[O artigo abaixo é de Karina Toledo e foi publicado no site da Agência FAPESP em 02/10.]
O ser humano é um “ser da linguagem”. Desde o nascimento, e muito antes
de aprender a falar, já é capaz de dialogar e de negociar com parceiros –
sejam eles adultos ou outros bebês – por meio de olhares, gestos,
posturas, vocalizações e outros recursos próprios da idade. Todo o seu
corpo é meio de apreensão, expressão e significação.
A análise é da especialista em Psicologia do Desenvolvimento Humano
Kátia de Souza Amorim, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
Ribeirão Preto (FFCLRP), ligada à Universidade de São Paulo (USP). A
pesquisadora coordenou um projeto de pesquisa apoiado pela FAPESP, cujo objetivo foi investigar se e como ocorriam processos de significação e de linguagem nos dois primeiros anos de vida. Amorim coordenou também outra pesquisa outra pesquisa sobre corporeidade e significação em processos desenvolvimentais no primeiro ano de vida.
“Usualmente, tem-se a ideia de que os bebês apenas dormem e mamam e,
quando se expressam, tudo não passa de uma descarga emocional. Mas
nossos estudos mostram que, na verdade, os bebês desde muito cedo já são
capazes de se expressar de maneira culturalmente adequada”, disse
Amorim. “Isso não quer dizer que eles entendam os significados das palavras pela
cognição, pelo intelecto, mas apreendem seu significado nas relações,
dentro do ambiente. Por meio de recursos particulares, percebem o meio e
agem sobre ele, sendo capazes de dialogar com o outro, mesmo que em um
diálogo mudo”, afirmou.
Para chegar a essas conclusões, a pesquisadora e seus colaboradores
acompanharam cerca de 40 crianças com até 13 meses em diferentes
relações e contextos: casa, creche e instituição de acolhimento
(abrigo). A interação dos bebês com familiares, cuidadores e com outras
crianças, inclusive pares de idade, foi gravada e posteriormente
analisada pelos cientistas. “O trabalho começou no âmbito de um Projeto Temático
coordenado pela professora Maria Clotilde Rossetti-Ferreira, da FFCLRP.
Na época, acompanhamos um grupo de 21 crianças que tinham acabado de
ingressar na creche mantida pela USP, no campus de Ribeirão Preto. Nosso
objetivo era estudar o processo de adaptação dos bebês no ambiente da
educação coletiva”, disse Amorim.
Nesse período, foram realizadas cerca de três horas de gravações diárias
mostrando a interação dos bebês com as mães, educadoras e com as outras
crianças. Como os pesquisadores observaram indícios de processos de
interação e de comunicação mesmo entre os próprios bebês, foram
conduzidas outras pesquisas e construídos os demais bancos de dados e
imagens. “Pudemos observar claramente que os bebês eram capazes de se expressar
e, de alguma maneira, compreender o que se passava no entorno. Então,
levantamos uma série de questões para estudar a comunicação e a
significação antes da aquisição da linguagem oral”, disse Amorim.
Dentro das competências comunicativas, acrescentou a pesquisadora, a
emoção serve de diálogo sem palavra, representando uma forma de
comunicação que abrange todo o corpo do bebê e não apenas o rosto e a
voz. Essa emoção muito precocemente passa a ser carregada de
intencionalidade, sendo dirigida aos parceiros, com aumento, diminuição e
substituição de sinais e tons, além de transformações nos estilos e
manifestações. “Se o choro fosse apenas uma descarga emocional, os bebês agiriam com
todos da mesma forma. Mas observamos que eles não choram e não sorriem
para todo mundo de maneira igual”, comentou Amorim.
Segundo a pesquisadora, a análise dos vídeos mostra que, embora os bebês
tenham uma relação preferencial com a mãe, também constroem ligações
com outras pessoas – tanto adultos como pares de idade – presentes no
contexto. E as relações se dão de forma bastante diferenciada. “Se há duas educadoras ou duas crianças, por exemplo, o bebê chega a
claramente demonstrar preferência por uma delas. Não só interage mais
com ela, como os recursos comunicativos são diversos, sendo usados com
mais ou menos frequência, além de mudarem com o tempo e as diferentes
situações”, disse. “Para nós, isso foi surpreendente, pois mostra o grau de refinamento das
habilidades nas relações e a riqueza de competências comunicativas do
bebê. De alguma maneira o bebê diferencia não apenas o parceiro como
apresenta também formas diversas de se comunicar com ele”, avaliou
Amorim.
Interação de crianças
De acordo com a pesquisadora da FFCLRP-USP, muitos gestos que hoje em
dia são considerados como automáticos ou naturais – decorrentes de
maturação biológica – evidenciaram ser, na verdade, construídos nas
relações com os parceiros, servindo na regulação do comportamento do
outro, constituindo o diálogo com o interlocutor. Nessas relações e comunicação, em que há troca de
significados, verificou-se que há participação ativa da criança, apesar
de ela não ser capaz de fazer uso das palavras.
Os comportamentos enunciam problemas, que são dirigidos a alguém e
inclusive chegam a antecipar uma possível resposta, desde muito
precocemente. O gesto tem ainda uma forma diretamente relacionada à ação
no mundo de onde deriva, construindo papéis e formas de ser e de estar
no mundo.
O tema é controverso, segundo Amorim, pois para a maioria dos autores a
linguagem está relacionada à internalização de signos e à aquisição da
fala. Em função disso, muitas pesquisas sobre a linguagem e a
comunicação de crianças, segundo Amorim, centra seu foco em faixas
etárias acima do final do primeiro ano de vida. “Porém, reconhecer as competências desde o nascimento permite que se
veja o bebê para muito além daquilo que ele virá a ser – adulto
oralizado –, destacando o que ele já é”, avaliou.
Na opinião da pesquisadora, os resultados do estudo podem contribuir
para reflexões sobre a forma como familiares, educadores e demais
profissionais compreendem os bebês e como organizam a vida e as relações
com a criança, por exemplo, nas creches. Para Amorim, é preciso
favorecer ainda mais o encontro e a interação das crianças com seus
pares de idade.
“Temos enviado material de divulgação da pesquisa para congressos,
creches, cursos de pedagogia e demais profissionais que trabalham com
desenvolvimento infantil. Muitos professores se incomodam com o fato de
terem de lidar com bebês. Dizem que não se formaram para trocar fraldas.
Mas se houver a compreensão de que, na verdade, quando trocam a fralda
estão ensinando, aprendendo e se relacionando com alguém que já é capaz
de se comunicar, tudo muda”, avaliou Amorim.
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