[Durando já 5 anos e contabilizando 400 mil mortes, com uma alta porcentagem de civis e crianças entre elas, a guerra na Síria é um exemplo impressionante e inaceitável de violência desmedida, de absoluto descaso aos direitos humanos e de um lamentável show de força por parte dos EUA, da Rússia e do governo sírio de Bashar al-Assad. Além dos milhares de mortos, a guerra síria é a maior fonte de refugiados que tentam se estabelecer na Europa e vêm gerando uma das piores crises já enfrentadas pelos europeus. Traduzo a seguir a crônica de Christian Makarian sobre a Síria, publicada na revista e no site L'Express -- é um texto merecidamente duro sobre uma das piores barbáries por que passam ou passaram o Oriente Médio e a Europa. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]
Síria, o abismo do mundo
Christian Makarian - L'Express
O acúmulo de impasses na Síria não é somente uma catástrofe humanitária sem precedentes em todo o Oriente Médio árabe -- o que bastaria amplamente para definir uma vergonha internacional. Ela é também a demonstração clara e evidente da impotência de nações que invocam ainda alguma forma de potência. Sob nossos olhares embaçados por tantas destruições, o cerco a Aleppo e o aniquilamento impiedoso dos oponentes a Bashar al-Assad, aos iranianos ou aos russos oferecem o espetáculo de um conflito que põe abaixo todo o sistema internacional, todas as engrenagens, todos os balizamentos de um mundo que não controla em nada suas tensões nem suas extensões. Como um sifão gigante, a guerra da Síria criou um turbilhão infernal que arrasta aos abismos do nada todas as forças da razão, os cálculos militares e as lógicas diplomáticas.
A começar por esse centro de inação em que se tornou a ONU. À exceção dos diplomatas, quem se recorda de que a resolução 2254, votada nos últimos dias de 2015, pretendia preparar uma transição política em Damasco? Da mesma forma, quantas vezes a trégua acordada entre Washington e Moscou, no passado 9 de fevereiro, foi violada? A que definição correspondem os termos "cores humanas" para Assad e os russos, já que eles se aproveitam disso para expulsar as populações civis das zonas que lhes dizem respeito?
Face a tanto cinismo, pelo menos os ocidentais poderiam se mostrar unidos. Ora, na semana passada dois aliados sinceros foram vistos mostrando suas divergências à vista de seus adversários. Enquanto Barack Obama discorria sobre a complexidade crescente das relações mundiais e sobre a necessidade da paz, François Hollande marcou sua divergência com verdadeiros ímpetos de indignação e de censuras explícitas contra a falta de engajamento real dos americanos na Síria. Na mesma tribuna da ONU, Vladimir Putin insistiu no imperativo de defesa dos "Estados", segundo ele um horizonte que não pode ser ultrapassado, e denunciou os movimentos populares que ameaçam sua pseudoestabilidade.
O absurdo e a inutilidade do jogo das velhas potências compõem a segunda falência completa ligada ao desastre sírio. No momento em que as aspirações de toda a humanidade, reforçadas pela globalização, convergem para a cessação das matanças em massa, Washington e Moscou se comportam como superpotências anacrônicas. Obama e seu Secretário de Estado, John Kerry, não se privam de denunciar a Rússia como uma potência de uma outra época. Eles evidentemente não estão enganados, mas isso não resolve a contradição própria dos Estados Unidos: para quê serve o arsenal da maior potência militar de todos os tempos, se não for utilizado como o braço armado da diplomacia? Resultado: não se saberia melhor colocar em oposição duas ordens do mundo. Uma, aquela dos princípios humanos que tornam "inegociáveis" os valores ocidentais surge fraca, dividida, na verdade não operacional; a outra, que exalta as entidades pela força e pelo temor que inspiram, se mostra prestes a entrar em ação, mas inteiramente dirigida contra os povos.
Por isso a Rússia tem uma necessidade flagrante de vitória, e fará tudo para obtê-la ao preço de uma engrenagem que a aproxima cada vez mais das batalhas da Chechênia. A guerra da Síria não é apenas a guerra de Assad, é a de Putin, uma reconquista interior para fins de demonstração planetária. Face a essa tática que não sofre de limites humanitários nem territoriais (porque aí a partição seria o resultado), os Estados Unidos não parecem prontos -- em todo caso, não Hillary Clinton -- a mudar de opinião. Eles não vêem o Oriente Médio senão como uma terra de derrotas sucessivas ...
[Como de praxe, nas abordagens de conflitos de que participam americanos e russos, a mídia ocidental costuma carregar mais nas tintas contra os russos. No caso da Síria, como se vê acima -- embora haja cargas fortes contra os EUA -- a história se repete. A participação americana na guerra síria é tão condenável quanto a russa, e p'ra variar ambas estão em campos opostos. Olhando-se um mapa regional, vê-se que conflitos no Oriente Médio são conflitos fronteiriços à Rússia, o que explica, mas não justifica, o intervencionismo regional russo. O Oriente Médio é uma parte intrínseca e explícita da área de atuação geo-estratégica dos russos. Até onde isso é válido, é outra história.
Os EUA têm interesses e preconceitos no mundo todo, o que torna seu intervencionismo planetário -- e quando há superposição ou continuidade dessas áreas estratégicas, como agora no Oriente Médio, o confronto entre EUA e Rússia é inevitável. As razões pelas quais os russos apoiam Assad e os EUA querem derrubá-lo prendem-se, a meu ver, muito mais ao antagonismo tradicional entre essas potências do que propriamente à conceituação de quem é bandido e de quem é mocinho. Tanto os EUA quanto a Rússia têm péssimo currículo no que se refere a intervenções militares fora de seus territórios. Os russos fracassaram redondamente na invasão do Afeganistão, que durou 10 anos (1979-1989). Líbia, Iraque e Afeganistão são exemplos claros de fracassos gigantescos dos americanos no Oriente Médio e redondezas.
Os Estados Unidos têm adotado posições um tanto ou quanto bastante cínicas e hipócritas no que se refere à sua participação na guerra síria. Em março deste ano, Obama fez duras críticas aos seus aliados europeus e do Oriente Médio na intervenção militar na Síria, e os culpou pelo fracasso da intervenção militar nesse país.
Em entrevista publicada pela revista The Atlantic, Obama declarou que alguns países da Europa e do Golfo Pérsico são ‘oportunistas’ porque insistem que os EUA se envolvam em complicados conflitos que pouco têm a ver com seus interesses. "Nas últimas décadas, tem gente que adotou o hábito de nos empurrar para atuar e depois se mostram pouco dispostos a implicar-se”, destacou Obama. Não dá para engulir essa história de que os EUA possam participar, com dinheiro e vidas americanos, de intervenções militares "que pouco têm a ver com seus interesses". É óbvio que isso não existe, é impossível. Assim como não dá p'ra acreditar que os EUA se transformem em massa de manobra e marionetes de países como Arábia Saudita e França, para citar apenas dois.
O que é patente é que os EUA intervêm e/ou criam conflitos em lugares e países a milhares de quilômetros de seu território, o que faz com que não haja sequelas secundárias territoriais ou sociais dessas intervenções sobre os americanos -- ao contrário do que aconteceu na Líbia, no Iraque, no Afeganistão e agora na Síria. Nesses países o caos político e social, e a geração de hordas de refugiados, são as faces mais visíveis desses fracassos -- e quem paga a maior parte ou totalidade da conta disso, além evidentemente dos países locais direta e indiretamente envolvidos, é a Europa e não os EUA. ]
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