
Qualquer um é um senhor, qualquer um é um ladrão!
Mesclados com Stavisky [2] vão Dom Bosco [3] e a Mignon [4],
Don Chicho [5] e Napoleão, Carnera [6] e San Martín [7].

Como na vitrine desrespeitosa dos brechós se mesclou a vida,
E ferida por um gancho vês chorar a Bíblia junto a um aquecedor [de água].
Século vinte, brechó, problemático e febril.
Quem não chora não mama, quem não rouba é um idiota!
Chega, não mais, que lá no forno [inferno] vamos nos encontrar!
Não penses mais, senta-te de um lado,
Que a ninguém importa se nascestes honrado!
Se é o mesmo o que trabalha noite e dia como um boi
que o que vive dos outros
que o que mata, que o que cura ou está fora da lei.


[1] Brechó – “cambalache“ em espanhol pode ser também escambo [negociação com troca de mercadorias, sem envolvimento de dinheiro de nenhuma espécie] de coisas de baixo valor com o intuito de ludibriar. Aqui neste tango é usado com o significado de “brechó” (como comprova o verso “como nas vitrines desrespeitosas dos brechós ...”), certamente no sentido de comércio de coisas velhas e/ou usadas, nem sempre de valor garantido ou evidente. Mas, em outros trechos me parece aplicar-se também tanto o sentido de escambo (com intuito de trapacear), como o de cambalacho (negócio feito com o intuito de trapacear, de fraudar a outra parte).
[2] (Alexander) Stavisky – um trapaceiro ucraniano de altos voos, um empresário que em 1933/34 na França subornava políticos (conservadores, liberais e socialistas), burgueses e policiais.
[3] Dom Bosco – sacerdote italiano fundador da ordem dos Salesianos, santificado pelo papa Pio XI em 1934.
[5] Don Chicho -- apelido do chefe da máfia argentina Juan Galiffi, detido  e processado em 1932.
[6] Carnera (Primo Carnera) -- pugilista italiano, campeão mundial dos pesos-pesados no biênio 1933/34.
[7] San Martín (José Francisco de San Martín y Matorras) -- general sul-americano cujas campanhas militares foram decisivas para a independência de Argentina, Chile e Peru.

Os versos mais controvertidos da letra de Cambalache são os que dizem:
"... y herida por un sable sin remache [e ferida por um gancho]
ves llorar la Bíblia junto a un calefón" [vês chorar a Bíblia junto a um aquecedor (de água)]

Traduzo a seguir a explicação para esses versos dada no site La Gazeta, da Argentina.

"Esses versos contrastam um livro de grande valor religioso com um artefato mundano e essa expressão já foi utilizada em muitas outras coisas. Por exemplo, para intitular um programa (Jorge Guinzburg) ou um tema discográfico (Joaquín Sabina). Talvez o autor [Discépolo] em seu enfoque do "século vinte problemático e febril", no qual "tudo é igual, nada é melhor" quis juntar Deus (a Bíblia) com o diabo (o aquecedor, gerador de calor e de fogo) e daí conclua com a profecia "... que lá no forno nos vamos encontrar". Não deixa de ser uma possibilidade.

Mas, uma análise desde outro ponto de vista -- resgatada de arquivos -- revela um costume antigo, que junta os dois elementos daqueles versos emblemáticos. Se se trata de algo real, demonstrável ou crível, não se encontra a respeito explicação fidedigna entre os muitos escribas, literatos e intelectualóides que dizem estudar o tango.

(...) Um autor anônimo começa advertindo: "A história tem relação com os banheiros, a higiene pessoal e a forma de fazê-la naquela época, que hoje muita gente -- especialmente os jovens --  pode não ter conhecido, por conta dos banheiros existentes atualmente, pelo menos no mundo ocidental e cristão.


"Os banheiros atuais, que costumam ser chamados de 'completos', incluem no mínimo vaso sanitário, lavabo, chuveiro e bidê. Até fins do século XIX se utilizavam pequenos urinóis (também chamadas de "taças noturnas"), cujos conteúdos eram atirados pelas janelas ao grito de "Aí vai água!". Antes, havia ainda latrinas, que costumavam ficar nos fundos das casas. [Ver "Banho, o berço da intimidade (III)".]


Em Buenos Aires -- prossegue o autor anônimo -- coexistiram esses recipientes e as latrinas até princípios do século XX, época em que as famílias abastadas começaram a instalar banheiros. Logo seu uso se generalizou em quase todas as habitações, inclusive nas modestas. O 'miniambiente' simples possuía pelo menos sanitário e lavabo. Se os luxuriosos donos das casas tinham o costume mouro de lavar-se de corpo inteiro de maneira mais ou menos seguida, sempre que dispusessem de meios econômicos para custear esse capricho, os banheiros tinham também um chuveiro. E, claro, se havia um chuveiro era preciso esquentar a água, assim se instalava um aquecedor ao lado do chuveiro.


Entretanto, segundo essa história singular, o papel higiênico demorou a ter sua carta de cidadania como artigo de limpeza. Quando surgiu, era muito caro e não estava ao alcance de todas as famílias. Então, as pessoas se viam obrigadas a usar para esses finssanitários o vulgar papel de jornal ou, na sua falta, qualquer outro. Era muito apreciado um papel que fosse mais sedoso; assim,os usuários sofridos tratavam de conseguir nas quitandas os papéis que embrulhavam as maçãs e outros produtos agrícolas. 


E aqui, aparece em cena a Bíblia. "Outro papel muito apreciado era o chamado "papel bíblia", especialmente fino e macio. Ora, já na época existia a Sociedade Bíblica, uma de cujas missões era difundir a bíblia protestante, ofertando para isso, grátis, exemplares do livro sagrado (obséquio que ainda hoje continua sendo praticado).


Como se fossem devotos fervorosos, muitos habitantes de Buenos Aires aceitavam essa gentileza e, ainda que fosse a maioria católica, passavam a apanhar a bíblia protestante que a Sociedade Bíblica oferecia nas ruas, nas praças ou em sua sede central. 


Entretanto, termina esta história, conta-se que quem obtinha essas bíblias protestantes não o faziam, em sua maioria, para lê-las. Eles furavam uma de suas capas e as penduravam em um gancho de arame, ao lado do aquecedor e perto do sanitário e iam arrancando suas folhas suaves para usá-las como papel higiênico". 'Sable sin remache' ['sabre sem rebite', em tradução livre direta] era precisamente o nome dado a um gancho no qual se pendurava o papel higiênico ao lado do sanitário. 


Nesse fato ter-se-ia inspirado Enrique Santos Discépolo para dizer com elegante suspeita, própria dos grandes, esta frase que deixou provocativa:

”Igual que en la vidriera irrespetuosa de los cambalaches
se ha mezclao la vida,
Y herida por un sable sin remache
ves llorar la Biblia junto a un calefón”.















2 comentários:

  1. Muito bom! O único que encontrei em português que falasse algo sobre a música. Obrigada!

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