segunda-feira, 18 de maio de 2015

Banho, o berço da intimidade (II)

[Ver postagem anterior. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade]

Roteiro da exposição

2. A toalete "clássica" -- Toalete seca, toalete social



Abraham Bosse (segundo modelo de) -- Vista (mulher à sua toalete), após 1635. Tours, Museu de Belas Artes -- Ao se levantar, uma mulher devidamente penteada examina suas vestes refletidas no espelho. Imagem simbólica da toalete clássica: o corpo vestido sugere a ausência de banho; os objetos de "toalete" -- leque, coxim, caixas diversas -- confirmam os gestos dos cuidados pessoais, como a roupa interior branca delicadamente segurada pela criada, indicando a "toalete seca". Lugar fechado, enfim, mas não completamente isolado pois um adolescente, à janela, observa o céu com uma luneta a poucos passos da cama. -(Foto: Google)

No século 17, o banho desaparece das práticas e das representações. O gesto quotidiano de asseio dispensa a água, que é rara, de má qualidade e que é considerada passível de facilitar o aparecimento de problemas fisiológicos ou contágios. Jean-Baptise de la Salle o confirma mais uma vez em todo o início do século seguinte: "Faz parte do asseio limpar o rosto todas as manhãs com um lenço branco, para eliminar sua sujeira. Não é bom se limpar com água, porque ela torna o rosto sensível ao frio no inverno e ao bronzeamento no verão". Na falta das abluções, que se limitam mais frequentemente às mãos, os gestos, codificados, têm como objetivo o penteado, a maquiagem, o ato de se vestir. O arquétipo de lugar para isso é o quarto, mais precisamente uma mesa: reservada para esse fim, ela é coberta por um tapete ao qual se superpõe um tecido fino -- a pequena tela ("toilette") propriamente dita -- sobre o qual são dispostos um espelho e unguentos. Essa toalete pode ser uma ocasião social: a mulher não está sozinha, mas existe uma promiscuidade, ela permite criados e visitantes, inclusive do outro sexo. 

3. Solitárias ilustres



Georges de La Tour, La Femme à la puce [A mulher e a pulga], 1638. Nancy, Museu Lorrain. O lorreno [da região francesa de Lorraine] La Tour pratica uma pintura de cores sombrias, de figuras de realismo marcante, na qual os objetos são modestos e os gestos são contidos. No século 17, a raridade das abluções favorece a sevandija [nome comum a todos os parasitos e vermes imundos]. Na elite da sociedade, a troca das roupas íntimas é considerada uma maneira de evitar a invasão de piolhos e pulgas.  Tal luxo é inacessível para esta mulher, certamente uma criada humilde, reduzida a procurar insetos sobre ela e esmagá-los. O tema, trivial, é tratado com um comedimento e uma sobriedade que o elevam ao sublime.  - (Foto: Google)




Nicolas Régnier, Jeune femme à la toilette [Mulher jovem à toalete], cerca de 1626, Lyon, Museu de Belas Artes. A cena parece clássica: espelho, perfumes, unguentos, maquiagens, pente ou jóias entulham uma mesa luxuosa como a roupa da mulher. Objetos frágeis também, tal a beleza [da mulher]. A pintura "séria" do século 17 gosta de inverter a aparência: lembrar qualquer declínio possível sob a estética triunfante, sublinhar a "obra do diabo" sob o excesso de atenção, lembrar a imundície da carne como se percebe pelo que parece ser um penico colocado atrás do espelho. - (Foto: Google)

No norte da Europa, no século 17, a toalete permite a oportunidade de representações menos convencionais que na França. O nu "resiste" mas, sob a influência ao menos indireta do caravagismo [de Caravaggio, pintor italiano nascido no século 16 e falecido no século 17], se impregna de um realismo novo: as modelos, então, são as criadas ou talvez as companheiras dos pintores. Jovens burguesas também, provocantes, se enfeitam diante de seus espelhos. A água, sempre, é a grande ausente dessas toaletes. Os enquadramentos compactos reforçam a impressão de intimidade, quer a mulher, uma criada, seja remetida à sua solidão (La Tour), quer o cuidado de se fazer bela a isole do resto do mundo (Régnier).

4. Ideias dominantes: abluções parciais, discrições e indiscrições




François Eisen, Jeune femme à sa toilette, 1742. Abbeville, Museu d' Abeille. Esta cena aparentemente insignificante é, na realidade, bastante ousada. Um bourdalou [nome dado nos séculos 17 e 18 aos penicos ovais, de pequenas dimensões, de cerâmica] ou em outras palavras um penico adaptado à anatomia feminina aparece em primeiro plano, e o cão se aproxima dele para cheirá-lo. Ao fundo, uma criada enche um bidê; nos anos 1740, trata-se de um móvel novo, de reputação bastante inconveniente. A patroa, corada ainda dos prazeres da noite, vai fazer sua toalete íntima. A criada, certamente, irá ajudá-la; mas afasta uma meninazinha, cujo olhar inocente deve ignorar essas práticas.  - (Foto: Google)

Com o retorno progressivo da água, no século 18, a diversidade de gestos íntimos induzidos pelas abluções torna necessária a existência de uma prática mais "reservada".  Se inventam acessórios, como o pedilúvio ou o bidê, muito longe ainda de qualquer banalização da banheira. Com nova sensibilidade, uma fase discreta da toalete se impõe, que admite ainda a presença de criadas. Os momentos de cuidados especiais se dividem, gerando essa primeira toalete "privativa" e uma segunda, que mantém seu caráter social. A promiscuidade antes tolerada, já não o é mais. Resta o fato de que a configuração da casa, que não inclui ainda espaços específicos, e a própria novidade dos ritos da ablução geram "acidentes" e indiscrições cultivados:  o intruso que entra inadvertidamente, o voyeur que se dedica a observar o que não deveria perceber, a porta entreaberta atrás da qual pode se esconder qualquer um, se tornam motivos obrigatórios das obras. 



               

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1. François Boucher, La Gimblette, 1742? Ou anos 1760? Karlsruhe, Staatliche Kunsthalle Karlsruhe
2. François Boucher, La jupe relevée (A saia levantada), 1742? Ou anos 1760? Coleção particular.
3. François Boucher, L' enfant gâté (A criança mimada),  1742? Ou anos 1760? Karlsruhe, Staatliche Kunsthalle Karlsruhe
4. François Boucher, L'oeil indiscret (Olho indiscreto), ou La femme qui pisse (A mulher que urina), 1742? Ou anos 1760? Coleção particular.

No século 18, os espaços se particularizam. As mulheres têm seu toucador, os homens têm seu gabinete ou escritório privativo, que se tornará o espaço para fumantes. Nessas peças, os quadros que ornamentam as paredes são habitualmente licenciosos. Os mais libertinos ficam escondidos: por uma cortina (vitrine na mesma sala [do museu]: Monumento do Traje] ou por um outro quadro, como será o caso de A Origem do Mundo, de Courbet. Para o financista Randon de Boisset, Boucher pintou esses quatro quadros de modo que formem obras  a serem"cobertas"(os quadros demasiado ousados para que sejam mostrados de maneira permanente) e  "descobertas" (as versões que escondem as outras). As damas em verde e rosa que, respectivamente, brincam com um cachorro e fazem companhia a uma criança, dissimulam uma a mesma pessoa se levantando de uma cadeira vazada, visível à esquerda [quadro 4]; a outra, esconde a mesma pessoa urinando num penico [quadro 2]. Por trás desta última, um "voyeur" desfruta do que vê, seguramente em um espelho. A trivialidade dos temas nas obras "descobertas" (até o cachorro que cheira a dama) é atenuada pela exibição virtuosa das fitas e rendas, pela sutileza das cores e pelo colorido rosado das carnes.

5. Depois de 1800, o fechamento do espaço

No início do século 19, o conceito do que é privativo muda profundamente. A Sra. de Genlis, autora do Dicionário de Etiquetas (1818), escreve: "é preciso confessar que havia algumas vezes coisas de muito mau gosto ... Por exemplo, o costume entre as mulheres de se vestirem diante dos homens e de se pintarem no banho". Admitida anteriormente, a presença de outra pessoa, visitante ou mesmo criado(a), não é mais aceita, e quem se lava (ele ou ela) fecha cuidadosamente a porta contra qualquer olhar estranho. Orquestrando essa "fuga", os pintores, que aspiram ao mesmo tempo a um aumento de grandeza, rompem com os temas libertinos do século anterior e limitam suas representações com gestos íntimos no preparo do penteado ou do vestuário. Somente a gravura, representação popular que prospera graças à imprensa ilustrada, ousa ainda abordar os corpos. E ainda o faz com um erotismo discreto: ela sugere e ironiza, de preferência nada mostrando. 

6.Fim do século 19: particularização do lugar e corpo novo da banhista



Edouard Manet, Femme nue se coiffant (Mulher nua se penteando), 1879, coleção particular.  
A modelo de Manet é enquadrada pelo tronco. A mulher nua manteve sua pulseira e, suspeita-se, uma liga -- ela vestiu suas meias: situação discretamente indecorosa. A silhueta é pesada: embora o busto seja correto, nota-se uma prega acima do umbigo, a carne se acumula sob o braço levantado. A decoração, esboçada, mostra uma cortina protegendo um leito em que são entrevistas almofadas. O momento focado, evidentemente íntimo, é carregado de uma sensualidade que é exaltada pelo toque do pincel, evitando o "acabamento" de uma pintura longamente trabalhada.



Théophile Alexandre Steinlen, Le Bain (O Banho), 1902, Museu Cantonal de Belas Artes de Lausanne - (Foto: Google).

No terceiro quarto do século 19, as cidades, inicialmente na Inglaterra e em seguida apenas na França, se lançam à "conquista da água". Foi preciso tempo para que a "água corrente" fosse distribuída a todos os imóveis, e mais ainda para que chegasse a todos os pavimentos e a todas as moradias. Mas a água, qualquer que fosse, torna-se um bem mais acessível e a prática de abluções quotidianas, uma exigência higiênica. A "mulher no banho", então, torna-se um tema pictórico. O gênero do nu se encontra renovado: os corpos novos são imperfeitos, às vezes pesados, envelhecendo ou adolescentes, muito agressivos, o oposto das anatomias ideais do nu acadêmico. Os gestos são novos, algumas vezes bruscos, sem elegância, tampouco assumem poses tradicionais e, invocando humores e odores, exalam uma sensualidade mais animal. A decoração íntima do quarto ou da sala de banho, entulhada de jarros e bacias, é trivial e por isso "moderna". 

7. O banho em todas as suas condições modernas



Edgard Degas, Femme dans son bain s' épongeant la jambe (Mulher em seu banho lavando a perna com uma esponja), cerca de 1883, Paris, Museu d' Orsay


Edgard Degas, Après le bain, femme nue couchée (Após o banho, mulher nua deitada), 1885-90, Suíça, Coleção Nahmad. O trabalho com pastel fornece a Degas o meio ideal para invocar a sensualidade do corpo feminino. Ele desenha com a cor, a pose em estrias, em manchas, transforma as pulverulências em vibrações: ele comprime e acaricia, como tocaria e acariciaria o corpo. Deitada sobre sua toalha ou mesmo no chão, sobre um tapete que se supõe macio, entre uma bacia e uma colcha, a banhista após o banho se abandona ao sono, seus chinelos, simples manchas vermelhas, jogadas perto de um penhoar ou de uma toalha felpuda atrás dela.

No final do século 19, Degas realiza uma nova revolução na representação do banho. Temas e acessórios não são novos: a mulher em todas as posições possíveis, a bacia e o jarro no quarto ou na saleta de toalete, depois a banheira no banheiro. Mas, o tratamento é inédito, pelos pontos de observação (baixos ou profundos) e enquadramentos (fechados em limites estreitos sobre os corpos) e pelo tratamentos das superfícies e das cores que, em particular nas obras com pastel, invoca a sensação que transmitem um corpo cheio de vida, uma cabeleira suave, e a voluptuosidade ao tocar toalhas, tapetes e outros tecidos. Depois de 1900, Pierre Bonnard retoma essa estratégia de realce da carne pela cor. A decoração evolue ao longo do tempo: Martha, sua companheira, está na bacia, depois no banheiro. Uma relação nova, entretanto, se estabelece entre a mulher e o banho. Se trata menos de se lavar que de sentir, menos de se vestir e se enfeitar que de esquecer, ou de preferência se reencontrar. O banheiro se torna um refúgio contra o mundo, o banho, um tempo onde o tempo não existe mais.   



Pierre Bonnard, Nu na banheira, coleção particular  - (Foto: Google). Em meados dos anos 1920, Bonnard pinta suas primeiras "banheiras" a óleo e na escala 1:1, ou com guache em formato modesto, como aqui. Os corpos nus escorregam, deslizam na água com uma languidez inédita. Imerso quase que completamente, o corpo se funde, se dissolve nas cores, e as distorções do espaço retomam forma na luz. A água muda de imagem. Ela não é mais higiene, mas "relaxamento" -- a acepção psicológica da palavra data do século 20.



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