sábado, 2 de maio de 2015

A polêmica sobre a terceirização

Sentindo-me meio perdido nesse tiroteio sobre a terceirização (PL 4330) que ocorre no país, resolvi ler e ouvir um pouco mais sobre o assunto. O tema, no meu fraco entender, não é simples nem fácil, há muitas nuances nele.

Comecei minha abordagem identificando primeiro quem é (ou está) contra e a favor do projeto de lei (PL 4330) que está no Congresso, pois acredito muito no dito "diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és". A primeira conclusão já desperta, no mínimo, curiosidade. Entre os que apoiam decididamente o projeto estão, por exemplo, a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de S. Paulo), a Força Sindical, e as Organizações Globo -- esta já uma associação de interesses um tanto ou quanto heterodoxa e, a meu ver, suspeita. Entre os que absolutamente rejeitam o projeto estão, por exemplo, a CUT (Central Única dos Trabalhadores), o PT, e o Judiciário trabalhista (Anamatra - Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, e o TST - Tribunal Superior do Trabalho) -- essa união de forças é inequivocamente mais coerente e homogênea que a outra.

As divergências são profundas. Uma delas é que o projeto da Câmara eliminaria a atual insegurança jurídica dos ditos 12 milhões de terceirizados hoje existentes no país. Há gente de peso na área trabalhista que rejeita absolutamente essa tese, e afirma que a insegurança irá até aumentar se o projeto passar como está. Este é um tema de difícil percepção para o cidadão comum. 

Outra divergência séria e radical refere-se à admissibilidade de estender a terceirização para as atividades-fim das empresas, não limitando-a apenas às atividades-meio. Aqui, já não é difícil perceber os perigos inerentes à questão. Pode-se chegar ao extremo de se ter uma empresa constituída apenas por sua diretoria, daí para baixo todo mundo ser terceirizado. O processo de certificação da qualidade da mão de obra passa a ser muito mais difuso e muito menos confiável. Você pode ter uma empresa de engenharia cujo corpo de engenheiros não foi avaliado e "testado" por ela mesma, pois passa ser tarefa da empresa de terceirização. Você pode ter uma empresa de aviação cujos pilotos não são mais de sua responsabilidade direta, mas da empresa de terceirização. O risco de falhas aumenta tremendamente, a possibilidade de fraudes em certificados de qualidade e qualificação se ampliará, o controle disso será mais complicado e custoso, e os problemas legais -- principalmente trabalhistas -- crescerão exponencialmente. Processos eventuais por perdas e danos, por exemplo, certamente não serão simplificados, longe disso. 

O país verá uma superpopulação de empresas de terceirização que, entre outros fatos, alertam especialistas, se caracterizam por existência efêmera e frequentemente deixam seus trabalhadores absolutamente órfãos do ponto de vista legal. 

Os opositores ao projeto da Câmara conseguiram uma primeira vitória, que foi a retirada da extensão da terceirização da atividade-fim em empresas públicas. Confesso que lamentei isso, porque seria um excelente remédio -- com todos seus senões e efeitos colaterais -- para acabar com os concursos públicos feitos para ampliar os cabides de emprego pagos pelo contribuinte. 

O posicionamento das duas principais centrais sindicais nacionais -- a CUT e a Força Sindical (FS) -- em lados opostos da mesa de discussão é uma dessas coisas kafkianas tupiniquins que o simples conceito de "democracia" não consegue explicar, principalmente quando uma delas (a FS) se junta ao principal grupo empregador do país, a Fiesp, que acolhe empresas contra as quais historicamente se dão grandes embates trabalhistas no Brasil, basta ver as disputas entre metalúrgicos e a indústria automobilística, por exemplo. Pela argumentação jurídica apresentada mais abaixo a terceirização, se aprovada como está, mudará de maneira imprevisível -- para pior, segundo os juízes trabalhistas --  o enquadramento, as dimensões e as repercussões de tais embates. Essa divergência absoluta entre a FS e a CUT em tema tão sensível e importante para os trabalhadores é, no mínimo, bizarra e intrigante, e permite concluir ou desconfiar de que existe algo de podre no reino da Dinamarca ...

O lado jurídico da discussão é mais complicado para o simples mortal, mas as reiteradas e categóricas manifestações da Justiça Trabalhista contra o projeto da Câmara não são meros exercícios de retórica e não podem ser ignoradas sob qualquer pretexto. O fato de o processo de tramitação e aprovação do projeto no Congresso estar entregue às manobras e humores de figuras de baixíssimo relevo como Eduardo Cunha e Renan Calheiros -- ambos com pendências com a Justiça e sujeitos à perda dos mandatos e até de prisão -- é simplesmente assustador. Some-se a isso uma presidente como Dilma NPS (Nosso Pinóquio de Saia) -- que, por sinal, acaba de terceirizar seu mandato -- inexpressiva e refém daquela dupla de baixo coturno e dos partidos da coalizão do governo, e o caos está estabelecido.

Um projeto que dormiu 12 anos na Câmara e, de repente, entra em pauta superacelerada com excesso de polarização e um mínimo de discussão ponderada e equilibrada não pode deixar ninguém tranquilo. E a troika que está no caminho crítico do projeto -- Eduardo Cunha, Renan Calheiros e Dilma NPS -- é de um vazio de competência e de equilíbrio simplesmente apavorante. 

Como disse acima, a alta esfera do Judiciário Trabalhista se manifestou pública e inequivocamente contra a terceirização como proposta. A Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho) já o fez repetidas vezes. Em artigo (Terceirização para todos. Bom para quem?)  publicado no jornal Valor Econômico de 15/4 o diretor de prerrogativas e assuntos jurídicos da Anamatra, juiz Guilherme Guimarães Feliciano, afirma: 

Os defensores do projeto dizem que isso calará as Cortes trabalhistas, porque já não haverá a margem de insegurança jurídica ditada pela dicotomia entre atividade-fim e atividade-meio. Falso, pois o litígio apenas migrará. As cortes trabalhistas não discutirão mais se a atividade terceirizada é, para a empresa tomadora de serviços, finalística ou acessória. Discutirão se de fato ela é fornecida por uma empresa "especializada", que detenha "know-how" diferenciado para aquela atividade, ou se é apenas um simulacro de empresa, sem qualquer especialização técnica, que existe basicamente para fornecer mão de obra comum à(s) tomadora(s). Assim, p. ex., a varrição de dependências configuraria um "serviço técnico especializado"? E o atendimento de balcão? Tudo isto, ademais, com uma agravante: sobre esse novo "paradigma", o Brasil não tem qualquer jurisprudência acumulada. Tudo poderá vir. A insegurança jurídica triplicará.

Dizem também que haverá avanços na proteção aos trabalhadores. Ledo engano. Esse modelo de ter-ceirização ampla e irrestrita, em qualquer modalidade de atividade, fere de morte garantias constitucionais como a isonomia, porque admite que, em uma mesma linha de produção, haja trabalhadores desempenhando idênticas funções, mas recebendo diferentes salários. Permite burlar a garantia constitucional da irredutibilidade de salários, na medida em que um trabalhador possa ser demitido da empresa tomadora e recontratado, para as mesmas funções, por intermédio da prestadora, mas com salário menor.

E, não bastasse, representa violação direta ou oblíqua a diversas convenções internacionais das quais o Brasil é parte, como aConvenção 111, que repudia o tratamento discriminatório entre trabalhadores, e as Convenções 98 e 151 da OIT, que tratam da proteção contra atos antissindicais e da sindicalização no serviço público. A contratação de empregados e funcionários terceirizados enfraquece os sindicatos, ao retirar dos trabalhadores a sua unidade e capacidade de mobilização, além de sua própria consciência de classe. Afinal, trabalhadores nas metalúrgicasjá não serão metalúrgicos, assim como trabalhadores em bancos já não serão bancários; tornar-se-ão, paulatinamente, trabalhadores em empresas de locação de mão de obra.

Por fim, caro leitor, se não se sente pessoalmente atingido por nada do que foi dito aqui, poderia até me indagar: o que me interessa nesta discussão? Sacrificar-se-ão os direitos alheios, não os seus. Você também estará enganado. A vingar o PL nº 4.330, daqui alguns anos, ao necessitar de serviços de um hospital, você já não saberá se o médico que o atende ou opera foi selecionado e contratado pela instituição nosocomial de sua escolha, ou se é um terceirizado, admitido porque, na terceirização, o "preço" dos serviços cai surpreendentemente. Ao adentrar em um avião, já não terá qualquer garantia de que o piloto ou copiloto foi selecionado, contratado e treinado pela companhia aérea da sua preferência, ou se é alguém fornecido, a baixo custo, por uma empresa prestadora de "serviços técnicos especializados" de pilotagem de aeronaves. Que tal?

Pense-se com espírito de solidariedade, pense-se com o próprio umbigo, o modelo proposto pelo PLnº 4.330 é desastroso. Ponto final.

Em 7 de abril de 2015, a Anamatra divulgou a seguinte Nota Pública: 


A Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA –, tendo em vista o debate do PL 4330/2004, que trata da terceirização em todas as atividades empresariais, vem a público reafirmar sua posição contrária ao referido projeto de lei, tendo em vista que terceirização indiscriminada ofende a Constituição Federal, na medida em que discrimina trabalhadores contratados diretamente e os prestadores de serviços contratados por intermediários, regredindo garantias conquistadas historicamente. 
Os juízes trabalhistas, que lidam com a realidade do trabalho no Brasil, sabem que a prestação de serviços terceirizados no Brasil é fonte de rebaixamento salarial e de maior incidência de acidentes de trabalho. 

A proposta em tramitação, além de comprometer seriamente os fundos públicos como o FGTS e a Previdência Social, não protege os trabalhadores, trazendo apenas preocupações e perplexidades diante do quadro atual, já delicado por razões conjunturais.
Espera a ANAMATRA que o Congresso Nacional examine a matéria com a necessária prudência.

Brasília, 7 de abril de 2015.

Já em 27 de agosto de 2013, o TST - Tribunal Superior do Trabalho se pronunciou, em longo e fundamentado ofício ao deputado Décio Lima, presidente da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, sobre sua posição contrária ao Projeto de Lei n° 4.330-A/2004, que trata da terceirização no Direito brasileiro. O ofício é assinado por todos os membros do TST. Resumidamente (por mim), em sua argumentação, o TST afirma que: - i) o PL autoriza a generalização plena e irrefreável da terceirização na economia e na sociedade brasileiras, no âmbito privado e no âmbito público; - ii) o PL negligencia e abandona os limites à terceirização já sedimentados no Direito brasileiro, que consagra a terceirização em quatro hipóteses; - iii) a diretriz acolhida pelo PL, ao permitir a generalização da terceirização para toda a economia e a sociedade, certamente provocará gravíssima lesão social de direitos sociais trabalhistas e previdenciários no País, com a potencialidade de provocar a migração massiva de milhões de trabalhadores hoje enquadrados como empregados efetivos das empresas e instituições tomadoras em direção a um novo enquadramento como trabalhadores terceirizados, deflagrando impressionante redução de valores, direitos e garantias trabalhistas e sociais; - iv) o rebaixamento dramático da remuneração contratual de milhões de trabalhadores, além de comprometer o bem estar social seu e de suas famílias, afetará fortemente de maneira negativa o mercado interno de trabalho e de consumo; - v) essa redução geral e grave da renda do trabalhador brasileiro -- injustificável a todos os títulos -- irá provocar também severo problema fiscal para o Estado ao diminuir, de modo substantivo, a arrecadação tributária e previdenciária no Brasil; - vi) a generalização e o aprofundamento da terceirização trabalhista, estimulados pelo Projeto de Lei, provocarão também sobrecarga adicional e significativa ao Sistema Único de Saúde (SUS), já fortemente sobrecarregado, porque os índices de acidentes de trabalho e de doenças ocupacionais/profissionais são muito mais elevados nos empregados terceirizados do que nos empregados efetivos das empresas tomadoras de serviços. 

Parece-me estar plenamente configurada e justificada a necessidade premente de uma reavaliação serena, equilibrada e profunda do PL 4.330 aprovado na Câmara dos Deputados, mesmo que isso tenha que ser feito com a ajuda insalubre de Renan Calheiros et caterva

Ver também:

Empresa de prestação de serviço vai ser o melhor negócio do mundo







Um comentário:

  1. Esta questão da terceirização esconde uma questão maior: no Brasil há uma generalizada falta de mão-de-obra especializada. De que adianta terceirização se não há a quem contratar?

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