Com o título "Usinas da discórdia", o Globo publicou ontem extensa reportagem sobre a disputa bilionária entre os consórcios responsáveis pelas usinas Jirau (3.750 MW) e Santo Antônio (3.150 MW), ambas no rio Madeira. É uma briga de peso, envolvendo cotas de reservatórios e a bagatela de R$ 2 bilhões.
Aparentemente, pode parecer tratar-se de uma pendenga normal entre consórcios de grandes obras, mas nessa história há ingredientes que incomodam o olfato de quem tem familiaridade com o setor elétrico. Fatos que chamam a atenção de um observador mais atento: - i) a forte presença estatal nos dois consórcios (40% no consórcio "Energia Sustentável do Brasil", de Jirau, via Eletrobras-Eletrosul e Eletrobras-Chesf, e 39% no consórcio "Santo Antônio Energia", da usina de mesmo nome, via Eletrobras-Furnas); - ii) a usina de Jirau está a montante de Santo Antônio; - iii) nos dois consórcios só há "cobra criada" em matéria de construção e operação de usinas hidroelétricas, não há ali nenhum bobo ou inocente nessa matéria.
Pelo projeto original, pelo qual o leilão da usina foi decidido, a UHE Santo Antônio teria 44 turbinas bulbo quando concluída em novembro de 2015. Aí, de repente, a 3 anos de sua conclusão, o consórcio por ela responsável pleiteia do governo a instalação de 6 turbinas a mais (cerca de 14% de aumento em termos de equipamentos), sob a alegação de que com isso se teria uma energia firme adicional equivalente à produção de uma usina de 800 MW de potência instalada, "sem os impactos socioambientais que uma usina desse porte acarretaria". Mas, para isso, a cota autoriza para seu reservatório teria que ser elevada de 70,5 m para 71,3 m.
Por seu lado, o consórcio responsável por Jirau apresentou um pleito e um protesto ao governo federal: - i) pleiteia a colocação de 4 turbinas a mais, o que, alega, sem mexer em um centímetro sequer nos reservatórios das duas usinas, lhe permitiria um ganho médio de 80 MW médios sem novos riscos e burocracias socioambientais (diz a reportagem do Globo que o governo não teria aprovado este pedido); -- ii) protesta contra o pedido do consórcio de Santo Antônio, alegando que este, se concedido, lhe acarretará perda de geração e gerará um "crime ambiental e social" de graves consequências.
Deixando de lado as argumentações e reclamações individuais de cada consórcio, há questões óbvias e estranhas que pairam no ar: - a) em se tratando de usinas em cascata de um mesmo rio, e relativamente próximas, não é crível admitir-se que não tenha sido feito um estudo de aproveitamento integrado do rio Madeira para fins energéticos, avaliando-se clara e inequivocamente a influência mútua entre Jirau e Santo Antônio (lato sensu) com as configurações e especificações definidas nos leilões para as concessões dessas usinas; - b) dentro desse contexto e dessas premissas, e estando o governo federal representado fortemente nos dois consórcios responsáveis por essas usinas, como se explica que a usina a jusante possa mexer no projeto pelo qual ganhou o leilão, com evidente reflexo na usina a montante e esta, por sua vez, não possa alterar seu projeto? -- c) como se explica essa "flexibilidade" (desigual ou não) de alteração de projeto após o fechamento do leilão? As especificações para o leilão das duas usinas não levaram em conta sua operação ótima e coordenada? -- d) como o governo poderá decidir isentamente a pendência, se tem 40% de participação em cada usina? Será o peso das empreiteiras que decidirá isso?...
Isso me parece mais um enrolo ou esculhambação do governo de Dª Dilma na área elétrica.
PS - Há mais de 30 anos atrás, quando o Brasil assinou com o Paraguai e a Argentina o Acordo Tripartite para a construção de Itaipu, ficou assentado e reconhecido o direito da Argentina de construir também no rio Paraná e a jusante de Itaipu a usina de Corpus Christi. E há mais de 30 anos sabe-se que, se e quando os argentinos fizerem essa sua usina a carga plena, seu reservatório acarretará uma perda de geração da ordem de 7% em Itaipu. Mutatis mutandis, guardadas as devidas e necessárias proporções e feitas as indispensáveis adaptações, é só trocar "Jirau" por "Itaipu", "rio Madeira" por "rio Paraná", e "Santo Antônio" por "Corpus Christi" e a história se repete.
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