A ascensão e queda da carne de porco em Israel é um exemplo ou estudo de caso na interface entre legislação, religião, sociedade e cultura -- (Foto: Reuters)
A ministra da Suprema Corte de Justiça [de Israel] Daphne Barak-Erez escreveu um livro fascinante sobre a história das leis relativas à carne de porco, que serve como um estudo de caso apaixonante sobre como a sociedade israelense se modificou
No ano 40 da Era Cristã, uma delegação de judeus foi ao imperador Calígula buscando a revogação de decretos onerosos impostos na cidade egípcia de Alexandria. O imperador estava caminhando em seu palácio, dando ordens à sua equipe, quando de repente se voltou para seus trêmulos hóspedes e, de acordo com o filósofo judeu Philo, lhes fez uma pergunta séria: "Por que vocês se recusam a comer carne de porco?".
A abstinência de comer carne de porco aparece tão remotamente na tradição judaica como a própria Torá (que fala de se comer carne apenas de animais de casco dividido (fendido) que regorgitam sua comida para uma segunda mastigação; os porcos não regorgitam seu alimento). Mas o tema só se tornou relevante na era helênica (que teve início em 332 a.C.). Na época, a carne de porco era o item básico das dietas dos povos da região, tornando estranha e particularmente notória a prática judaica de evitar esse alimento e fazendo disso um símbolo do separatismo dos judeus.
Durante o governo do rei grego Antióquio IV (cujo reinado começou em 175 a.C.), o consumo de carne de porco era um indício de que alguns judeus haviam assimilados os costumes gregos. Posteriormente, eruditos no Talmude [um livro sagrado dos judeus, um registro de discussões rabínicas relativas à lei, à ética, aos costumes e à história do judaísmo] identificaram a carne de porco com o Império Romano em tal extensão que ela veio a simbolizar os romanos. Na Idade Média, ocorreu o fenômeno oposto: os judeus sendo identificados com o porco. O fato de os judeus se absterem de comer sua carne era visto até como resultado de sua afinidade com esse animal.
Primeira legislação
No contexto israelense, a carne de porco surgiu pela primeira vez como um tema político nos primeiros dias do novo estado. Naquele então, os alimentos básicos estavam racionados e a carne de porco era vendida inicialmente no mercado negro e, em seguida, foi oficialmente racionada para aqueles poucos que tinham se cadastrado para obter comida que não fosse kosher [produtos e alimentos kosher são aqueles aprovados pela lei judaica]. Tudo isso resultou em pressão parlamentar que, em 1956 e novamente em 1962, levou à aprovação de uma legislação sobre a venda de carne de porco.
No início, o poder de banir a venda de carne de porco era conferido apenas a autoridades locais. Posteriormente, ela foi tema de uma proibição nacional. Em seu novo livro sobre o assunto, “Hukim ve’hayot aherot” ("Leis e outros animais"), a juíza da Suprema Corte de Justiça Daphne Barak-Erez argumenta que as leis eram excepcionais: embora elas incorporassem a halakha (lei religiosa judaica) ao sistema legal judaico, elas o fizeram a partir de uma percepção mais ampla de "orgulho nacional e herança cultural" e não a partir de um receio de ofender a sensibilidade de pessoas religiosas.
A ascensão e queda do porco em Israel é, portanto, um exemplo ou estudo de caso na interface entre legislação, religião, sociedade e cultura.
"Os porta-vozes dominantes que propuseram a legislação sobre o tema eram na verdade políticos religiosos, mas sua argumentação invocava o pensamento cultural comunitário e não sentimentos religiosos", escreve Barak-Erez. Eles se dirigiam ao Yiddishkeit (identidade étnica judaica) do movimento operário de Israel na época.
A legislação proposta foi explicada através da posição que o porco tinha na história judaica. Por exemplo, o líder do Sionismo Operário anterior ao Estado de Israel, Berl Katznelson -- conhecido não por sua devoção à tradição religiosa judaica -- aderiu a apenas duas proibições tradicionais, que via como parte dos "direitos de propriedade nacional" dos judeus: abster-se de comer carne de porco e jejuar no Tisha B’Av em memória à destruição dos templos em Jerusalém [o Tisha B'Av, dia 9 do mês de Av, 11° mês do calendário judaico, é um dia de jejum e luto devido a dois dos mais trágicos eventos da história judaica: a destruição pelos babilônios do Templo de Salomão, ou Primeiro Templo de Jerusalém, no ano 586 a.C., e a destruição do Segundo Templo pelos romanos no ano 70 da nossa era].
O falecido primeiro-ministro Menachem Begin também via o porco como uma questão relacionada à "alma nacional". O primeiro primeiro-ministro de Israel, David Ben-Gurion, entretanto, tinha reservas sobre a importância do simbolismo do porco por vê-lo como um evento significativo "tardio", pós-bíblico.
Barak-Erez faz distinção entre a legislação sobre a carne de porco e outras leis religiosas, devido à ênfase em aspectos culturais nacionais das provisões legais relativas à carne de porco. Pode-se perguntar, entretanto, se essa distinção é tão nítida: as leis sobre casamento e conversão, por exemplo, não são também parte da história nacional? É uma coincidência o fato de que o estado escolha impor tradição religiosa naqueles aspectos da vida que são definidores de rumos para a nação?
Saindo do segundo plano
O interesse por legislação sobre carne de porco declinou nos anos 1970. Barak-Erez diz que isso se deu porque o consumo de carne de porco em Israel era mínimo àquela época; o racionamento havia terminado, e a grande imigração [de judeus] da União Soviética -- entre os quais o consumo de carne de porco era comum -- não havia ainda começado. Além disso, a atenção dos partidos religiosos do país estava concentrada em promover os assentamentos nos territórios e eles não tinham tempo para lidar com legislação religiosa, afirma a juíza da Suprema Corte. No final dos anos 1970, no entanto, o assunto ressurgiu.
Deve-se observar que Tel Aviv foi na realidade a primeira cidade israelense em que uma lei orgânica municipal foi promulgada tornando ilegal a venda de carne de porco -- já em 1954. Essa lei foi na realidade promulgada em resposta a uma decisão da Alta Corte de Justiça, que definiu que governos municipais não tinham autoridade para agir com base em motivos religiosos.
Barak-Erez liga a retomada do tema nos anos 1980 à ascensão de partidos políticos setoriais. O teor do discurso público de então já havia mudado, com porta-vozes seculares resistindo a uma expansão das leis contra a carne de porco, considerando-a uma coerção religiosa. "A disposição de entender essas proibições como uma expressão legítima de um símbolo nacional era quase inteiramente inexistente em seus comentários", observa Barak-Erez.
No início dos anos 1990, foram promulgadas novas Leis Básicas sobre a liberdade de emprego/trabalho e a dignidade humana, levando a uma erosão adicional das proibições. Depois disso, as cortes permitiam restrições à venda de carne de porco apenas em áreas onde a maioria da população fosse religiosa.
O debate público deslocou-se antes para considerações sobre coerção religiosa e direitos comunitários do que sobre a importância de símbolos e da identidade nacional. Israel tornou-se menos unificado e mais tribal, escreve Barak-Erez -- marcado de um lado por um aumento em liberalismo, liberdades individuais e multiculturalismo e, de outro lado, por um declínio da identidade nacional tradicional.
O porco deixou de ser um símbolo nacional para tornar-se claramente um símbolo religioso. "Em uma realidade em que a cultura judaica e a língua hebraica dominam o espaço público, há aqueles que são da opinião de que a importância de símbolos que antes eram necessários para estabelecer uma unidade comunitária era declinante em qualquer hipótese", diz Barak-Erez. O desgaste da imposição de uma proibição à venda de pão durante a Passover [a Páscoa judaica] foi outro exemplo desse fenômeno, acrescentou ela.
"A proibição em relação à carne de porco assumiu seu significado simbólico nos contextos de humilhação e de subserviência nacionais", escreve a juíza referindo-se à experiência dos judeus da Diáspora [processo de dispersão forçada dos judeus pelo mundo e a consequente formação de comunidades judaicas fora de Israel]. "A maioria dos líderes públicos de Israel nos anos iniciais do país não era de sabras (judeus nascidos em Israel), e eles ainda carregavam consigo lembranças (e talvez cicatrizes) da vida na Diáspora e os insultos ligados ao porco. Ao longo do tempo, isso foi desaparecendo".
Essa afirmação pode ser de particular importância. O porco pertence a um mundo no qual os judeus se distinguiam da maioria não judia no meio da qual viviam. Por outro lado, a identidade nacional judaico-israelense se baseia em um sentimento de maioria.
Muita água correu desde os dias de Berl Katznelson e Begin até o ano passado, quando o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu foi visto jantando com o magnata do jogo Sheldon Adelson em um restaurante em Nova Iorque que serve carne de porco. A nova identidade nacional exige cada vez menos tradição judaica, mas não é menos nacional.
Não se trata de multiculturalismo mas, em vez disso, de uma nova identidade nacional que substituiu a identidade israelita tradicional. Essa nova identidade é construída cada vez mais sobre uma rejeição ou mesmo ódio ao próximo, em seu formato europeu de direita. O declínio da herança cultural anterior cedeu lugar para um viver numa "mansão numa selva" -- como o ex- primeiro-ministro Ehud Barak descreveu uma vez a vida em Israel.
A legislação sobre a carne de porco é uma história fascinante, mas não é uma história sobre liberalismo. Em vez disso, é a saga em curso da face mutante do nacionalismo em Israel.
A ascensão e queda do porco em Israel é, portanto, um exemplo ou estudo de caso na interface entre legislação, religião, sociedade e cultura.
"Os porta-vozes dominantes que propuseram a legislação sobre o tema eram na verdade políticos religiosos, mas sua argumentação invocava o pensamento cultural comunitário e não sentimentos religiosos", escreve Barak-Erez. Eles se dirigiam ao Yiddishkeit (identidade étnica judaica) do movimento operário de Israel na época.
A legislação proposta foi explicada através da posição que o porco tinha na história judaica. Por exemplo, o líder do Sionismo Operário anterior ao Estado de Israel, Berl Katznelson -- conhecido não por sua devoção à tradição religiosa judaica -- aderiu a apenas duas proibições tradicionais, que via como parte dos "direitos de propriedade nacional" dos judeus: abster-se de comer carne de porco e jejuar no Tisha B’Av em memória à destruição dos templos em Jerusalém [o Tisha B'Av, dia 9 do mês de Av, 11° mês do calendário judaico, é um dia de jejum e luto devido a dois dos mais trágicos eventos da história judaica: a destruição pelos babilônios do Templo de Salomão, ou Primeiro Templo de Jerusalém, no ano 586 a.C., e a destruição do Segundo Templo pelos romanos no ano 70 da nossa era].
O falecido primeiro-ministro Menachem Begin também via o porco como uma questão relacionada à "alma nacional". O primeiro primeiro-ministro de Israel, David Ben-Gurion, entretanto, tinha reservas sobre a importância do simbolismo do porco por vê-lo como um evento significativo "tardio", pós-bíblico.
Barak-Erez faz distinção entre a legislação sobre a carne de porco e outras leis religiosas, devido à ênfase em aspectos culturais nacionais das provisões legais relativas à carne de porco. Pode-se perguntar, entretanto, se essa distinção é tão nítida: as leis sobre casamento e conversão, por exemplo, não são também parte da história nacional? É uma coincidência o fato de que o estado escolha impor tradição religiosa naqueles aspectos da vida que são definidores de rumos para a nação?
Saindo do segundo plano
O interesse por legislação sobre carne de porco declinou nos anos 1970. Barak-Erez diz que isso se deu porque o consumo de carne de porco em Israel era mínimo àquela época; o racionamento havia terminado, e a grande imigração [de judeus] da União Soviética -- entre os quais o consumo de carne de porco era comum -- não havia ainda começado. Além disso, a atenção dos partidos religiosos do país estava concentrada em promover os assentamentos nos territórios e eles não tinham tempo para lidar com legislação religiosa, afirma a juíza da Suprema Corte. No final dos anos 1970, no entanto, o assunto ressurgiu.
Deve-se observar que Tel Aviv foi na realidade a primeira cidade israelense em que uma lei orgânica municipal foi promulgada tornando ilegal a venda de carne de porco -- já em 1954. Essa lei foi na realidade promulgada em resposta a uma decisão da Alta Corte de Justiça, que definiu que governos municipais não tinham autoridade para agir com base em motivos religiosos.
Barak-Erez liga a retomada do tema nos anos 1980 à ascensão de partidos políticos setoriais. O teor do discurso público de então já havia mudado, com porta-vozes seculares resistindo a uma expansão das leis contra a carne de porco, considerando-a uma coerção religiosa. "A disposição de entender essas proibições como uma expressão legítima de um símbolo nacional era quase inteiramente inexistente em seus comentários", observa Barak-Erez.
No início dos anos 1990, foram promulgadas novas Leis Básicas sobre a liberdade de emprego/trabalho e a dignidade humana, levando a uma erosão adicional das proibições. Depois disso, as cortes permitiam restrições à venda de carne de porco apenas em áreas onde a maioria da população fosse religiosa.
O debate público deslocou-se antes para considerações sobre coerção religiosa e direitos comunitários do que sobre a importância de símbolos e da identidade nacional. Israel tornou-se menos unificado e mais tribal, escreve Barak-Erez -- marcado de um lado por um aumento em liberalismo, liberdades individuais e multiculturalismo e, de outro lado, por um declínio da identidade nacional tradicional.
O porco deixou de ser um símbolo nacional para tornar-se claramente um símbolo religioso. "Em uma realidade em que a cultura judaica e a língua hebraica dominam o espaço público, há aqueles que são da opinião de que a importância de símbolos que antes eram necessários para estabelecer uma unidade comunitária era declinante em qualquer hipótese", diz Barak-Erez. O desgaste da imposição de uma proibição à venda de pão durante a Passover [a Páscoa judaica] foi outro exemplo desse fenômeno, acrescentou ela.
"A proibição em relação à carne de porco assumiu seu significado simbólico nos contextos de humilhação e de subserviência nacionais", escreve a juíza referindo-se à experiência dos judeus da Diáspora [processo de dispersão forçada dos judeus pelo mundo e a consequente formação de comunidades judaicas fora de Israel]. "A maioria dos líderes públicos de Israel nos anos iniciais do país não era de sabras (judeus nascidos em Israel), e eles ainda carregavam consigo lembranças (e talvez cicatrizes) da vida na Diáspora e os insultos ligados ao porco. Ao longo do tempo, isso foi desaparecendo".
Essa afirmação pode ser de particular importância. O porco pertence a um mundo no qual os judeus se distinguiam da maioria não judia no meio da qual viviam. Por outro lado, a identidade nacional judaico-israelense se baseia em um sentimento de maioria.
Muita água correu desde os dias de Berl Katznelson e Begin até o ano passado, quando o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu foi visto jantando com o magnata do jogo Sheldon Adelson em um restaurante em Nova Iorque que serve carne de porco. A nova identidade nacional exige cada vez menos tradição judaica, mas não é menos nacional.
Não se trata de multiculturalismo mas, em vez disso, de uma nova identidade nacional que substituiu a identidade israelita tradicional. Essa nova identidade é construída cada vez mais sobre uma rejeição ou mesmo ódio ao próximo, em seu formato europeu de direita. O declínio da herança cultural anterior cedeu lugar para um viver numa "mansão numa selva" -- como o ex- primeiro-ministro Ehud Barak descreveu uma vez a vida em Israel.
A legislação sobre a carne de porco é uma história fascinante, mas não é uma história sobre liberalismo. Em vez disso, é a saga em curso da face mutante do nacionalismo em Israel.
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