Muito recentemente, o presidente Obama causou uma comoção diplomática com dois parceiros militares tradicionais dos EUA, França e Reino Unido, ao referir-se depreciativamente e sem rodeios à participação dos dois na intervenção militar na Líbia em 2011, capitaneada pelos americanos via OTAN. A imprensa americana, obviamente, foi mais autêntica que a brasileira ao reproduzir a fala de Obama. Segundo o site da revista The Atlantic, que entrevistou o presidente americano, Obama disse que a falta de concentração da Europa gerou o caos que ocorre na Líbia (como sempre, zero de mea culpa do lado americano).
Obama disse que o primeiro-ministro David Cameron (Reino Unido) "distraiu-se com um monte de outras coisas após a operação" e parou de prestar atenção na Líbia. Cameron e o ex-presidente francês Nicolas Sarkozy receberam a carga maior das críticas do presidente americano.
Com relação à França, Obama disse que "Sarkozy queria trombetear os voos que a França vinha fazendo na operação aérea, apesar do fato de que nós [americanos] tínhamos destruído todas as defesas aéreas líbias e, essencialmente, criado toda a infraestrutura necessária para a operação".
Embora considere que a intervenção tenha sido bem feita como poderia, Obama vê a Líbia hoje como uma "bagunça". Este é o termo diplomático, reservadamente, diz a revista (The Atlantic) que o entrevistou, ele se refere a esse país problemático como um "show de merda". Ele considera que isso ocorreu por razões que se devem mais à passividade dos aliados dos EUA e ao obstinado poder do tribalismo do que à incompetência dos americanos.
Por mais que se esforce, Obama não conseguirá apagar ou minimizar mais um enorme fracasso político-estratégico americano a partir de mais uma intervenção militar (que, segundo Obama, custou US$ 1 bilhão -- muito barato em termos de operações militares, disse ele).
Em 27/02/2016, o site do jornal International New York Times publicou uma reportagem inusitadamente longa (a versão impressa saiu em 01 de março corrente) de Scott Shane e Jo Becker sobre o caos em que está mergulhada a Líbia. O subtítulo da reportagem diz que "a queda de Gaddafi deu razão a (Hillary) Clinton inicialmente, até que a guerra civil e o Estado Islâmico se estabeleceram".
A reportagem descreve a impaciência de Hillary (então secretária de Estado) quanto à conclusão da intervenção militar multinacional, que lhe custara muito trabalho para organizar. Confirmada a queda de Gaddafi, ela teve seus momentos de glória e durante semanas foi exaustiva e abertamente louvada pelo Departamento de Estado.
Mas, assinala a reportagem, já havia sinais de que o triunfo teria vida curta e de que o vácuo deixado por Gaddafi era um convite para a violência e a divisão interna no país. Os líderes líbios interinos pareciam chocantemente desconectados, o assassinato de um destacado general rebelde reforçava o risco de "crimes por vingança", islamitas se apressavam para tomar o poder e havia uma indolente indiferença quanto ao desarmamento dos combatentes das milícias que haviam derrubado Gaddafi e agora ameaçavam a unidade do país (e eram financiados pelo Qatar).
Num encontro na Universidade de Trípoli, Harol Koh, o principal advogado do Departamento de Estado e membro da comitiva de Hillary, ouviu de um estudante: "Sabemos o que os EUA podem fazer com bombas. O que mais vocês podem fazer?".
A pressão da Líbia para eleições em julho de 2012, nove meses após a morte de Gaddafi, parecia prematura para alguns observadores. Em janeiro de 2012 havia um inequívoco prenúncio de problemas. Em 5 de janeiro, Hillary recebeu um email de Sidney Blumenthal, seu velho amigo e assessor, detalhando o ambiente na Líbia: tensões entre islamitas e secularistas quanto ao papel da lei islâmica, combates entre milícias rivais associadas a duas cidades, e milicianos furiosos exigindo concessões.
Após a queda de Gaddafi, com um mínimo de violência e uma amistosa liderança líbia interina, a Líbia foi rapidamente retirada do topo da agenda da administração Obama. As reuniões regulares sobre a Líbia na 'sala da situação', que frequentemente incluíam Obama, foram interrompidas. A revolta na Síria, no coração do Oriente Médio e com o quádruplo da população da Líbia, assumiu o centro do cenário. A Líbia, disse Dennis B. Ross, um veterano especialista em Oriente Médio no Conselho Nacional de Segurança (NSC, na sigla inglesa), "foi preparada para a atuação de terceiros em nível operacional". A desatenção com o país não era uma simples negligência, era uma política, uma estratégia.
"O presidente estava no clima de 'não iremos fazer um outro Iraque'", disse Derek Chollet, então responsável pela Líbia no NSC. "E, por falar nisso, os europeus estavam o tempo todo dizendo 'não, não, nós estamos fazendo isso. Entendemos a situação e acreditamos na Líbia, ela está na nossa vizinhança".
Então, o presidente e o NSC definiram o que um alto funcionário chamou de "limites severos" para o papel dos americanos na Líbia: os EUA ajudariam apenas quando pudesse oferecer algo único em termos de capacitação, o faria apenas quando a Líbia explicitamente requisitasse tais serviços e apenas quando a Líbia pagasse por isso com suas receitas do petróleo. Na prática, isso significava que os EUA fariam muito pouco.
Embora o presidente francês Nicolas Sarkozy e o primeiro-ministro britânico David Cameron tivessem visitado a Líbia juntos, eles também estariam logo com suas atenções desviadas do país devido uma campanha por reeleição (Sarkozy) e preocupações econômicas.
Com o passar dos meses e com as lutas entre facções piorando, Hillary pressionou para que seu governo fizesse mais pela Líbia, solicitando por exemplo ao Pentágono para ajudar no treinamento das forças de segurança líbias. Mas ela não logrou êxito, pelas restrições de Obama e a resistência dos líbios. Até mesmo propostas simples sucumbiram. Quando Hillary propôs o envio de um navio-hospital para tratar combatentes líbios feridos, o NSC rejeitou a ideia.
Em fevereiro de 2012, Andrew Shapiro, secretário de Estado assistente para assuntos político-militares, tentava explicar o que os EUA estavam fazendo para guardar com segurança o vasto arsenal militar que Gaddafi havia deixado para trás -- uma notável exceção à política de não-intervenção. Shapiro descreveu os esforços para "galvanizar uma resposta internacional" à tarefa de localizar e destruir depósitos de armas. Mas, reconheceu que o programa de US$ 40 milhões que Hillary havia anunciado para isso não ia bem, mesmo quando ele alcançou as armas mais preocupantes, os Manpads, disparadores de mísseis apoiados nos ombros dos combatentes e capazes de derrubar uma aeronave.
"Quantos Manpads estão ainda desaparecidos? A resposta franca é 'não sabemos' e provavelmente nunca saberemos", disse Shapiro. "Não podemos descartar a hipótese de que algumas armas saíram da Líbia".
Enquanto a CIA movia-se rapidamente para guardar com segurança as armas químicas de Gaddafi, outros esforços falharam. "Havia um arsenal que acreditávamos ter 20.000 Manpads, mísseis terra-ar, mísseis SA-7, que basicamente desapareceram na boca insaciável do Oriente Médio e do norte da África", lembrou Robert M. Gates, o secretário de defesa dos EUA na época.
O plano inicial americano de comprar de volta o armamento dos milicianos através do governo interino líbio, com a assistência americana, não funcionou por causa dos líbios. Assim, o Departamento de Estado, atuando junto com a CIA, ficou encarregado de negociar isso com as milícias. Mas, havia pouco incentivo para que os milicianos vendessem suas armas. Como observou o Sr. Shammam, ex-porta-voz do governo interino: "Como é que você vai comprar um Kalashnikov [o famoso fuzil russo AK-47] por US$ 1.000 se, com essa arma, alguém pode fazer US$ 1.000 por dia raptando pessoas?".
Pior ainda, o programa incentivou as milícias a importar armas para vendê-las aos americanos.
No círculo mais próximo de Hillary, a euforia sobre os feitos dela na Líbia deu lugar a uma "perturbadora preocupação de fracasso", disse um assessor sênior da secretária. Assim, quando os líbios foram às urnas em 7 de julho, numa eleição considerada limpa por observadores internacionais, houve uma sensação de alívio por parte de Hillary e outros defensores da intervenção militar na Líbia. "Agora começa realmente o trabalho duro para construir um governo efetivo e transparente que unifique o país", disse Hillary.
Mas a unidade do país já era impossível. Nas palavras de Gérard Araud, embaixador da França nos EUA: "De certo modo, essa unidade estava perdida desde o início. Foi o mesmo erro que cometeram no Iraque. Você organiza eleições num país sem experiência com transigências ou partidos políticos. Então, você tem uma eleição e pensa que tudo está resolvido. Mas, no final as realidades tribais ressurgem para assombrar o país".
Em vez de dar prioridade à desmobilização das milícias, o governo de transição líbio simplesmente começou a pagar salários aos combatentes, o que muitos deles consideraram como um dinheiro de proteção. "Não lhes dê salários por nada", lembra-se de pedir o Sr. Sagezli, chefe da Comissão de Assuntos dos Combatentes. "Dar dinheiro a um comandante significa dar força às milícias, gerar mais lealdade ao comandante, gerar mais armamentos e mais corrupção. Mas os políticos nunca me ouviram". Em vez disso, "os políticos começaram a suborná-los, para comprar lealdade".
Haig Melkessetian, um ex-agente de inteligência americano cuja empresa fazia a segurança das embaixadas europeias na Líbia, descreveu as milícias como uma "anarquia -- não há outra palavra para elas". Assassinatos e "o pior tipo de vigilantismo (fazer justiça com as próprias mãos)" tornaram-se comuns na Líbia. Se havia alguma pressão por parte de autoridades americanas ou europeias para que o governo líbio suspendesse seus pagamentos às milícias, ela não se fez ouvir.
Autoridades da coalizão moderada que governava o país solicitaram aos EUA que impedissem a rica nação do Qatar de continuar enviando dinheiro e armas para as milícias alinhadas com o bloco político islamita da Líbia. A pressão contra o Qatar foi barrada dentro do Departamento de Estado e do Departamento de Defesa -- este último se opôs fortemente, porque havia uma história de 20 anos de estreita cooperação com o Qatar, que abriga bases americanas importantes. No final, não havia apetite para nada alem de uma diplomacia discreta.
Apenas no ano passado o presidente Obama repreendeu os países que estavam interferindo na Líbia, mas aí já era muito tarde. "Eles criaram os monstros com os quais lidamos hoje", disse o líder partidário líbio Abdallah, "que são essas milícias, que têm tanto poder que jamais se subordinarão a qualquer governo".
Em 8 de agosto de 2012, um mês após as eleições líbias, J. Christopher Stevens, embaixador americano na Líbia, enviou uma mensagem a Washington em que descrevia Bengasi (a segunda maior cidade líbia) como "oscilando entre a trepidação e a euforia, enquanto uma série de incidentes violentos tem dominado o cenário político", e alertou para a existência de um "vácuo de segurança". Stevens era considerado a autoridade americana que melhor conhecia a Líbia. Um mês depois do envio da mensagem, a missão dos EUA em Bengasi foi atacada e o embaixador Stevens foi um dos americanos mortos.
Se por um lado a tentativa de culpar Hillary pelo ataque em Bengasi certamente falharia, a noção de que a intervenção na Líbia se situava entre seus êxitos tornou-se solidamente mais desgastada. A Líbia não se adequaria às necessidades da política americana, quer como porrete quer como fanfarrice.
Quando Hillary deixou o Departamento de Estado em fevereiro de 2013, a guerra entre facções -- que se transformaria em guerra civil em 2014 -- estava num crescendo. O fluxo de refugiados que pagavam contrabandistas para uma viagem perigosa ao Mediterrâneo estava inchando. E o caos na Líbia daria nascimento a dois governos rivais -- um apoiado pelo Egito e os Emirados Árabes Unidos, e o outro com o suporte do Qatar, da Turquia e do Sudão -- provendo santuário para extremistas, aos quais logo se juntaram emissários do Estado Islâmico.
As armas que tornaram tão difícil estabilizar a Líbia estavam aparecendo na Síria, Tunísia, Argélia, Mali, Níger, Chad, Nigéria, Somália, Sudão, Egito e Gaza, frequentemente nas mãos de terroristas, insurgentes e criminosos. No outono de 2012, agências de inteligência americanas produziram uma avaliação confidencial da proliferação de armas provenientes da Líbia. Michael T. Flynn, então chefe da Agência de Inteligência de Defesa, disse: "não tínhamos esse tipo de proliferação de armamentos desde, na realidade, o fim da guerra do Vietnã".
Uma crítica cínica começou a circular em Washington: no Iraque, os EUA intervieram e ocuparam o país -- e as coisas foram para o inferno. Na Líbia, os EUA intervieram mas não ocuparam -- e as coisas foram para o inferno. E na Síria, os EUA não intervieram (?!) nem ocuparam, e ainda assim as coisas foram para o inferno.
Isso era humor negro, para desviar a culpa de estrategistas políticos americanos perplexos para uma região atribulada. Mas, gerou uma questão séria com relação à Líbia: se a derrubada de um ditador odiado em um país pequeno e relativamente rico acarretou problemas de tais magnitudes, a intervenção americana foi de algum modo justificada?
"É verdade que as coisas deram errado", disse Sagezli, da comissão de combatentes. "Mas do ponto de vista da Líbia, as coisas não podiam dar certo. Tivemos 42 anos de domínio de Gaddafi, sem infraestrutura, um terrível sistema educacional, milhares de prisioneiros políticos, divisões entre tribos, destruição do exército. Quando se tem um país como esse, depor o ditador equivale a liberar a pressão da panela fervente".
PS - Dessa história toda, digo eu e não as fontes que usei, fica mais uma vez patente a extrema incompetência dos EUA para avaliar a fundo, previamente, os países em que irá intervir e gerar uma perspectiva minimamente correta do que ocorrerá nesses países após essa intervenção. De quebra, ficou registrado que Hillary Clinton tem ainda muito que aprender em termos de geopolítica e Oriente Médio.
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