domingo, 16 de agosto de 2015

Novas regras sobre casamento gay nos EUA colocam judeus ortodoxos em rota de colisão com a legislação americana

[A recente histórica decisão da Suprema Corte dos EUA que garante o casamento entre pessoas de mesmo sexo provoca conflitos inesperados, como se vê na reportagem de Seth Lipsky publicada no site do jornal israelense Haaretz que traduzi abaixo. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]

Na decisão histórica da Suprema Corte, a maioria que a garantiu não fez, de maneira chocante, menção ao direito constitucional do livre exercício da religião -- não é de admirar que grupos religiosos de cristãos e de judeus ortodoxos estejam preocupados com isso. 


A Casa Branca iluminada com as cores do arco-íris depois que a Suprema Corte legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo - (Foto: AP/Fonte: Haaretz) 

"Que os filhos da linhagem de Abrahão que vivem nesta terra possam continuar a merecer e desfrutar a boa vontade dos outros habitantes -- enquanto cada um sentará em segurança sob sua própria videira e sua própria figueira, e não haverá ninguém que o faça temer". 

Essas são as palavras com as quais George Washington, recém-eleito presidente dos Estados Unidos, deu as boas-vindas aos judeus na América. Tenho pensado sobre esse texto na esteira da decisão da Suprema Corte dos EUA, segundo a qual a Constituição garante a casais de mesmo sexo o direito de se casarem e proíbe todos os estados americanos de recusar a autorização ou o reconhecimento de tais uniões. 

O fato é que por mais estimulante que seja essa decisão da Suprema Corte para aqueles que suportaram a longa batalha para o casamento de mesmo sexo, um toque de apreensão e receio pode ser observado agora entre os judeus ortodoxos e os cristãos religiosos dos EUA. Pela primeira vez desde a carta de Washington de 1790, judeus ortodoxos estão em rota de colisão com a legislação americana, com consequências que podem ser realmente sérias.  

Não há dúvidas de que há aqueles que vêem isso de outra maneira. "Grupos judeus saúdam a legalização do casamento gay pela Suprema Corte", diz a manchete de uma reportagem da Agência Telegráfica Judaica (JTA, na sigla inglesa) com a grande notícia vinda de Washington. Mas, essa saudação estava sendo feita pelo Comitê Judaico Americano, pela Liga Anti-Difamação, e por outros grupos e correntes religiosas liberais incluindo os movimentos de Reforma e o Reconstrucionista. 

É claro que eles falam por milhões de pessoas que compartilham a esperança de que casais de mesmo sexo serão capazes de ganhar a dignidade que a Suprema Corte disse que a Constituição lhes deve, através do direito de se casarem. Mas, a comunidade judaica ortodoxa tem uma visão diferente sobre isso. Isso foi expresso pela União Ortodoxa e pela Agudath Israel da América [Agudath é uma organização comunitária Haredi  de Israel; Haredi significa "temente" e se refere ao judeu praticante do judaísmo ultraortodoxo], entre outras instituições.  A última citada [a Agudath] alertou em um comunicado que seus membros se viam diante de "opróbrio moral" e corriam risco de "consequências negativas tangíveis" se se "recusarem a transgredir suas crenças". 

A julgar por eventos recentes, o que a Agudath disse é menos do que a verdade. Toda a campanha para o casamento entre pessoas do mesmo sexo, por mais elevados que fossem seus ideais e por mais que fossem reais -- e muito frequentemente violentas -- as injustiças sofridas por casais de mesmo sexo, foi arregimentada às custas de judeus e cristão religiosos. A maioria da Corte Suprema dos EUA sabe muito bem disso, mas escamoteou o tema, com o juiz Anthony Kennedy, autor do voto da maioria, dedicando aos temores de religiosos americanos menos de um parágrafo. 

O juiz Kennedy enfatizou que "religiões, e aqueles que aderem a doutrinas religiosas, podem continuar a advogar, com máxima e sincera convicção que, por preceitos divinos, o casamento de pessoas de mesmo sexo não deve ser consentido ou aprovado". Ele fez particular menção à Primeira Emenda, parte da Declaração de Direitos Humanos da Constituição americana, "assegura que organizações e pessoas religiosas tenham a proteção adequada quando buscam ensinar os princípios que são tão gratificantes e centrais para suas vidas e suas crenças, e para suas próprias profundas aspirações para prosseguir com a estrutura familiar que têm longamente reverenciado".  

Essa foi uma referência à parte sobre liberdade de expressão da Primeira Emenda. Mas, foi espantoso -- e até mesmo chocante -- que o voto da maioria não fizesse menção ao segundo princípio da Constituição, referente à proteção religiosa, o direito ao "livre exercício" de religião. Esse é o ponto em que estão sendo desenhadas as linhas de confronto entre as facções liberais e esquerdistas nos EUA, buscando obrigar pessoas religiosas a abraçar a causa do casamento homoafetivo. 

Em meses recentes, os americanos têm lido a respeito de um padeiro cristão que foi objeto de uma ação de execução legal no Colorado por ter se recusado a assar uma torta para um casamento gay, de um casal de clérigos que pode se ver obrigado a fechar seu negócio de ter uma capela para casamentos por se recusar a celebrar casamentos gays nela, e de uma família de Nova Iorque que está enredada em um processo legal por se recusar a alugar sua causa para a recepção de um casamento gay. Uma agência de adoção católica que se recusou a operar com casais gays foi forçada a encerrar seu trabalho caritativo.

"Muito provavelmente, muitas dessas ações de retaguarda contra o casamento gay em breve cairão por si mesmas", escreveu Jeffrey Toobin -- que cobre a Constituição para a revista New Yorker -- após o pronunciamento da Suprema Corte. "À semelhança de muitos de seus companheiros americanos, fotógrafos de casamentos e outros que tais farão as pazes com as novas regras que garantem a seus vizinhos uma mesma chance para serem felizes. (Além disso, eles precisam sobreviver)". Pode ser que sim, mas não estou tão seguro de que as coisas ocorrerão tão suavemente no mundo do Judaísmo Ortodoxo.

"O tema aqui não é se todos os seres humanos são criados à Imagem Divina, ou se têm uma dignidade humana inerente. É óbvio que sim, é óbvio que têm", disse a Agudahem um comunicado depois que a decisão sobre o caso Obergefell versus Hodges foi publicada [pela Suprema Corte]. Mas o comunicado foi além, dizendo que "as verdades da Torá [o documento central do judaísmo] são eternas, e se sustêm como nosso farol mesmo diante de mudanças nas moral social". Em algum momento, isso chegará a uma crise que de algum modo e de uma maneira ainda não vista porá em teste a promessa de George Washington aos judeus. 

[Ao colocar esse texto do Haaretz em seu blogue Israel Matzav, o blogueiro 'Carl em Jerusalém' comentou que não quer que seus filhos tenham um professor que seja abertamente gay. De jeito nenhum. 'Quero que meus filhos possam ver seus professores como modelos de comportamento religioso. Então, mais uma vez, já que vivo em Israel, é improvável que qualquer das escolas de meus filhos (exceto para aqueles que estão em uma universidade, que é uma categoria diferente de escola) possa ser forçada a contratar professores gays'.  -- 'Carl em Jerusalém' nasceu em Boston e se confessa um judeu ortodoxo, mas diz que muitas pessoas o consideram ultraortodoxo. Foi um advogado na área empresarial durante sete anos em Nova Iorque, antes de emigrar para Israel em 1991.]


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