quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

A fazenda em que nazistas brasileiros "escravizavam meninos"

[O texto traduzido abaixo, de Gibby Zobel, foi publicado ontem (21/01) no site BBC Mundo. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]



Antes da Segunda Guerra Mundial Brasil e Alemanha estreitaram laços, principalmente econômicos - (Foto: Senhorinha Barreto da Silva/BBC Mundo).

Em uma fazenda, na campina brasileira a 160 km de São Paulo, um time de futebol posa para uma foto comemorativa. Nada de extraordinário, exceto a enorme suástica na bandeira segurada por um dos jogadores. 

A foto data provavelmente da década de 30 do século passado, depois que o partido nazista de Adolf Hitler tomara o poder na Alemanha, no lado oposto do mundo. "Nada explica a presença de uma suástica aqui", diz José Ricardo Rosa Maciel, que trabalhou na longínqua granja Cruzeiro do Sul perto do povoado de Campina do Monte Alegre. Um dia, por casualidade, encontrou essa fotografia.

Foi então que começou a juntar as peças do quebra-cabeça. Era a segunda vez que encontrava símbolos nazistas ao seu redor -- a primeira foi em dois chiqueiros. "Um dia, os porcos derrubaram uma parede e quando olhei os tijolos caídos pensei que estava delirando". Cada tijolo tinha uma suástica gravada em um dos lados. 


José Ricardo Rosa Maciel descobriu por acaso tijolos marcados com uma suástica - (Foto: BBC). 

Muitos pesquisadores têm destacado como o Brasil teve conexões com a Alemanha nazista, no período entre as duas guerras mundiais. Foram aliados econômicos, e no Brasil se forjou o maior partido fascista fora da Europa, que contava com mais de 40.000 membros. Mas, passaram-se muitos anos antes que Maciel -- graças às pesquisas do professor de História Sidney Aguilar Filho -- descobrisse a dolorosa história por trás da fazenda Cruzeiro do Sul e seus vínculos estreitos com os fascistas brasileiros.  

O professor Filho identificou que a fazenda havia sido propriedade dos Rocha Miranda, uma família de empresários industriais do Rio de Janeiro.  O pai, Renato, e dois de seus filhos -- Otávio e Osvaldo -- eram membros da Ação Integralista Brasileira, uma organização de extrema direita simpatizante dos nazistas. A família às vezes utilizava a fazenda para reuniões partidárias, às quais compareciam milhares de simpatizantes [esse "milhares" me soa exagerado]

Mas a fazenda era usada também como um campo de trabalho brutal para crianças abandonadas e que não eram de raça branca. "Encontrei a história de 50 meninos, de cerca de 10 anos, que foram recolhidos em um orfanato do Rio de Janeiro. Chegaram em três levas, a primeira -- de 10 crianças -- chegou em 1933". 

Osvaldo Rocha Miranda solicitou e obteve autorização para ser o guardião legal dos órfãos, segundo documentos que Filho descobriu. "Ele mandou seu motorista à nossa procura, e ele nos deixou em um canto", lembra Aloysio da Silva, de 90 anos., um dos primeiros órfãos recrutados a trabalhar na fazenda. "Osvaldo apontava com um bastão ... 'Traga esse para cá, esse também', dizia. E de 20 meninos selecionou 10. Nos prometeu até a Lua. Nos disse que jogaríamos futebol, e montaríamos a cavalo. Mas, era tudo uma burla. Deram um enxadão para cada um e nos puseram a limpar o terreno", prossegue o ancião.

Saudação nazista obrigatória

Os meninos eram castigados sistematicamente com uma palmatória. Eram chamados não por seus nomes, mas por números -- o de Aloysio era o 23. Vários cães de guarda os obrigavam a ficar em fila. "Um dos cães se chamava Veneno, o macho -- a fêmea chamava-se Confiança", disse Aloysio, que ainda mora na região. "Normalmente, prefiro não falar do que aconteceu". 


Aloysio da Silva foi um dos primeiros órfãos recrutados - (Foto: BBC).


Outro desses meninos era Argemiro dos Santos, que hoje tem 89 anos. "Eles não gostavam de gente negra", recorda. "Havia vários castigos que nos eram impostos com regularidade, desde não nos alimentarem até os golpes com palmatória. Dois golpes por vez -- o máximo eram cinco palmadas, porque eram o limite que alguém podia suportar. Tinham uma fotografia de Hitler, e éramos obrigados a fazer a saudação nazista quando passávamos por ela. Eu não entendia nada", continua Argemiro.


Argemiro dos Santos combateu na Segunda Guerra Mundial - (Foto: BBC).


Mas, alguns membros atuais da família Rocha Miranda asseguram que seus antepassados deixaram de aoiar os nazistas muito antes da Segunda Guerra Mundial. Maurício Rocha Miranda, sobrinho-neto de Otávio e Osvaldo, nega ainda que os meninos fossem tratados como "escravos". Ele assegurou ao jornal Folha de S. Paulo que "os órfãos da fazenda tinham que ser controlados, mas nunca foram castigados ou escravizados". 

Mas, o professor Filho acredita mais nos testemunhos daqueles meninos, hoje anciões. Ainda que tudo tenha ocorrido há muito tempo, tanto Aloysio quanto Argemiro contaram histórias semelhantes, e não haviam se encontrado desde então. 

O futebol, seu único descanso 

O único descanso para os órfãos eram as partidas de futebol contra times dos fazendeiros locais, como aquela em que foi tirada a foto da bandeira com a suástica. O futebol era uma peça chave da ideologia da Ação Integralista Brasileira. 

No estádio do Vasco da Gama realizavam-se desfiles militares. Os partidos eram usados também para fins de propaganda, sob o comando do então presidente de fato Getúlio Vargas.

"Dávamos uns chutes na bola, e logo isso evoluiu", lembra Argemiro. "Logo começamos um campeonato. Éramos bom no futebol, isso não era problema". Mas, passados vários anos, Argemiro já havia tido o suficiente. "Havia uma porta, que deixei aberta. Essa noite, saí por ela e ninguém me viu". 

A vida depois da fazenda

Quando Argemiro retornou ao Rio tinha 14 anos. Para sobreviver, dormiu ao relento e vendeu jornais. Em 1942, quando o Brasil declarou guerra à Alemanha se alistou na Marinha como grumete, servindo mesas e fazendo serviços de limpeza. Deixou de trabalhar para os nazistas para lutar contra eles. "Estava apenas cumprindo com o que o Brasil precisava fazer", disse ele. "Não podia guardar ódio contra Hitler porque não sabia quem era ele".

Argemiro participou de serviços de patrulha na Europa, e passou grande parte da Segunda Guerra Mundial em navios que procuravam submarinos alemães na costa brasileira. Hoje, ele é conhecido como "Marujo" e mostra com orgulho o certificado médico que reconhece seus serviços durante a guerra. Mas, não é famoso apenas por isso. Foi também um dos melhores jogadores de futebol dos anos 40, como centroavante em várias das melhores equipes do Brasil.  

"Naquela época não havia jogadores profissionais, todos eram amadores", comenta ele. "Joguei pelo Fluminense, pelo Botafogo e pelo Vasco da Gama. Os jogadores vinham todos das ruas, eram engraxates ou jornaleiros". Hoje, Argemiro tem uma vida tranquila no sudoeste do Brasil com Guilhermina, sua mulher há 61 anos. "Gosto de tocar trompete, sentar-me no alpendre e tomar cerveja gelada. Tenho muitos amigos que vêm conversar comigo", conta.

Ainda que as lembranças da fazenda sejam impossíveis de se esquecer. "Qualquer um que lhe diga que sua vida foi toda felicidade, mente. Todos temos alguma má lembrança, ao longo de nossos dias".



Marca da suástica em gado da fazenda Cruzeiro do Sul -- (Foto: Senhorinha Barreto da Silva/BBC Mundo).



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