Retratos de um Brasil que não existe mais: esta poderia ser uma das muitas chaves de leitura da coleção “Reserva Literária”, produzida pela Com-Arte, editora laboratório ligada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), em parceria com a Editora da Universidade de São Paulo (Edusp). Reunindo obras menores de escritores maiores, como os deliciosos Contos Cariocas, de Artur Azevedo (1855-1908), ou obras maiores de escritores menores, como o encorpado romance Mau-olhado, de Veiga Miranda (1881-1936), e o mais experimental Marta, de Medeiros e Albuquerque (1867-1934), a coleção publica textos de domínio público que estão há muitas décadas afastados das estantes das livrarias.
Em uma narrativa que alterna páginas de fina observação psicológica com outras que são de descrições quase científicas dos recursos naturais ou dos ofícios humanos, Mau-olhado, publicado em 1919 por João Pedro da Veiga Miranda, e reeditado apenas uma vez, em 1925, retrata um Brasil novecentista, rural, escravista, bruto, supersticioso e violento, com seus personagens esmagados por convenções sociais que se abatem sobre suas vidas como se fossem fatalidades da natureza.
Veiga Miranda, nascido em Campanha, Minas Gerais, mas formado em engenharia civil em São Paulo, emprestou à atividade literária a sólida formação científica adquirida na Escola Politécnica. Dedicando-se também à política, veio a ser vereador e prefeito de Ribeirão Preto (SP), antes de ser convidado, pelo então presidente Epitácio Pessoa, a assumir o Ministério da Marinha, em 1921. Decepcionado com a política, dedicou-se ao ensino, ao jornalismo e à literatura. Titular da cadeira 35 da Academia Paulista de Letras, pleiteou, em 1934, o ingresso na Academia Brasileira de Letras. Mas a força política de seu oponente, o gaúcho João Neves da Fontoura, protegido por Getúlio Vargas, fez com que sua candidatura fosse preterida.
Contos Cariocas, publicado postumamente e uma única vez, em 1928, oferece ao leitor outro recorte: o Rio de Janeiro na transição do século XIX ao XX, do Império à República, das relações escravistas ao trabalho livre. Tudo é transitório nesses contos ligeiros, em que os personagens transitam entre os empregos ocasionais e a franca boemia, entre os bons costumes e as derrapadas morais, com ações que traduzem um misto de ingenuidade e astúcia quando se trata de cavar algum dinheiro ou conquistar um coração. As pensões, as confeitarias, os teatros, as casas de moda, os passeios públicos compõem o cenário urbano de um Rio de Janeiro em que Copacabana é ainda uma promessa e Ipanema, uma vila distante. O texto, leve, espirituoso, divertido, flui agilmente pela escrita de mestre de Artur Azevedo.
Irmão mais velho de Aluísio Azevedo, o ousado autor de O Cortiço, e amigo de Machado de Assis, com quem participou da fundação da Academia Brasileira de Letras, Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo foi um dos escritores mais populares de seu tempo, tendo produzido mais de uma centena de peças de teatro, contos e poesias, além de desenvolver intensa atividade jornalística. Em 1955, na comemoração do 100º aniversário de seu nascimento, Josué Montello, que então ocupava a cadeira 29 da Academia, de que Artur fora o fundador, afirmou que o seu homenageado “viveu sorrindo e não ganhou com a morte a gravidade fúnebre”.
Flerte com a psicanálise
Um Brasil que aspira ao cosmopolitismo e à modernidade, mas no qual uma coisa e outra assentam mal, como uma roupa dois números acima do tamanho, é o que se mostra nas páginas de Marta, o romance publicado em 1920 por José Joaquim de Campos da Costa de Medeiros e Albuquerque, e reeditado duas vezes, em 1922 e 1932, antes da edição atual. Como o próprio país que lhe serve de pano de fundo, indeciso entre o passado e o futuro, o romance, com sua trama inverossímil, flerta com muitas tendências associadas à vanguarda intelectual da época, o simbolismo, o decadentismo e a psicanálise, anunciando uma estética modernista que não chega a se concretizar inteiramente.
Filho da elite pernambucana, da qual herdou o nome quilométrico, que ele, ironizando, comparava a um trem, Medeiros e Albuquerque fez contato direto com a cultura europeia ao acompanhar o pai em viagem e, depois, como aluno da Escola Acadêmica de Lisboa. De volta ao Brasil, seus múltiplos interesses o encaminharam em direções e sentidos tão diversos quanto a leitura de Schopenhauer e as aulas de História Natural ministradas por Emílio Goeldi, a proposta de uma reforma ortográfica eminentemente fonética, que não prosperou, e estudos sobre o hipnotismo, a partir dos trabalhos de Charcot. Dedicou-se ao ensino, ao jornalismo, à política e à literatura, tornando-se membro fundador da Academia Brasileira de Letras. Mas, a despeito dessa atividade multifacetada, ele é hoje lembrado, quase que exclusivamente, devido à autoria da letra do Hino da República.
Memória militante
A publicação elegante (com miolo em papel pólen de elevada gramatura, capa dura, guardas e sobrecapa) e a edição primorosa (com ensaios introdutórios, perfis dos autores, bibliografias, frontispícios das edições originais e numerosas notas de rodapé) fazem da coleção “Reserva Literária” uma fonte de prazer para quem gosta de ler e manusear bons livros. “Por ser uma editora laboratório, a Com-Arte pode editar livros que as editoras comerciais raramente editariam”, explica Plinio Martins Filho, docente da ECA-USP, diretor presidente da Editora da Universidade de São Paulo (Edusp) e professor responsável pela Com-Arte.
“Nossas coleções resultam diretamente do curso de editoração da ECA. Existe nele uma disciplina, a ecdótica, que trata de todos os aspectos da edição de textos”, disse Martins Filho. “Então, o professor José de Paula Ramos Jr. seleciona o livro; ensina os alunos a fazer a edição, atualizando a ortografia, levantando a biografia do autor, produzindo notas para informar o significado de palavras menos usuais ou de referências a personagens e situações da época etc. E, na produção física do livro, contamos com a ajuda de algumas gráficas, que nos oferecem seu serviço a um preço quase simbólico, ficando a distribuição a cargo da Edusp".
A tiragem, no caso da coleção “Reserva Literária”, é de mil exemplares por edição. E a expectativa da editora é lançar ao menos dois títulos por ano. Para 2014, estão programados os romances Navios Iluminados, de Ranulpho Prata, e O Feiticeiro, de Xavier Marques.
Outra coleção da Com-Arte, com tiragem de 500 exemplares por edição, é a série “Memória Militante”, dirigida pelos professores Marisa Midori Deaecto, Lincoln Secco e Plínio Martins Filho, com depoimentos ou textos de participantes das lutas políticas travadas no Brasil contemporâneo. “Coincidentemente, os três primeiros livros dessa coleção foram escritos por pessoas que tiveram relação com a USP: Catullo Branco, já falecido, formado pela Escola Politécnica; Wilson do Nascimento Barbosa, professor titular aposentado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas; e Paul Israel Singer, professor titular aposentado da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade”, diz Martins Filho.
O próximo livro da série, já no prelo, é Um grito de coragem: memórias da luta armada, de Renato Martinelli.
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