Em 1 de setembro de 1983 um Boeing 747 sul-coreano, que pertencia a empresa Korean Airlines (KAL) foi derrubado por um caça soviético sobre a ilha de Sakhalin, localizada no extremo oriente russo, depois de ter se afastado de sua rota - o avião seguia do Aeroporto Internacional de Anchorage, no Alaska, para o Aeroporto de Gimpo, na Coréia do Sul. Os 269 passageiros e tripulantes morreram. Inicialmente, os soviéticos negavam o ataque, mas, cinco dias depois da derrubada, reconheceram a sua responsabilidade sob pressão internacional e depois de uma condenação do Conselho de Segurança das Nações Unidas. A União Soviética alegou que a aeronave estava em uma missão de espionagem. Esse foi um dos momentos mais tensos da Guerra Fria. Além disso, o incidente foi um dos motivos que levaram o governo de Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos à época, a permitir o acesso mundial ao sistema utilizado pelos norte-americanos, o GNSS - atualmente conhecido como GPS.
Em 2001, a Ucrânia admitiu que durante exercícios militares disparou contra um avião civil russo sobre o Mar Negro. Setenta e oito pessoas morreram.
O tratamento dado pelos EUA e pela UE (União Europeia) à anexação da Criméia pela Rússia -- questionável em termos -- nos reporta automaticamente à anexação do Texas e do Novo México pelos americanos, desmembrando-os do México. Não vejo atenuante no caso americano-mexicano que dê moral aos EUA para recriminar a Rússia pelo ocorrido com a Criméia.
Depois da derrubada do avião da Malaysia, teve início um jogo de empurra-empurra sobre os autores físicos e intelectuais da derrubada e o Ocidente, sob a batuta dos EUA, iniciou uma série de sanções econômicas contra a Rússia por sua anexação da Criméia e pelo apoio militar que estaria dando aos separatistas que provocaram aquela tragédia com o avião da Malaysia. Do ponto de vista estritamente geopolítico -- já que pelo lado humanitário, americanos , europeus e russos têm muito o que explicar -- o Ocidente aplicou à Rússia a mesma penalidade aplicada ou intentada à Síria, ao Irã e a Cuba. A semelhança de casos entre esses quatro países é zero. Peguemos os exemplos extremos, Síria e Cuba. Na Síria, a guerra civil já dura três anos e matou mais de 170 mil pessoas, um terço delas de civis, e as sanções não se concretizaram devido ao veto da Rússia e da China no Conselho de Segurança da ONU. O caso de Cuba é patético. O embargo dos Estados Unidos a esse país (descrito em Cuba como el bloqueo, termo em castelhano que, conforme as traduções oficiais em português, significa "embargo") é um embargo econômico, comercial e financeiro imposto a Cuba pelos Estados Unidos que se iniciou em 7 de Fevereiro de 1962 -- há 52 anos, portanto. Foi convertido em lei em 1992 e em 1995. Em 1999, o presidente Bill Clinton ampliou este embargo comercial proibindo que as filiais estrangeiras de companhias estadunidenses de comercializar com Cuba, a valores superiores a 700 milhões de dólares anuais. A medida está em vigor até os dias atuais, tornando-se um dos mais duradouros embargos econômicos na história contemporânea. É a história bizarra de um gigante que moveu céus e terra para destruir uma pulga que o incomodava -- ele não só não destruiu a pulga, como a empurrou para ainda mais longe da democracia que ele gigante diz defender.
Antes de continuar, uma perguntinha simples: por que o Ocidente e os EUA não têm o mesmo rigor de aplicar sanções econômicas ostensivas e duras contra Israel pelo massacre de Gaza como faz contra a Rússia por causa da Ucrânia, um conflito anos-luz distante da barbárie de Gaza?
Nivelar a Rússia com aqueles três outros países é uma heresia histórica, geopolítica e estratégica. A dimensão e a importância históricas, culturais e políticas da Rússia para o Ocidente e o mundo como um todo são gigantescas. A antiga União Soviética (URSS) -- composta pela Rússia e seus satélites -- foi o país que mais mortos teve na Segunda Guerra Mundial: cerca de 24 milhões de pessoas, das quais cerca de 51% eram civis. Os russos formavam, de longe, o maior contingente populacional da URSS. Sem a contribuição militar e humana principalmente dos russos mortos em batalha a história da humanidade seria outra, imprevisível, com a vitória de Hitler. Isso não pode jamais ser esquecido, nem pelo Ocidente nem pelo resto do mundo.
Reconhecer a importância histórica, política e cultural da Rússia não significa absolutamente dar-lhe carta branca para fazer o que quiser na sua área de influência, mas aplicar-lhe sanções carregadas de nuanças e afirmativas que se aplicam a uma republiqueta é um grave erro político que pode ter resultados e repercussões imprevisíveis. Ademais, há um milenar conceito de estratégia político-militar que não pode nem deve ser esquecido: jamais deixe o inimigo encurralado e sem saída. Não há estrategistas amadores do lado russo.
As novas sanções econômicas impostas pelos EUA, pela UE e pelo Canadá contra a Rússia atingiram um patamar expressivo e impactante, com reflexos extremamente negativos para a economia russa, que já enfrentava dificuldades antes mesmo dessa represália. Mais rápido do que o Ocidente esperava, a Rússia respondeu às sanções impondo um embargo total de um ano às importações de alimentos e produtos alimentícios da UE e dos EUA. Austrália, Canadá e Noruega também foram enquadrados no embargo, que inclui carne (bovina, suína, e de frango, fresca e congelada) peixe, leite, queijo, legumes e frutas. Os russos cogitam ainda de proibir o sobrevoo do espaço aéreo da Sibéria, o que encareceria e muito os voos da Europa para a Ásia.
A Rússia importa US$ 43 bilhões por ano em alimentos e se tornou o maior destino das exportações de produtos agrícolas da UE, além de ser o segundo maior importador de frango americano. Para o governo russo, os europeus podem perder até 12 bilhões de euros com o embargo, 10% de tudo o que o bloco exporta ao mundo em alimentos. Para compensar a perda desses fornecedores, a Rússia voltou-se a novos exportadores de alimentos e o Brasil será um dos beneficiados. Negociações estão sendo feitas também com Equador, Chile e Argentina.
Negócios da Rússia (clique na imagem para ampliá-la) -- (Ilustração: Editoria de arte/Folhapress -- Fonte: Folha de S. Paulo)
A UE já mostra preocupação com o embargo russo. Numa iniciativa que comprova o nível de hipocrisia e cinismo com que lida com as relações comerciais com os russos, a UE entrou nesta terça-feira com uma queixa na Organização Mundial do Comércio (OMC) contra um embargo da Rússia às exportações de carne suína do bloco. "Com esse embargo desproporcional há um grande impacto financeiro sobre a indústria de carne suína europeia e não pode passar em branco", afirmou o comissário de comércio da UE, Karel De Gucht. Cerca de 25% das exportações de carne suína da UE são para a Rússia. No ano passado, as vendas ao país totalizaram 1,4 bilhão de euros (US$ 1,9 bilhão). Essa atitude da UE é simplesmente uma palhaçada, consagrada na declaração que emitiu em seguida ao anúncio do embargo russo: "A UE se reserva o direito de tomar as medidas adequadas contra Moscou, denunciando uma decisão 'claramente política' das autoridades russas". Se não são políticas, as sanções econômicas da UE à Rússia são o quê? "Técnicas"?
A Espanha já declarou que será o quinto país mais afetado na UE pela represália russa. A Alemanha, a maior economia do continente europeu, também contribuiu com sua parcela de hipocrisia e cinismo nesse imbróglio classificando o embargo russo de "forma inapropriada de pressão política que terá forte impacto nas economias alemã e europeia, assim como para os consumidores russos".
Quanto aos EUA, o embargo da Rússia às importações de alimentos da Europa e dos Estados Unidos imposto nesta quinta-feira (7/8) terá um impacto insignificante na economia americana, disse um alto funcionário do Tesouro. Repete-se uma velha história, uma velha lição que, apesar de reincidente, não é aprendida pelo Ocidente que não está inserido geograficamente na América do Norte. Beneficiado por sua posição geográfica, os EUA têm comandado conflitos bélicos e comerciais de caráter global e/ou regional distantes milhares de quilômetros de seu território e que, por isso, repercutem infinitamente menos em seu povo e em sua economia. Isso é verdade particularmente nos conflitos armados, incluindo a Segunda Grande Guerra, em que a população civil e cidades americanas nada sofreram e a indústria americana saiu fortalecida com o esforço de guerra, forjando a supremacia americana no mundo. A grande e terrível exceção foi o 9 de setembro de 2001 em que, pela primeira vez, os civis americanos viram seu território invadido por guerrilheiros estrangeiros e sentiram na própria carne o terror de uma guerra que o país sempre conduziu fora de seus lares.
O Instituto Eisenhower, organizado no Gettysburg College (Pennsylvania) em homenagem ao general americano na Segunda Grande Guerra e presidente dos EUA de 1953 a 1961, no seu documento "O que a União Soviética vivenciou na Segunda Grande Guerra", de J. T. Dykman, diz bem: "Os americanos têm pouca noção do que a União Soviética vivenciou na Segunda Guerra Mundial. Nenhuma cidade dos Estados Unidos foi sitiada, nem uma bomba sequer foi lançada por um avião inimigo em qualquer dos nossos 48 estados, parte alguma de nossa população foi escravizada, morreu de fome ou foi assassinada e nenhum povoado, vilarejo ou cidade foi completamente destruído ou chegou mesmo a ouvir um tiro disparado em gesto de cólera".
No caso das sanções à Rússia, a UE cedeu mais uma vez à pressão americana e, por isso, pagará a parte maior da conta.
As sanções americano-europeias à Rússia têm amplo espectro, e afetam as áreas industrial, tecnológica e financeira. Novamente, a proximidade geográfica faz com que o baque econômico-financeiro inevitável no comércio bilateral seja maior para UE que para os EUA. E, certamente, os americanos são candidatos naturais a fornecer aos europeus uma razoável gama de produtos e serviços que os russos deixarão de fornecer.
No campo militar a história é monótona e tragicamente a mesma. Com a proliferação de conflitos armados pelos quatro cantos do planeta, as grandes indústrias bélicas estão faturando como nunca e os principais países fornecedores contam-se pelos dedos de u'a mão -- é só dar uma olhada na composição permanente do Conselho de Segurança da ONU. Vale lembrar que a Alemanha forneceu submarinos a Israel, que os equipou com mísseis nucleares.
O planeta Terra virou palco de várias óperas bufas, travestidas de "defesas da democracia".
Excelente análise, ainda acrescentaria a duvidosa defesa de grupos neonazistas na Ucrânia como outra das contradições, sem justificar, obviamente, a postura russa
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