terça-feira, 18 de outubro de 2016

Judeus chineses sofrem repressão religiosa

[Nunca imaginei a existência de judeus chineses nativos. Traduzo a seguir reportagem de Chris Buckley no The International New York Times sobre a pressão religiosa do regime chinês sobre a população judia chinesa. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]

Pessoas jogando mah-jonng em uma ala do que era o bairro judeu de Kaifeng, China, perto do local da velha sinagoga - (Foto: Adam Dean para o The New York Times)

Os aposentos em que chinesas e chineses corados se reuniam antigamente para rezar em hebraico e mandarim estão silenciosos. Sinais e exposições que celebravam séculos de vida judaica desapareceram. Um velho poço, suposto ser o único resto visível de uma sinagoga demolida há muito tempo, foi recentemente enterrado sob concreto e um monte de terra.

Após fechar mosteiros budistas no Tibet e demolir cruzes de igrejas no leste da China, a campanha do presidente Ji Jinping contra religiões não aprovadas e contra influência estrangeira voltou-se contra um adversário improvável: um pequeno grupo de judeus cujos ancestrais se estabeleceram nessa agora desbotada cidade imperial, próximo às margens do Rio Amarelo, há mais de mil anos atrás.

Algumas centenas de moradores organizaram um vivo, algumas vezes contencioso, renascimento da herança judaica de Kafeng em décadas recentes, com aulas, serviços e propostas para reconstruir a sinagoga como um museu. Alguns deles chegaram a emigrar para Israel. Durante anos, o governo da cidade tolerou suas atividades, vendo o laço judeu como um ímã para turismo e investimentos.

Mas desde o ano passado, as autoridades chinesas voltaram a puní-los severamente num processo de revisionismo, em um exemplo de como até mesmo os menores grupos espirituais podem cair sob a manta de suspeita ou desconfiança do Partido Comunista. O governo fechou organizações que ajudaram a estimular e promover a redescoberta judaica, proibiu residentes de se reunirem para a Páscoa judaica e outros feriados santos, e removeu de locais públicos sinais e relíquias do passado judeu da  cidade.

"A política toda agora é muito rigorosa", disse Guo Yan, 35 anos, uma guia turística que defende uma linha de judaísmo caracteristicamente chinesa e administra um pequeno museu em um apartamento repleto de fotos da parte judia de Kaifeng. "A China é sensível a atividades e interferência estrangeiras". 

Apenas cerca de 1.000 pessoas alegam descendência judaica nessa cidade -- uma gota d'água no oceano chinês de 1,35 bilhão de pessoas ou dos 4,5 milhões da população de Kaifeng -- e apenas 100 ou 200 delas têm sido ativas em atividades judaicas religiosas e culturais, segundo especialistas.  

Ninguém fora do governo parece saber ao certo porque esse minúsculo bando de crentes passou a ser visto como uma ameaça. Mas as autoridades parecem ter ficado alarmadas com sua crescente proeminência em algum momento do ano passado, quando o governo de Xi determinou que grupos religiosos e organizações estrangeiras se submetessem a controles mais rígidos. O judaísmo não é uma das cinco religiões licenciadas na China: Budismo, Catolicismo, Islamismo, Protestantismo e Taoismo.

"Xi disse que religião é um tema importante, e quando ele fala há consequências", disse um atarracado comerciante local que apoiou o renascimento judaico e que, como outros aqui, pediu para não ser identificado temendo retaliação das autoridades. "Eles não nos entendem e receiam que estejamos sendo usados".

Ele e muitos dos judeus de Kaifeng, assim como aqueles que os apoiam do exterior, disseram que a repressão não foi provocada por um antissemitismo aberto e total, que é relativamente raro na China. Shanghai e Harbin, uma cidade do nordeste da China, organizaram mostruários e eventos em celebração ao seu papel de proteção aos judeus que fugiram da perseguição na Europa. 

"É medo de religião, não de nós judeus", disse o comerciante. [Por que não, então, a mesma atitude contra o catolicismo, por exemplo?]

Até há poucas décadas atrás os judeus de Kaifeng pareciam destinados a desaparecer, uma memória obscura da interseção de duas civilizações antigas. 

Seus ancestrais, possivelmente comerciantes da Pérsia, estabeleceram-se em Kaifeng quando esta era a vibrante capital da dinastia Song do Norte e aí construíram uma sinagoga no século 12. Por centenas de anos eles prosperaram fortemente, livres de perseguição, sobrevivendo às ascensões e quedas de sucessivas dinastias.

Guo Yan em seu museu particular perto do local da antiga sinagoga e do bairro judeu em Kaifeng. "A China é sensível a atividades e interferências estrangeiras", disse ela - (Foto: Adam Dean para o The New York Times)

Mas seu número encolheu quando se casaram com descendentes da etnia Han, majoritária na China. A sinagoga  ruiu. Por volta de 1851, quando missionários europeus adquiriram um Torá hebraico do século 17 em Kaifeng e mais tarde doaram-no ao Museu Britânico, poucos, se algum, podia lê-lo.

Ainda assim, mesmo após décadas de domínio comunista, algum resíduo de identidade judaica sobreviveu em Kaifeng. Pais e avós falaram às crianças de suas raízes e os alertaram sobre não comer carne de porco.

O ressurgimento aqui teve início nos anos 1990 quando turistas, acadêmicos e empresários judeus do mundo todo, curiosos sobre esse remoto posto avançado do judaísmo, começaram a visitá-lo e a compartilhar seus conhecimentos. Vários anos atrás, duas organizações -- o Instituto Sino-Judaico e a Shavei Israel [uma organização judaica sediada em Israel que quer alcançar descendentes e supostos descendentes de judeus à volta do Mundo e tem por meta fortalecer a ligação deles com Israel e o povo judeu] -- montaram escritórios em Kaifeng e passaram a oferecer aulas de hebraico, judaísmo e história judaica, em parte para se contrapor a missionários cristãos que atuavam na cidade. 

"Começamos com nossa velha geração, que não tinha bases/fundamentos", disse Guo. "Mas aí chegaram todos esses grupos de judeus e trouxeram ideias e valores diferentes". 

As autoridades eram ambivalentes, na esperança de que interesse vindo do exterior poderia ajudar no desenvolvimento econômico de Kaifeng -- um charmoso, entretanto dilapidado fim de mundo estagnado no meio do crescimento frenético da China -- mas também cauteloso em relação a estrangeiros e ao judaísmo, uma religião pouco compreendida por ali. 

"Toda vez que parecia que o grupo cruzaria a linha da publicidade, surgia sempre uma reação contra os judeus chineses", disse Moshe Yehuda Bernstein, um pesquisador em Perth, Austrália, que escreveu em um livro prestes a ser publicado: "A ideia era: deixaremos vocês atuarem, mas não deixem que ninguém saiba disso".

Turistas frente a uma casa, no Millenium City Park, que apresentava uma exposição sobre a história judaica em Kaifeng. A exposição foi fechada durante a recente repressão - (Foto: Adam Dean para o The New York Times)

Mas a repressão atual tem ido muito mais longe que as anteriores, segundo moradores locais. Alguns culpam uma reportagem do The New York Times no ano passado, na qual uma autoridade da cidade, participando de um banquete da Páscoa judaica, falou de maneira simpática sobre o ressurgimento [judaico], aparentemente violando diretrizes governamentais. Outros mencionaram relatos à boca miúda de que uma judia de Kaifeng havia conseguido asilo nos Estados Unidos, alegando perseguição religiosa.

"Os judeus de Kaifeng se encontram novamente numa espécie de clima de ressurgimento", disse Anson Laytner, um rabino aposentado em Seattle e ex-presidente do Instituto Sino-Judaico que trabalhou com judeus em Kaifeng e atraiu atenção para a repressão.

O Instituto retirou-se de Kaifeng no ano passado, depois que seu trabalhador comunitário ali, Barnaby Yeh, passou a ser investigado pela polícia. "Acho que foram atitudes de um governo paranóico", disse Yeh, um americano de origem taiwanesa que se converteu ao judaísmo e hoje vive em Maryland.

Shavei Israel, que tem ajudado judeus de Kaifeng a visitarem e a se instalarem em Israel, foi forçada pela polícia a fechar seu centro comunitário na cidade em 2014. Moradores tentaram manter o centro operando em um apartamento alugado, que este ano recebeu ordens para ser fechado, disse um dos moradores.

Até sinais da presença histórica dos judeus foram eliminados. Uma pedra com inscrição, marcando o local da velha sinagoga, foi retirada da frente de um hospital que hoje ocupa o terreno e operários aterraram o velho poço nos fundos do hospital. Dois empregados do hospital disseram que as alterações foram ordenadas por duas autoridades da cidade.

"Tudo isso diz que não há judeus aqui", disse um judeu enquanto olhava nervosamente à volta durante uma entrevista numa casa de chá.

O local de construção de uma casa no que era o bairro judeu, próximo do local da há muito demolida sinagoga de Kaifeng - (Foto: Adam Dean para o The New York Times)

Ele era um dos vários moradores judeus com quem estive em Kaifeng que disse que todos queriam garantir ao governo que eram patriotas cumpridores da  lei. Mas, moradores também disseram que tinham medo de falar publicamente, até para declarar seu patriotismo. 

"Por favor lembrem-se, não nos façam parecer políticos. Queremos apenas ser reconhecidos como judeus", disse o morador.

Judeus podem ainda reunir-se em pequenos grupos em suas casas para rezar, e não tem havido prisões, disseram os moradores. Mas muitos deles disseram que agentes da polícia ou da segurança do Estado os estavam monitorando.

"Anteriormente, o governo chinês estava muito tranquilo, mas agora estamos sob um volume maior de restrições", disse You Yong, um membro de um dos oito clãs historicamente judeus da cidade, que agora cumpre em casa o Shabbat, o dia de descanso dos judeus.

O escritório local do partido Departamento do Fronte Unido, que administra assuntos étnicos e religiosos, transferiu para o serviço de segurança estatal da cidade as perguntas que recebeu. Funcionários desse serviço declinaram de fazer comentários.

De acordo com a legislação israelense, descendentes de judeus em Kaifeng não se qualificam automaticamente como judeus porque sua ancestralidade foi tão diluída. Mas Michael Freund, presidente e fundador da Shavei Israel, disse que o governo israelense deveria aprimorar seu relacionamento com as autoridades chinesas. 

"Isso precisa ser feito respeitosa e delicadamente, mas precisa ser feito", disse ele.

Um porta-voz da embaixada israelense em Pequim, Efrat Perri, disse que a embaixada "recentemente tomou ciência dos mencionados acontecimentos em Kaifeng" e "faria uma investigação visando a conhecer melhor os fatos".

As famílias de judeus que conheci em Kaifen pareciam determinadas a preservar sua identidade recuperada. Algumas decoraram suas casas com castiçais tradicionais para o Shabbat, fotos de avós em branco e preto, granuladas, desenhos da sinagoga destruída de Kaifen e mapas de Israel.

Numa sexta à noitinha, dois casais me convidaram para juntar-me a eles nos serviços do Shabbat, para os quais haviam estado estudando uma leitura do Torá.

"Você não me reconhece como um judeu", disse o anfitrião, "mas eu me reconheço como um judeu e é isto que é o mais importante". 

Ele partiu o pão com suas mãos fortes, e depois de beber cerimoniosamente um vinho feito em casa seus convidados compartilharam goles de baijiu, um licor chinês forte.

"Judaísmo", disse o anfitrião, "é essencialmente resistir".

[A origem dos judeus de Kaifeng e a época em que se estabeleceram na China são ainda matéria de controvérsia. Muitos acadêmicos consideram que uma comunidade judia existia ali desde a dinastia Song do Norte (960-1127), embora outros recuem essa data para a dinastia Tang (618-907) ou ainda antes. Kaifeng, então capital da  dinastia Song do Norte, era uma cidade cosmopolita em um ramal da Rota da Seda. Supõe-se que uma pequena comunidade judaica, mais provavelmente oriunda da Pérsia ou da Índia, chegou por terra ou por mar e ali se estabeleceu, construindo uma sinagoga em 1163.


Judeus de Kaifeng, final do século 19 ou início do século 20 - (Foto: Google)

Durante a dinastia Ming (1368-1644), um de seus imperadores conferiu oito sobrenomes aos judeus, pelos quais são conhecidos hoje: Ai, Shi, Gao, Gan, Jin, Li, Zhang e Zhao. Por volta do início do século 20 um desses clãs de Kaifeng, o clã Zhang, havia  em grande parte se convertido  ao islamismo.


As línguas faladas pelos judeus de Kaifeng são o mandarim, algum hebraico (moderno) e uma mescla de hebraico e persa (histórico).


Segundo o site Biblioteca Virtual Judaica, a China tem uma longa e documentada história judaica, que remonta pelo menos até o século 8. Muitos judeus migraram para a China, buscando refúgio da Europa nazista. Hoje, há cerca de 2.500 judeus na China.


A dinastia Song do Norte (960-1127)


Por centenas de anos, a Rota da Seda serviu de elo entre o Leste e o Oeste. Antes  do aperfeiçoamento das técnicas de navegação marítima, era a principal rota de comércio entre a China e seus vizinhos  do leste. Diferentes ramificações da Rota da Seda levaram bens e pessoas da China para a Índia, a Pérsia, a Arábia e para a costa mediterrânea, e  daí se conectavam para a Europa e a África.


Durante a época da Rota da Seda, muitos judeus se envolveram em comércio internacional. De  muitas maneiras, eram distinta e particularmente qualificados para a profissão. Havia expressivas comunidades judias na Índia, na Pérsia, em nações árabes e através da Europa; em quase todas essas comunidades, um bom número de judeus já eram comerciantes. Enquanto a maioria de árabes e persas não sabiam falar russo, grego ou italiano, judeus na Pérsia, Arábia e Europa sabiam todos hebraico o suficiente para se comunicarem uns com os outros. Assim, judeus persas e do Oriente Médio tinham muito mais facilidade de comerciar com os judeus da Europa do que os muçulmanos árabes em relação  aos cristãos europeus. Quando as tensões entre cristãos e muçulmanos aumentaram por volta da época das Cruzadas, muitos deles se recusaram ou foram proibidos de terem relações comerciais entre si, enquanto judeus no mundo todo não tinham problemas para vender bens a seus parentes (homens). Xiitas persas e sunitas árabes muçulmanos se guerreavam algumas vezes, ou com indianos hindus ou com cristãos europeus, entretanto a comunidade judia permaneceu unida e manteve o comércio entre países.


Como havia um número desproporcionalmente elevado de judeus na profissão do comércio, não seria surpreendente que alguns desse judeus se envolvessem no comércio com a China. Até o século passado, havia uma população judia significativa na Pérsia, e como os judeus persas faziam negócios com o Oeste não há razão para pensar que não comercializassem também com o Leste. Embora não haja evidências da existência de uma comunidade judaica na China antes da dinastia Song, alguns historiadores ainda defendem que a comunidade judaica de Kaifeng foi fundada em 200 EC (era Comum) ou antes [Era Comum = Anno Domini (ano do Senhor) -- abreviação introduzida por acadêmicos judeus em meados do século 19].


A maior parte das evidências respalda a tese de que um número significativo de judeus, centenas ou talvez milhares, migraram da Pérsia para Kaifeng em algum momento durante a dinastia Song do Norte (960-1127). Alguns historiadores acreditam que os judeus de Kaifeng se originaram de Bukhara, uma cidade do Uzbequistão que foi uma época parte da Pérsia. Uma inscrição de 1489 afirma que 70 famílias foram para Kaifeng, embora não esteja claro se isso significava 70 clãs (sobrenomes) ou 70 famílias (unidades domésticas).


Ninguém pode dizer com segurança porque ocorreu essa migração em massa; talvez houvesse fome, seca, ou outro desastre natural, ou talvez autoridades persas locais fossem hostis aos judeus. É possível também que esses judeus tivessem sido atraídos a Kaifeng por relatos sobre a beleza e o conforto da cidade. Pode-se apenas especular por que um tal significativo grupo de judeus sairia da Pérsia, um país  em que viveram desde o Exílio Babilônico em 586 aC, para aventurar-se na  distante e desconhecida Kaifeng, na China.


Enquanto uma nuvem de mistério permanece sobre a longa e penosa jornada dos judeus  e seus primeiros anos na China, a história da cidade para a qual viajaram, Kaifeng, é bem conhecida. Os imigrantes judeus nela entraram durante os dias mais gloriosos da cidade, entre 960 e 1127, quando ela era a capital da dinastia Song e acredita-se que fosse então a cidade mais populosa do mundo. 


Todas as evidências parecem indicar que a comunidade judaica de Kaifeng desfrutou de suas primeiras décadas na cidade, como está dito em um pilar no local de sua sinagoga: que o imperador Song os convidou a ficar em Kaifeng e praticar sua religião livremente. Os judeus continuaram dando nomes hebreus a seus filhos em suas primeiras oito ou nove gerações na China, ainda que imersos eles mesmos na sociedade e na cultura chinesas. Talvez não haja dois grupos culturais que reverenciem mais o conhecimento do que os judeus e os chineses, e esse laço comum talvez tenha feito os judeus se sentirem em casa. 


Enquanto alguns judeus continuassem a ser comerciantes, uma profissão lucrativa mas menos respeitada, os mais talentosos se tornaram acadêmicos quer em cultura judaica, quer em cultura  chinesa. Os estudiosos do judaísmo tornaram-se líderes judeus, enquanto um grande número de judeus estudou para ser aprovado nos prestigiados exames para serviços civis na China, nos quais os judeus foram aprovados de maneira desproporcional [opinião minha (Vasco): espero que o autor do texto não esteja deixando se levar pelo excesso de ufanismo  patriótico].


Enquanto o mencionado pilar diz que a comunidade judaica chegou durante a dinastia Song, ele não cita o ano em que isso se deu nem o imperador reinante na época. A cidade de Kaifeng foi saqueada e destruída em 1127 por invasores da dinastia Jurchen Jin, que conquistaram a maior parte do norte da China e forçaram os remanescentes da dinastia Song a fugirem para o sul, onde um novo imperador Song passou a governar o sul da China a partir de Hangzhou. 


Quando os Jurchens estabeleceram a dinastia Jin no norte da China, Kaifeng foi dizimada e mais da metade da população morreu ou deixou a cidade. Uma inscrição num pilar fora da sinagoga infere que um número significativo de judeus fugiu com a família imperial para Hangzhou, a nova capital imperial da dinastia Song. Esse desastre leva muitos historiadores a especular que os judeus mudaram-se para Kaifeng pelo menos 40 anos antes do caos de 1127, argumentando que os judeus teriam todos deixado a cidade se não tivessem várias boas décadas nela. Da mesma maneira, já que Kaifeng deve ter sido uma cidade grande e atraente antes que os judeus para lá migrassem, historiadores consideram que a grande comunidade judaica mudou-se para lá em algum momento do século 11.


(...)


A prática do judaísmo em Kaifeng (960-1850)


Como na maioria das comunidades judaicas da Diáspora, a prática da religião judaica em Kaifeng adotou alguns aspectos similares às práticas dos chineses nativos. Isto não quer dizer que os judeus de Kaifeng alteraram fundamentalmente sua religião; a verdade é quase o oposto, já que a religião judaica manteve sua integridade e seus aspectos monoteístas característicos durante séculos. Seria mais preciso dizer que os judeus na China naturalmente focaram nos valores de sua própria religião que eram compatíveis com o estilo confuciano de vida. O judaísmo é em muitos modos práticos uma religião muito flexível, tendo-se em conta que se adaptou ao seu entorno enquanto mantinha intactos o cerne de seus princípios teológicos, seus valores morais e sua identidade religiosa. Essa adaptabilidade permitiu ao judaísmo sobreviver fora de Israel, e deu aos judeus a capacidade de florescer em quase qualquer cultura para a qual sejam transplantados. 


Os judeus americanos, por  exemplo, dão presentes aos seus filhos no Hanukkah [ou Chanucá, é uma festa judaica, também conhecido como o Festival das luzes. "Chanucá" é uma palavra hebraica que significa "dedicação" ou "inauguração". A primeira noite de Chanucá começa após o pôr-do-sol do 24º dia do mês judaico de Kislev e a festa é comemorada por oito dias. Uma vez que na tradição judaica o dia do calendário começa no pôr-do-sol, o Chanucá começa no 25º dia desse mês.] porque viram nisso uma contrapartida cultural à prática dos cristãos americanos de dar  presentes no Natal. Judeus não americanos jamais pensariam em dar presentes em dezembro, já que não há razão para isso, entretanto os judeus americanos começaram essa prática para se ajustarem ao seu entorno. Analogamente, embora a poligamia seja permitida na religião judaica, o rabino Gershom ben Judah emitiu uma determinação rabínica 1.000  anos atrás proibindo todos os judeus europeus de praticarem a poligamia. Ele fez isso não porque o judaísmo proibisse a poligamia, mas antes de  tudo para permitir que os judeus melhor se ajustassem aos seus vizinhos. Até esta data, não há lei judaica que proíba os homens judeus não-Ashkenazi de terem várias mulheres.


É necessário ver a comunidade judaica de Kaifeng através desse contexto, para entender melhor que efeito teve a cultura chinesa sobre sua religião. Na verdade, os judeus de Kaifeng se mantiveram notavelmente fieis à sua religião durante um incrível espaço de tempo, considerando-se seu pequeno número e seu quase isolamento. Os judeus continuaram dando nomes hebreus a seus filhos em suas primeiras oito ou nove gerações na China, antes de adotar apenas nomes chineses. Em contraste, muitos americanos não têm nomes judeus, e muitos alteraram seus sobrenomes após entrarem nos EUA.


Por muitas gerações, a maioria dos judeus de Kaifeng faziam com que seus filhos aprendessem hebraico na sinagoga da cidade. A sinagoga de Kaifeng foi construída em 1163, e foi reconstruída, renovada ou ampliada pelo menos uma dezena de vezes ao longo dos 700 anos seguintes pelas gerações de judeus que a utilizavam. Ainda que o edifício fosse de arquitetura chinesa, a sinagoga judaica diferia de todos os outros locais de culto chineses porque não possuía ídolos ou pinturas em seu interior. Durante sua estada em Kaifeng, os judeus adotaram muitos elementos da cultura chinesa, no entanto continuaram seguidores de sua própria fé. De maneira interessante, os judeus se acomodaram de fato, entretanto, a prática chinesa do culto a ancestrais. Talvez por causa das semelhanças disso com o costume judeu do Yizkor e do Yahrzeit, serviços para o morto, parece que os judeus consideraram essa prática aceitável. 


Já que não há nada no judaísmo que proíba essa prática, os rabinos de Kaifeng devem ter concluído que aquilo poderia ser  feito, embora tivesse que ser feito de um modo judeu. Os chineses queimavam incenso e faziam oferendas a placas e desenhos de imagens de seus ancestrais; os judeus, porém, queimavam incenso e deixavam oferendas, mas jamais se permitiam adorar ou deixar oferendas a qualquer desenho/imagem, porque isso estaria no limiar da idolatria. Essa prática tornou-se tão comum entre  os judeus de  Kaifeng, que se construiu para esse fim um "Salão de Ancestrais" (Hall of Ancestors). 

Enquanto algumas práticas adotadas pelos judeus de Kaifeng fossem as que escolheram, eles também fizeram concessões à legislação imperial quando havia conflito com suas práticas. Há dois bons exemplos de como os judeus lidaram com esses conflitos legais. Por exemplo, de acordo com a Torá, se um marido morrer antes de dar à sua mulher o primeiro filho dela, o irmão vivo mais velho do marido é demandado a casar-se com a viúva de  seu irmão. Isto conflitava com o costume chinês, e a dinastia Yuan tornou ilegais tais casamentos. A  comunidade judaica de Kaifeng foi forçada a ceder à lei chinesa.

Em um outro exemplo, um imperador chinês determinou que um retrato seu fosse colocado em todos os locais de culto. Embora isso se chocasse com seu costume, os judeus efetivamente colocaram o retrato na entrada de sua sinagoga. Entretanto, escreveram em hebraico a oração sagrada do Shemá acima do retrato do imperador. O Shemá é a afirmação central da teologia judaica e é traduzido como "Ouça oh Israel, o Senhor é nosso Deus, o Senhor é Único. Abençoe seu Reinado para Todo Sempre". Foi escrito acima do retrato imperial para lembrar aos judeus que o Deus único está acima mesmo do imperador da China. 

(...)

De acordo com o Livro Memorial de Kaifeng, um livro que documentava todas as mortes na comunidade judaica da cidade por muitos até encerrar-se nos anos 1670, por volta dos anos 1600 todos os judeus chineses tinham um entre sete sobrenomes: Zhao, Zhang, Li, Ai, Kao, Jin, or Shi [o que diverge de outra fonte citada antes, que fala de oito sobrenomes -- o sobrenome Gan é o que diferencia as duas listas]. Muito provavelmente, os outros dez clãs foram mortos pela enchente de 1642 ou deixaram a cidade por outras razões. Todos os sete clãs desempenharam um papel importante na comunidade judaica, e havia muitas famílias dentro de cada clã. No total, foram mencionadas 241 famílias, o que indicava uma população de 1.00 - 2.000 judeus na cidade em 1670.

Wang Yisha, um acadêmico de Kaifeng, acredita que o número de judeus que viviam na cidade antes da inundação pode ser estimado pelo número de  rolos de pergaminho da Torá na sinagoga. Assim, de acordo com Wang, havia mais de 500 famílias judias em Kaifeng antes da inundação, oque corresponderia a uma população de 3.000 a 4.000 pessoas. Considerando-se que a população total de Kaifeng foi cortada em mais da metade pela inundação de 1642, faz sentido estimar que havia mais de 500 famílias antes da inundação e apenas mais de 240 na cidade por volta de 1670. 

Um jesuíta chamado Gozani, que visitou a cidade no início dos anos 1700, estimou uma população de judeus de dois ou três mil, o que é consistente com as estimativas de acadêmicos modernos. Para compor as perdas, muitos judeus e não-judeus chineses morreram ou deixaram a cidade nos anos 1850, quando Kaifeng foi saqueada durante a Revolução de Taiping, que prejudicou seriamente a economia da cidade. Por volta do final do século 19, historiadores estimam que apenas várias centenas de judeus viviam em Kaifeng. Ainda mais judeus da cidade foram provavelmente deslocados durante a ocupação japonesa, que deixou Kaifeng com apenas metade da população que tinha antes da guerra.] 







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