terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Visões francesas da questão grega

[Os franceses são bons em debates e os apreciam, sua televisão tem excelentes programas desse tipo e a mídia impressa estimula essa abordagem. A Grécia, como era de se esperar, segue sendo um tema focal não só na França como em toda a Europa, não apenas na UE (União Europeia) mas principalmente nesta. Traduzo a seguir alguns textos publicados sobre a questão grega nos jornais Le Monde de 14/02/2015 e Le Figaro de 11/02/2015. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]

"O voto grego é antes de tudo uma revanche contra a humilhação"

Olivier Delorme, escritor e historiador - Reportagem de Antoine Reverchon - Le Monde, 14/02/2015

Historiador e escritor, Olivier Delorme é o autor de La Grèce et les Balkans. Du V𝖾 siècle à nos jours (A Grécia e os Balcãs - Do século V aos nossos dias) (Folio, 2013, 3 vols.). Segundo ele, as relações entre a Grécia e a Europa, oscilando entre esperanças e suspeitas, se inscrevem em uma longa tradição histórica.

Alexis Tsipras, o novo primeiro-ministro grego, invoca em quase todos os seus discursos a "dignidade reencontrada" do povo grego, afirmando que este último pode "novamente escrever sua história". Por que?

O voto de 25 de janeiro é antes de tudo uma revanche contra a humilhação sentida pelos gregos, bem além dos partidários do Syriza, após cinco anos de submissão à "troika" [Fundo Monetário Internacional, Comissão e Banco Central europeus]. Mas, esse sentimento está também profundamente ancorado na história nacional. Se os franceses habitualmente entendem seu Estado, criado há um milênio, como o guardião do bem comum e o defensor do interesse nacional, esse não é o caso dos gregos: seu Estado, fundado em 1830 após quatro séculos de dominação otomana, esteve tão frequentemente submetido a interesses estrangeiros que não foi verdadeiramente deles senão durante cinquenta ou sessenta anos.

Isso começou em 1830, ano da independência, quando as potências -- França, Inglaterra e Rússia -- impõem aos gregos um rei alemão, Othon, que governa com uma camarilha e com mercenários alemães. O idioma desse reinado, criado pelas elites gregas que estiveram a serviço dos otomanos, os fanariotas, é uma mistura de grego antigo e de bizantino, promovido pelos "filohelênicos", europeus impregnados de cultura antiga. Esse idioma é utilizado pela administração, pelos tribunais, pela imprensa, mas não é compreendido pela população que fala o grego "demótico" (do povo) -- que se tornará a língua oficial apenas em 1976! 

Durante quase meio século, a vida política será dominada por três partidos representando respectivamente os interesses britânicos, russos e franceses, que recebem ordens diretamente das embaixadas correspondentes. Como na época otomana, quando não pagar o imposto devido ao sultão tinha o valor de um ato patriótico, os gregos não aceitam pagar imposto a essa administração "estrangeira". Os gregos chamam esse período de "xenocracia", isto é, o governo dos estrangeiros. 

Em 1875, o primeiro-ministro reformador Charilaos Trikoupis (1823-1896) lança um programa de modernização: ferrovias, o canal de Corinto, o porto de Pireus. Mas, a Grécia era, como hoje, pobre. O governo se endivida, no momento em que a economia ocidental naufraga em uma longa depressão (1873-1896) que provoca deflação, desemprego e desacelera o comércio internacional. As exportações da Grécia e suas atividades de transporte marítimo, cruciais para sua economia, desabam e os investimentos europeus se vão. Atenas comete défaut [não honra seus compromissos] em 1893, e seus credores europeus lhe impõem uma "comissão da dívida" que drenará durante anos seus recursos fiscais. 

No entanto, a Grécia conheceu um período de prosperidade no início do século XX.

Em 1910, Elefthérios Venizélos (1864-1936) torna-se primeiro-ministro: ele encoraja a indústria, lança a reforma agrária e as primeiras leis sociais e engaja o país nas guerras balcânicas (1912-1913), que quase dobram sua superfície.

Mas, quando a primeira guerra mundial explode o país se divide: Venizélos e a maioria parlamentar autorizam o desembarque dos Aliados em Tessalônica (1916), ao passo que o rei é partidário de uma neutralidade pró-alemã. A Grécia terá dois governos até que os Aliados imponham o retorno de Venizélos a Atenas (1917). A Grécia, situada no campo dos vencedores, obteve no tratado de Sèvres (1920) a extensão de suas fronteiras na Trácia e na Ásia Menor, assim como no entorno de Smyrne (Esmirna). Mas os Aliados, traindo suas promesas, deixam logo o país isolado face à reconquista turca de Mustafá Kemal. É a "Grande Catástrofe": os gregos da Ásia são massacrados ou coagidos ao exílio (1921-1923). A Grécia, com 4,7 milhões de habitantes, tem que acolher 1,5 milhão de refugiados, aos quais são distribuídas as terras agrícolas das grandes propriedades, entre as quais estão as da Igreja, em troca de isenções fiscais para elas. 

Após uma década de guerra e o significativo choque demográfico que desestabilizou a sociedade, a economia grega foi além disso violentamente afetada pela crise mundial que explodiu em 1929: foi esta, e não a suposta incapacidade dos gregos em gerir suas finanças que, como em 1893, explica que a Grécia pela segunda vez entrasse em défaut, em 1934. Confrontada com a revolução social, a monarquia se transforma dois anos mais tarde em ditadura de inspiração fascista. 

Agredida por Mussolini em 1940, invadida por Hitler em 1941, a Grécia se encontra contudo novamente no campo aliado. Maciça, a resistência interna se organiza principalmente à volta do Partido Comunista, ao passo que no Egito, onde se estabelece o governo no exílio, a obstinação de Churchill em reconduzir o rei leva a que se preservem os quadros monarquistas da ditadura. Essa situação impede qualquer união nacional e desemboca, em 1944, no bloqueio pelos britânicos dos militares e marinheiros gregos: democratas republicanos ou comunistas são encurralados nas casernas e nos portos gregos até que entreguem as armas e os "agitadores". Depois, na Liberação, a restauração que os britânicos impõem por uma votação fraudulenta provoca uma guerra civil terrível (1946-1949) na qual os comunistas gregos acreditam, erroneamente, poder obter de Stalin os meios para uma vitória. Os "amigos da Grécia" custaram mais uma vez muito caro aos gregos. 

Por que a Grécia não se beneficia então ela própria, como a Europa ocidental, do guarda-chuva nuclear americano e do rápido desenvolvimento econômico dos "trinta gloriosos"? 

Os quatro anos de ocupação nazista estiveram entre os mais duros da Europa: a repressão e a fome mataram 8% da população e arruinaram o país, depois a guerra civil agravou ainda mais a situação.  Para relançar o transporte marítimo, prover empregos e divisas, o governo isentou os armadores de impostos sobre as receitas -- esses armadores sofreram pesadas perdas durante a guerra, colocando seus navios a serviço da causa aliada. Desde então, eles preservaram esse benefício, argumentando que suas fundações exercem um mecenato cultural e humanitário. 

A partir de 1955 a Grécia conhece um forte crescimento, sem endividamento nem inflação, que privilegia as indústrias pesadas, e se associa à CEE (Comunidade Econômica Europeia) em 1961. Em 1967, entretanto, um golpe de estado de oficiais ligados à CIA bloqueia a evolução do país. 

Com a queda dos coronéis em 1974, o primeiro-ministro Constantin Karamanlis (direita liberal) reconstrói a democracia, negocia a adesão à CEE e alcança a criação de um Estado social que o Pasok (socialista) de Andreas Papandréu, vitorioso em 1981, leva aos padrões ocidentais. Mas isso custa caro, porque ocorre em cheio na crise mundial devida aos choques do petróleo. Depois, após 1990, os investimentos gregos se dirigem de preferência para os países de baixo custo de mão de obra do ex-bloco soviético. 

Os fundos europeus e as baixas taxas de juros garantidas pelo euro levam então os bancos (controlados na maioria por grupos franceses) a encorajar o endividamento privado, até então muito baixo, enquanto os mercados de armas e de construções e obras públicas alimentam uma corrupção da qual alemães e franceses são grandemente beneficiados e que aprofunda a dívida pública. A situação é tal  que a crise internacional de 2008, agravada pela especulação, coloca o governo face a uma escolha: entrar em défaut ou se submeter à neo-xenocracia da "troika". 

Por que a Grécia fracassa assim regularmente em juntar-se à marcha da Europa, enquanto que muitos outros são nisso vitoriosos?

A sorte e a desgraça da Grécia são que ela se situa na encruzilhada do Oriente com o Ocidente, do islamismo e do cristianismo, dos mundos eslavo e mediterrâneo. Ela é ao mesmo tempo uma interseção de influências culturais -- esse pequeno país produziu muitos escritores importantes, dos quais dois -- Georges Seferis e Odysseas Elytis -- receberam o Prêmio Nobel -- e uma encruzilhada geopolítica: suas águas são atravessadas pelas rotas comerciais e estratégicas que ligam a Rússia aos mares livres via Dardanelos, a Europa central ao Mediterrâneo pelo estreito de Otranto, e finalmente a Europa ocidental à Ásia através do canal de Suez.

Na Idade Média, os cavaleiros católicos envolvidos nas Cruzadas contra os muçulmanos pilham Constantinopla e instalam reinos feudais no sul da Grécia e nas ilhas. O Império Bizantino, enfraquecido, não poderá mais resistir à invasão turca e a Grécia ficará quatro séculos sob o rigor do domínio otomano enquanto a Europa chega à sua Renascença graças às bibliotecas levadas pelos letrados bizantinos que fogem da ocupação turca. Desde o século XVII, as comunidades gregas são os vetores da difusão das ideias dos Lumières (democracia, nação, liberdade) nos Balcãs. Depois, no século XIX, a Grécia é o teatro das rivalidades imperiais entre britânicos e russos, substituídos no século XX por americanos e soviéticos.

Hoje, a situação da Grécia permanece perigosa: desde 1974, a Turquia ocupa e coloniza 37% de Chipre, povoada em mais de 80% por gregos; os turcos contestam fronteiras e direitos econômicos no Egeu, onde a Turquia impede a Grécia de explorar recursos em hidrocarbonetos e recusa a arbitragem da Corte Internacional de Justiça de Haia aceita por Atenas. Quanto à UE, que financia grandemente a Turquia e a aceitou como candidata (no momento em que ela ocupa um país da UE e contesta a soberania de um outro!), ela jamais tomou qualquer iniciativa diplomática digna desse nome para regulamentar essas questões. Pior, quando a Grécia aderiu à União da Europa ocidental  em 1992, o tratado foi modificado para definir com precisão que a assistência mútua automática em caso de agressão de um dos membros não se aplicaria ...  se o ataque viesse de um país da OTAN! Face à ameaça de um exército cinco vezes mais poderoso, a Grécia é então forçada a sustentar um esforço desproporcional: suas compras de armas, motor essencial da corrupção e da dívida, têm sido superiores às transferências financeiras europeias, beneficiando as indústrias de armamentos alemã e francesa, das quais a Grécia tem sido respectivamente o terceiro e o quarto maior cliente. 

A insegurança geoestratégica desse país é portanto responsável por uma grande parte de suas dificuldades econômicas. Ela é também a fonte do sentimento grego de uma ausência de solidariedade e de compreensão dos europeus do oeste por sua situação particular. 

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Para salvar a Grécia eles estão prontos para matar a Europa

Yves de Kerdrel -- Le Figaro, 11/02/2015  [Obs.: no site do Le Figaro o texto só está disponível para assinantes do jornal]

"As dívidas pagas geram déficits, as não pagas geram uma impressão deplorável" (tradução livre para "Les dettes qu'on paie font des trous; les dettes qu'on ne paie pas font des taches") -- este ditado nunca foi tão atual. Sobretudo no momento em que a Grécia, já dirigida por Alexis Tsipras, iniciou uma queda de braço com os principais chefes de governo europeus com o objetivo de reestruturar uma dívida de 320 bilhões de euros. 

Depois de ter gritado alto e forte, durante toda sua campanha eleitoral, que a Grécia não pagaria essa dívida, o novo primeiro-ministro busca uma saída honrosa invocando seja um escalonamento de seus créditos, seja uma anulação parcial, ou seja mesmo a substituição dessa dívida em troca de obrigações perpétuas, das quais Atenas evidentemente jamais reembolsaria o principal ... 

Todos sabem que há um problema grego na Europa. Que essa população sofre com a austeridade que lhe foi imposta, é um fato! É evidente que, para sair dessa situação, seria preciso achar o meio de aliviar a pressão que obriga a Grécia a destinar mensalmente 10% de suas receitas para o pagamento dessa dívida. Mas não em qualquer circunstância.  É preciso não esquecer contudo que a Grécia entrou na zona do euro graças a estatísticas fraudulentas, que esse país nunca desenvolveu um sistema eficiente de arrecadação de impostos, ou que a aposentadoria dos nossos amigos gregos se dá aos 62 anos enquanto que na Alemanha ela não ocorre antes dos 67 anos. 

Por ora, graças a Angela Merkel, que compreendeu bem todas as consequências dessa eleição [grega], a Europa -- e principalmente o Banco Central Europeu (BCE) -- apresenta uma linguagem clara e inequívoca e fechou a porta a qualquer ideia de anulação, ainda que parcial, da dívida grega. O BCE esteve mesmo a ponto de quase reduzir a liquidez da qual pudessem se aproveitar os bancos gregos sem confiabilidade quanto às garantias apresentadas em contrapartida. Mas Alexis Tsipras e seu ministro das Finanças, Yanis Vafourakis, não ignoram que a Europa está dividida e está tentando abrir uma brecha entre a posição da França ou da Itália e a posição dos anglo-saxônicos.

Cabe recear que uma vez mais, para salvar o euro e a zona do euro, alguns se vejam tentados a ceder às pressões de Atenas, como se fez há três anos quando os bancos europeus aceitaram sem hesitar o cancelamento de 107 bilhões de euros da dívida. Cabe recear com maior razão que as opiniões públicas sejam esquizofrênicas. Por toda a Europa, os governos se submetem ao rigor orçamentário, à redução das despesas públicas e ao respeito aos tratados europeus. Mas as populações vêem com uma fascinação perigosa esse despertar da extrema esquerda na Grécia. 

Na França, a vitória de Alexis Tsipras foi saudada ao mesmo tempo por Jean-Luc Mélenchon [líder da Frente de Esquerda da França e vice-presidente do Partido de Esquerda francês -- foi candidato na eleição presidencial de 2012, tendo sido o quarto mais votado], pelos Verdes, pelos socialistas, e também pela Frente Nacional e até por certas personalidades da UMP [União por um Movimento Popular], que viram ali um despertar dos povos contra a tecnocracia de Bruxelas. Isso vai doravante mais longe, pois uma pesquisa de opinião feita pelo instituto CSA [Conselho Superior do Audiovisual] para o Les Échos [jornal francês sobre economia], para Radio Classique e o Instituto Montaigne mostrou que 30% dos franceses indicam que são favoráveis a uma anulação total ou parcial da dívida grega.  Isso custaria a cada "unidade fiscal" francesa ["foyer fiscal" -- termo que designa o número de pessoas incluídas numa mesma declaração de renda; pode haver várias "unidades fiscais" em uma mesma unidade elementar de população ("ménage") -- família, casal ou apenas uma pessoa: por exemplo, um casal sem o laço do matrimônio no qual cada um preenche sua própria declaração de renda conta como duas "unidades fiscais"] a módica soma de 1.166 euros.  

Somos todos simpáticos à Grécia, berço da Europa, pelo magnífico teatro antigo de Epidauro ou por Delfos, esplendor de nossa civilização, assim como pela Acrópole.  Ainda que a Grécia não represente senão 2% da riqueza da zona do euro, é preciso não esquecer que qualquer que seja a atitude tomada a seu respeito ela será examinada muito atentamente por países que passaram ou passam pelas mesmas experiências penosas que ela [Grécia], como a Espanha, que representa 11% do PIB europeu. Sem contar com todos os eurocéticos como o famoso partido britânico Upkip, que pressiona David Cameron para que ele saia da UE (União Europeia).

Qualquer que seja o favor que se fará à Grécia, ainda que seu custo seja limitado pelos outros europeus, ele terá um terrível "efeito dominó" sobre a Espanha, onde o movimento Podemos se vê já no poder para desfazer todos os fantásticos esforços realizados por esse país após três anos. Como também sobre a Itália, onde os simpatizantes de Beppe Grillo terão  argumentos a seu favor. Como sobre a Irlanda. E mesmo sobre a França, onde a tentação de se afastar dos tratados europeus ressurge regularmente. Nesse caso, à semelhança de Chamberlain e Daladier regressando de Munique em 1938, algumas pessoas acreditarão ter ganho tempo. Não terão obtido outra coisa que o desmembramento da Europa. O que quer dizer ao mesmo tempo a desonra e a guerra. 

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