Abrir o notebook para mostrar fotos de onças e demais mamíferos de grande porte que se refugiam em cultivos agrícolas virou rotina entre executivos em reuniões que definem investimentos e estratégias do negócio, para além das planilhas financeiras. "O que era uma dor de cabeça torna-se hoje um diferencial", orgulha-se Fabiano Zillo, vice-presidente agrícola da Odebrecht Agroindustrial, cujas usinas absorvem matéria-prima de 200 mil hectares de canaviais no Cerrado de Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Goiás.
Após a fusão de ativos das antigas ETH Bioenergia e Brenco, em 2010, a empresa projetou a expansão dentro de critérios ambientais, com planejamento da paisagem. "Queríamos medir o risco de impactos e acabamos surpreendidos por algo que pode trazer oportunidade para o etanol", diz o executivo, que carrega na tela do celular a imagem de uma das várias onças-pintadas flagradas no canavial.
A novidade motivou a empresa a convocar biólogos e investir em pesquisa científica para ir a fundo nessa relação. O alvo principal é o entorno do Parque Nacional das Emas, em Mineiros (GO), uma "ilha" de fauna e vegetação nativa cercada pelo agronegócio, principalmente milho, algodão e soja. A cana-de-açúcar chegou há cinco anos e gerou polêmica. "Imaginávamos que os canaviais seriam uma barreira, ainda maior que os demais cultivos, ao trânsito dos animais", conta o pesquisador Leandro Silveira, do Instituto Onça Pintada (IOC). Armadilhas e câmeras fotográficas foram instaladas em pontos estratégicos de uma área de 1 milhão de hectares de cultivo e mata natural. O resultado intrigou biólogos: a adaptação da fauna à lavoura de cana foi muito mais expressiva do que o previsto.
A frequência de onça-pintada, por exemplo, está associada à presença de sua presa predileta: o queixada, um tipo de porco do mato que passou a visitar a plantação para comer a cana. Além do alimento farto e fácil, lá a fauna encontrou abrigo e, em alguns casos, local para reprodução. "No caso dos canaviais, o assédio dos animais em busca de comida não causa conflitos com fazendeiros ou perdas econômicas como ocorre na lavoura de milho", explica Silveira. Para ele, após meio século de expansão agrícola naquele pedaço do Cerrado, "a fauna já se adaptou à fragmentação da paisagem natural".
Com 136 mil hectares, o Parque Nacional das Emas é considerado uma das áreas do mundo mais prioritárias para conservação, além de divisor de águas que influencia importantes bacias hidrográficas, como as do Pantanal, da Amazônia e do rio Paraná, no Sudeste. É um dos últimos refúgios de vida silvestre do Cerrado. "O grande desafio é reconectar a paisagem para facilitar a vida das espécies de maior porte que precisam de mais espaço, porque o parque sozinho não garante a viabilidade genética e não cumpre o papel de conservar a biodiversidade", enfatiza Anah Jácomo, também pesquisadora do projeto. Ela diz que o sucesso de salvar a fauna está nas mãos do agronegócio, atividade que está consolidada há décadas na região e detém o que restou de vegetação natural.
Os pesquisadores estudam como a área é utilizada pela fauna para então planejar corredores verdes, necessários ao seu deslocamento. O estudo vai monitorar por GPS o trânsito de onças-pintadas e pardas, lobos-guarás, antas e tatus-canastra, entre outros. O objetivo é confirmar se a cana tornou-se área de vida para os animais ou apenas passagem entre os fragmentos nativos. "Após identificá-los, vamos mapear seus refúgios e modos de dispersão para saber quanto de canavial está sendo utilizado como habitat", diz Anah. O modelo deve ser replicado para outras regiões, mas várias perguntas pairam no ar: viver nas plantações é bom ou ruim para as espécies? As atuais reservas particulares são suficientes? Quais os riscos dessa adaptação sob o ponto de vista nutricional para os bichos?
Diante do maior número de animais circulando, surge um desafio adicional: a conscientização das comunidades para o valor da fauna conservada. A empresa investiu R$ 12,5 milhões em projetos de desenvolvimento local, com gestão participativa. O consumo da produção dos assentamentos triplicou a renda. Há investimentos em pontos de cultura, plano municipal de resíduos e estrutura de saúde básica - tudo decidido por conselhos comunitários. Para Carla Pires, responsável pelos programas educacionais da empresa, que abrangem nove municípios, é preciso ir além: "Devemos unir atores, inclusive nossos fornecedores de cana, para viabilizar ambientalmente a bioenergia por meio da produção agrícola de grande escala".
Dessa união nasceu o projeto de transformar 28 km da rodovia GO-341 em "estrada- parque", com sinalização, radares, passagens subterrâneas e toda uma infraestrutura capaz de evitar uma das principais ameaças à fauna da região: o atropelamento, principalmente por caminhões que escoam a produção agrícola. O assunto está nas mãos do governo estadual, que recentemente inaugurou o novo asfalto da rodovia, bordejando o Parque Nacional das Emas. A expectativa é de aumento do fluxo de caminhões e automóveis. Nas estradas do Cerrado como um todo, há cálculos que estimam a morte de dois a três animais por quilômetro, ao ano, mais da metade mamíferos. "A cana substituiu 100 mil hectares de pastagens improdutivas na região, valorizou a terra e trouxe novas demandas, como o maior cuidado na logística", adverte Marcos Cunha, chefe do parque, ao lamentar a alta mortalidade da fauna nas estradas.
"Precisamos da estrada-parque porque convivemos cada vez mais próximos com a biodiversidade", defende Maria Fries, produtora de cana no município, feliz com a revoada de araras que chegam para comer grãos sobre os silos de armazenagem da propriedade. A lógica de criar corredores ecológicos não faz sentido se a fauna morre ao atravessar a estrada, daí a necessidade de novos cuidados.
O projeto, defendido pela fazendeira, se integra a um esforço já antigo da família de aliar conservação da biodiversidade e agronegócio. Até o momento, o foco vinha sendo proteger as nascentes do rio Araguaia contra a erosão, por meio de reflorestamento. Foram plantas 1 milhão de mudas, com meta de atingir o dobro - missão que foi herdada do marido, o fazendeiro Milton Fries, pioneiro no plantio de soja na região, que faleceu há quase dois anos.
Com a cana, há novos apelos. "Devido às onças, é preciso coragem para andar no meio do canavial sozinho", afirma o agrônomo Dalton Nogueira, gerente da propriedade, dizendo que os funcionários são orientados a lidar com elas e a desviar as máquinas dos ninhos de emas.
Leandro Silveira, do Instituto Onça Pintada e pesquisadoras: assédio dos animais não causa conflitos com fazendeiros - (Foto: Valor Econômico - clique na imagem para ampliá-la).
Zillo, da Odebrecht Agroindustrial: "Acabamos surpreendidos por algo que pode trazer oportunidade para o etanol" - (Foto: Valor Econômico).
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