[A reportagem traduzida abaixo foi publicada em 08/4 no site Spiegel Online International. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]
Um julgamento em andamento em Colônia evidencia a extensão da infiltração da Máfia italiana na sociedade alemã e no setor de construções do país. Críticos reclamam que as autoridades têm sido demasiado negligentes em agir energicamente contra as atividades da Máfia.
No início do verão de 2012, Gabriele S., um pequeno negociante, desabafou suas frustrações no telefone. "Juro a você, vou arrancar a cabeça dele", vociferou o nativo da Sicília para um informante. "Ele é um tremendo filho da mãe"! Ele queria matar aquele homem, "erradicá-lo".
Essa conversa agitada, que estava sendo ouvida pela polícia de Colônia, tornou-se muito valiosa para as autoridades da comissão especial "Scavo" ["escavação", em italiano] -- dando-lhes uma visão privilegiada do funcionamento interno de dois supostos grupos mafiosos no estado de Rhine-Westphalia do Norte, no norte do país. A conversa mostrou aos investigadores como os membros desses grupos dividiam seus territórios e resolviam ou ampliavam conflitos.
É preciso ter em conta que Gabriele S. -- um ex-pastor na pequena cidade de Licata -- não tinha apenas um temperamento impetuoso, ele tinha também interesses criminosos. De acordo com as investigações, dirigia uma rede de empresas de lavagem de dinheiro (shell companies) e ajudava a trapacear em muitos milhões de euros o Estado e a agência de benefícios sociais. Ele e três cúmplices estão atualmente sob julgamento na corte regional de Colônia por, entre outras coisas, fraude fiscal organizada. A sentença é esperada para esta quarta-feira [09/4].
Os sicilianos são acusados de possuir 17 empresas aparentemente relacionadas ao setor de construções, e de empregar laranjas como gerentes. De acordo com o indiciamento, esses laranjas usavam as empresas para lavar dinheiro em troca de uma remuneração. O caso de Gabriele S. e de seus cúmplices parece ser um paradigma do setor de construções que, de acordo com um estudo interno do Birô de Investigações Criminais do Estado de Rhine-Westphalia do Norte (LKA, na sigla alemã), tornou-se amplamente infiltrado de empresas fictícias. Nas regiões do Reno e do Ruhr, essas empresas fictícias são em sua maioria dominadas por italianos do sul que, por sua vez, de acordo com o relatório, têm frequentemente laços com a Cosa Nostra.
Fortes conexões com a máfia italiana
Os desdobramentos do caso têm deixado em muitos a indagação se parte da economia alemã estaria sob o domínio da Máfia. Uma investigação conjunta da emissora radiofônica pública Westdeutscher Rundfunk [Rádio do Oeste Alemão], do editor de jornais Funke Mediengruppe e da Spiegel encontrou fortes conexões entre fraudadores da indústria de construção e o crime organizado italiano. Investigações em muitos estados alemães compartilham essa avaliação.
"Para a Máfia, a Alemanha é um lugar para, ao mesmo tempo, relaxar e agir", disse o presidente do LKA para Baden-Württemburg em Stuttgart, Dieter Schneider. "É um lugar onde indivíduos procurados se escondem das autoridades, mas é também um lugar onde crimes são planejados e cometidos". O objetivo dos criminosos italianos é, entretanto, permanecer sem ser detectado o máximo possível. Segundo Schneider, um banho de sangue como o que deixou seis mortos em Duisburg em 2007 deve ser considerado como um "acidente de trabalho". O objetivo principal dos clãs na Alemanha tem sido entrar na economia legal e nos altos escalões da sociedade.
Gabriele S. é acusado de estar profundamente envolvido em atividades ilegais. Suas empresas laranjas cobraram por trabalho que nunca foi feito, em troca de uma taxa de corretagem de 8%. De acordo com as acusações, o dinheiro era transferido para o siciliano e seus cúmplices em troca de trabalho fictício e depois devolvido aos clientes, descontada a parcela dos criminosos. Os clientes poderiam então usar esse fundo destinado a fins ilícitos para pagar seus trabalhadores ou subornar autoridades.
Provocando o 'declínio do setor de construção''
São consideráveis as dimensões desse negócio fraudulento, através das chamadas faturas pró-forma. De acordo com estimativas dos investigadores, essas atividades custam ao estado cerca de € 1,5 bilhão (cerca de US$ 1,2 bilhão) em perdas fiscais, e aproximadamente € 2 bilhões em contribuições de seguridade social não pagas. O sindicato trabalhista Ver.di fixa as perdas anuais em cerca de € 10 bilhões.
De acordo com relatório emitido pelo Birô Estadual de Investigações Criminais de Düsseldorf, as gangues operam como os clãs mafiosos italianos. Elas reproduzem na Alemanha as estruturas organizacionais italianas, e usam de intimidação e violência para garantir um mercado lucrativo.
De acordo com as autoridades, as consequências para a economia local são desastrosas. O relatório alega que as atividades da Máfia estão provocando o "declínio de um importante setor de construção na Alemanha". Os empresários honestos, continua o relatório, não conseguem competir no longo prazo com os preços das empresas que utilizam mão de obra ilegal. E ainda que esse problema já seja conhecido há tempo, não existe ainda um sistema efetivo para controlá-lo.
De modo geral, os promotores alemães não parecem estar bem posicionados para a luta contra a Máfia. Em um resumo confidencial da situação, o Birô Federal de Polícia Criminal (BKA, na sigla alemã) criticou o Estado alemão por raramente detectar os ganhos desonestos dos mafiosos. Segundo os investigadores, os clãs conseguiram € 123 milhões nos últimos 10 anos apenas com seus negócios ilegais. Menos de € 8 milhões disso foi confiscado -- o resto ficou com os criminosos. De acordo com o BKA, isso significa uma "grande deficiência" e impediu que houvesse tentativas de quebrar as estruturas da Máfia.
Autoridades impotentes
A impotência das autoridades alemãs pode explicar porque os criminosos italianos se sentem tão à vontade na Alemanha. De acordo com o resumo do BKA, pelo menos 460 membros suspeitos da Máfia vivem na Alemanha, a maioria deles no estado de Baden-Württemberg, seguido dos estados de Rhine-Westphalia do Norte, Bavaria e Hesse.
Enquanto a siciliana Cosa Nostra está seriamente envolvida com o setor de construção, os membros da Camorra na Alemanha preferem comercializar produtos de marca de fabricação já interrompida. Segundo a análise do BKA, esse produtos falsos são produzidos em fábricas em Nápoles e depois estocados na Alemanha. Aqui, os vendedores apanham as bolsas, os quebra-cabeças e os casacos de couro e os vendem para os clientes -- que, em vez de certificados de garantia de autenticidade, recebem grandes descontos. A receita resultante vai então para o chefe regional do clã da Camorra, descontada da porcentagem destinada aos mafiosos alemães.
"É muito difícil para as autoridades investigadoras penetrar nessas estruturas fortemente fechadas", diz Schneider, chefe do LKA de Baden-Württemberg. Sebastian Fiedler, da Federação de Oficiais de Polícia Alemães, alega que a leniência das autoridades legais está piorando o problema. "Na Alemanha, estamos fazendo as coisas mais fáceis para a Máfia do que em qualquer outro lugar no mundo". Mas, ele alega que os clãs são verdadeiramente vulneráveis em um ponto: seu dinheiro.
Isso porque as gangues movimentam bilhões de euros. Segundo cálculos do instituto italiano de pesquisas Demoskopik, a máfia calabresa 'Ndrangheta -- que se especializou em tráfico de drogas -- amealha € 53 bilhões por ano, em grande parte graças às drogas. Há apenas dois países fora a Itália em que essa organização é mais ativa do que na Alemanha: Austrália e Colômbia. [Ver postagem anterior sobre a 'Ndrangheta e outra postagem sobre a Máfia e o escândalo do lixo tóxico na Itália.]
Na Alemanha, o clã da 'Ndrangheta lida também com comida gourmet italiana. Eles adulteram azeite de oliva, falsificam presuntos nobres e, semelhantemente com os grupos que atuam no setor de construção, sonegam impostos vendendo seus produtos no mercado negro. A Associação de Fazendeiros Italianos estima em vários bilhões de euros as perdas resultantes no setor.
Vínculos com os tomadores de decisão
Esses tipos de fraudadores frequentemente andam também de mãos dadas com negócios legais. De acordo com o BKA, pelo menos 300 pizzarias na Alemanha são controladas pela Máfia italiana. Além de serem bem adequados para operações de lavagem de dinheiro, restaurantes podem também ser usados para ajudar a criar laços com tomadores de decisões. O resultado disso é que a Máfia há tempo já entrou na sociedade burguesa.
"Nesses casos, é quase impossível para nós, neste ponto, por a descoberto suas atividades criminosas", diz Schneider, o chefe do LKA. A proximidade dos clãs com os poderosos e os influentes é algumas vezes chocante -- nem mesmo um assassinato múltiplo parece inibí-los.
Por exemplo, um dos proprietários do Da Bruno, o restaurante de Duisburg na frente do qual seis mafiosos foram mortos a tiros em agosto de 2007, como parte de uma disputa com a 'Ndrangheta, conseguiu desenvolver seu negócio após o tiroteio. O empresário, em cujo restaurante uma das vítimas foi ritualmente introduzida na Máfia imediatamente antes de sua execução, agora serve pizzas e massas aos clientes em outros locais. As pessoas dizem que seus restaurantes também vão bem, em lugares valiosos como o Lago Constança e em Baden-Baden.
Nenhum comentário:
Postar um comentário