quarta-feira, 3 de junho de 2015

Banho, o berço da intimidade (III)

[Ver postagem anterior. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]

8. Vanguardas: o nu feminino, um problema formal?



František Kupka, Le rouge à lèvres [O batom nos lábios], 1908, Paris, Museu Nacional de Arte Moderna - Centro Georges Pompidou. Este quadro remete a La Gigolette en rouge, uma tela de Kupka pintada no mesmo ano: trata-se de uma prostituta. Dela existe uma outra versão, Le rouge à lèvres.  Ambos os quadros pertencem à juventude de Kupka, cuja linguagem evolui em seguida rumo ao abstracionismo. Já excessivamente maquiada, a mulher redesenha sua boca com o batom. Tanto quanto o tema, uma mulher inclinada no esforço da maquiagem, é a combinação das cores, inspirada nos "Fauves" ["as feras", denominação dada aos pintores de uma corrente artística do início do século 20 que não seguiam o cânone impressionista que vigorava na época], que interessa a Kupka: o verde do pescoço, o branco da pele empoada, o vermelho desmedido dos lábios - (Foto: Google).


No começo do século 20, o nu feminino constitui para os artistas de "vanguarda" um desafio: como tratar o corpo, a sensualidade da mulher com uma linguagem que não seja simplesmente imitativa? O problema se apresentou primeiro para Cézanne, que optou por pintar na natureza banhistas que não fossem mais ninfas: ousadia radical. Picasso, desenhista compulsivo, esboça em sua casa mulheres, suas sucessivas companheiras, durante o banho. O trabalho gráfico participa do exercício. Ele testemunha que o pintor explora, não mais ao longo dos anos mas eventualmente no mesmo dia, às vezes numa única manhã, uma variedade de soluções: experiências que vão desde uma abordagem realista, traços exagerados, corpos visivelmente pesados e que a sombra torna plásticos, a uma linha inspirada no traço "clássico", ou ainda deliberadamente esquemático, que desconstrói e reconstrói os corpos acentuando sua estrutura e suas articulações.

No seio dos pintores modernos da primeira metade do século 20, a questão formal supera a do tema. Não se trata mais de representar o corpo da mulher nem suas ocupações no banho "tais como são", mas de tratar esses temas de modo que eles provoquem uma emoção que ultrapasse aquela do olhar penetrante por arrombamento de um lugar em que ele não deveria entrar. Às curvas associadas ao nu feminino, aos tons rosados e azulados que reproduziam a cor de sua pele ou construíam a decoração, se apresenta uma geometria que admite retas e ângulos (Kapek), e cores que jogam com dissonâncias (Kupka), recorrem às camadas (Léger) ou fazem uso do negro e do cinza (Lam). 



Fernand Léger, Les femmes à la toilette (As mulheres no banho), 1920, Suíça, Coleção Nahmad. Em 1920 Léger, reintegrado à vida civil [foi militar na guerra de 1914] e curado de uma infecção pulmonar, pinta oito telas tendo como tema mulheres se olhando em seus espelhos. A viva alegria interior que ali se vê é proporcional ao prazer que o pintor experimenta ao reencontrar as alegrias do quotidiano. Enquanto outros artistas se sentem tentados por um "retorno à ordem", ele permanece fiel à ética moderna e trata esse tema com a geometria (linhas retas, cilindros, arcos de círculo indicando cabeleiras e potes para unguentos), por superfícies de cores únicas e fragmentando corpos e objetos - (Foto: Google). 


Pablo Picasso, Femme à la montre (Mulher com relógio), 30 de abril, 1936, Paris, Museu Picasso. A modelo está vestida e despida (um seio aparece, sob o vestido se vê o corpo), uma coroa de flores fixada parcialmente recai frouxamente, a mulher tem as unhas feitas, um pente repousa perto de sua coxa. Sentada no chão, ela estica o pescoço para se olhar no espelho, um novo Narciso. Os quadrados na roupa não acompanham a anatomia -- o quadro não é ilusionista. O enquadramento compacto torna o face a face consigo mesma mais sensível. O relógio de pulso, indicando o  tempo que passa, dá à pintura o sentido de uma futilidade - (Foto: Google).

9. Unguentos e cosméticos: a publicidade e a pintura



Natalino Bentivoglio Scarpa, dito Cagnaccio di San Pietro, Femme au miroir (Mulher ao espelho), 1927, Verona, coleção da Fundação Cariverona. Cagnaccio di San Pietro pertence à escola dita do "realismo mágico". A visão  que propõe da toalete é de um realismo agudo e moderno, pelo ponto de vista de profundidade que lembra o cinema, pela palheta na qual contrastam os azuis e os vermelhos, como pela singularidade do reflexo da mulher repetido parcialmente pela borda chanfrada do espelho, e que revela um seio pálido, pesado e alongado. Essa mulher que usa o batom não tem nada em comum com a prostituta de Kupka: é uma burguesa jovem, cuidadosa consigo mesma, sem dúvida mundana e vaidosa.  

No dia seguinte da Primeira Guerra Mundial, os esforços de empresárias como Helena Rubinstein, Esthée Lauder ou Elisabeth Arden acabam por impor o conceito de "casa da beleza" e difundir as primeiras "linhas" de cosméticos. Daí em diante, as burguesas se maquiam. Dez anos mais tarde, a nascente fotografia publicitária vem apoiar as campanhas a favor dos "produtos e cuidados de beleza". Esse fenômeno, do qual participam mulheres fotógrafas (como a francesa Laure Albin Guyot ou a alemã Germaine  Krull), influencia o olhar da sociedade sobre a toalete e, por causa disso, renova as representações. Como corolário, ela consolida uma iconografia suave e tranquila como essa, de um virtuosismo admirável, de Cagnaccio di San Pietro na Itália de Mussolini, que confina a mulher em sua casa, ocupada seja com seu interior e seus filhos, seja com se fazer bela para aquele que ama. 

10. Julio González, o Ferro Grande


Julio González, Femme se coiffant (Mulher se penteando), dita também Le Grand Fer [O Ferro Grande], cerca de 1931, Paris, Museu Nacional de Arte Moderna, Centro Georges Pompidou. Quando forja o ferro, o martela, o corta, junta os pedaços e depois os solda, González constrói silhuetas preferencialmente a criar volumes. Sua escultura é um "desenho no espaço", que libera a expressividade das formas. Mas, diferentemente do desenho, é preciso olhar os "ferros" de González como obras autenticamente tridimensionais: isto é, vê-los não apenas frontalmente mas girar em volta deles tanto quanto possível, para apreciá-los de uma multiplicidade de pontos de vista - (Foto: Google).


Julio González é, como Pablo Picasso, de quem foi amigo próximo, um espanhol de Paris. Por volta de 1930, ou seja na época do Grand Fer, ele conduz com Picasso um diálogo relativo à renovação da escultura. Escultor de metais, González usa como material o ferro e não o bronze e como técnica, a solda em vez da fundição. As formas que lhe são familiares são agudas e cortantes. A série de desenhos reunidos nesta exposição mostra como, à semelhança com Picasso, ele utiliza os meios do grafismo para explorar as formas. Posterior à escultura de um pouco menos de dez anos, o desenho Femme se coiffant de 1940 põe em evidência os contornos do corpo feminino: o seio revelado pelo penhoar entreaberto, o perfil do rosto, a longa cabeleira que é escovada. Os braços erguidos na escultura lembram nesse particular o desenho Femme en chemise se coiffant (Mulher de camisola se penteando) de 1909.  Mas, os temas explícitos nessas obras são depurados no Grand Fer por um processo de abstração. 

11. Nosso tempo

No entorno do ano 2000, torna-se difícil individualizar nas artes visuais um tema particular como o banho. As conquistas materiais, a da água e a do banheiro, são realizadas depois de um longo tempo. A questão do nu, ou pelo menos do nu se enfeitando, não é mais atual. Desde então, as obras que põem em cena o banho ou a toalete devem ser interpretadas segundo interrogações estéticas mais gerais. A serigrafia de Jacquet e a pintura de Erro participam de um pós-modernismo de referência que afasta as obras da história da arte; os objetos insólitos de Dietman realçam a ironia e o jogo verbal. Entre os fotógrafos, entretanto, o corpo feminino permanece como um assunto essencial. A relação com a moda e a publicidade se combina com os progressos tecnológicos, sugere experiências insólitas e estimula novas pesquisas: Assim ocorre com Erwin Blumenfeld logo após a Segunda Guerra Mundial, ou com Bettina Rheims no limiar do século 21.  



Erwin Blumenfeld, Étude pour une photographie publicitaire, 1948, Paris, Museu Nacional de Arte Moderna - Centro Georges Pompidou - (Foto: Google).

V. IMAGENS DISPONÍVEIS PARA A IMPRENSA


Salomon de Bray, Jeune femme nue, à mi-corps, en train de se peigner (Jovem nua, a meio corpo, se penteando), cerca de 1635. Óleo sobre madeira, Paris, Museu do Louvre - (foto: Google).


François Boucher, Femme à sa toilette, 1738. Coleção particular. Óleo sobre tela. - (Foto: Google). 


Berthe Morisot, Devant la psyché (Diante da psiquê), 1890. Fundação Pierre Gianadda, Mantigny. Óleo sobre tela - (Foto: Google).


Wladislaw Slewinski, Étude (Estudo), 1897. Museu Nacional, Cracóvia. Óleo sobre tela - (Foto: Google).


Eugène Lomont, Jeune femme à sa toilette (Jovem mulher em seu banho), 1898. Museu Departamental de Oise, Beauvais. Óleo sobre ela. 


Edgar Degas, Après le bain (Após o banho), 1903. Coleção Nahmad, Suíça. Lápis de carvão e realces sobre papel. - (Foto: Google).



Henri de Toulouse-Lautrec, La toilette: Madame Favre (Femme se faisant les mains) (A toalete: Senhora Favre (Mulher cuidando das mãos), 1891. Coleção Nahmad, Suíça. Pintura com essência de petróleo sobre papelão - (Foto: Google).


  Bettina Rheims, Karen Mulder with a very small Chanel bra (Karen Mulder com um minúsculo sutiã Chanel), 1996, Paris, coleção da artista - (Foto: Google).





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