Ver postagem anterior. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.
Para esta postagem me baseei no livro Millôr - Hai-Kais (Ed. L&PM Pocket, 2014 -- www.lpm.com.br), que recomendo fortemente.
Hai-Kus ou Hokkus
(pequena introdução para os não iniciados) -- Millôr Fernandes
O Haiku aparece em geral nos nossos dicionários com a grafia de Hai-Cai por dois motivos básicos: o primeiro, a guerra que os filólogos patrícios resolveram deflagrar à linda letra K, pelo simples fato dela ter aquele ar agressivamente germânico e só andar com passo de ganso. A batalha é, evidentemente, perdida, pois a letra teima em permanecer na língua, inclusive firmando-se na imagem, hoje quase mítica, de JK, também artificialmente banido da vida política brasileira.
O segundo motivo do não uso da grafia Haiku é a homofonia da segunda sílaba com outra palavra da língua portuguesa, designativa de certa parte do corpo de múltipla importância fisiológica. Essa palavra os filólogos só usam a medo. Quando a colocam no dicionário fazem sempre questão de acrescentar (chulo). Assim, entre parênteses.
Resolvi -- e não entro em detalhes para não alongar esta explicação -- usar a grafia (comprometida) Hai-Kai, para as composições deste livro. O Hai-Kai é um pequeno poema japonês composto de três versos, dois de cinco sílabas e um -- o segundo -- de sete. No original não tem rima, que geralmente lhe é acrescentada nas traduções ocidentais. A época do aparecimento do Hai-Kai é controversa, e sua popularização deu-se no século XVII, sobretudo através da produção de Jinskikiro Matsuo Bashô, simbolista inspirado profundamente em impressões naturais (sobretudo paisagísticas) e adepto do Zen:
A nuvem atenua
O cansaço das pessoas
Olharem a lua.
Em cima da neve
O corvo esta manhã
Pousou bem de leve.
Contudo, há quem afirme que Bashô foi ultrapassado, tanto em popularidade quanto em inspiração, pelo poeta do século posterior (XVIII) Yataro Kobayashi (Issa):
Vem cá passarinho
E vamos brincar nós dois
Que não temos ninho.
Bem hospitaleiro
Na entrada principal
Está o salgueiro.
Apesar de sua forma frágil, quase volátil, dependendo da imagística mais do que qualquer outra poesia, uma implosão, não uma explicitação, o Hai-Kai é, contudo, uma forma fundamentalmente popular e, inúmeras vezes, humorística, no mais metafísico sentido da palavra:
Roubaram a carteira
Do imbecil que olhava
A cerejeira.
Eu vi meu retrato
Bem no fundo do lago
Diz o olhar do pato.
Meu interesse pelo Hai-Kai como forma de expressão direta e econômica começou em 1957, quando eu escrevia uma seção de humor (Pif-Paf) na revista O Cruzeiro.
Passei a compor alguns quase semanalmente usando, porém, apenas os três versos da forma original, não me preocupando com o número de sílabas. Os Hai-Kais deste livro foram compostos entre 1959 e 1986.
Hai-Kais de Millôr Fernandes
Prometer
E não cumprir
Taí viver.
Morta, no chão
A sombra
É uma comparação.
No aeroporto, puxa-sacos
Se despedem
De velhacos.
Nunca tive medo, gente,
Se, onde há perigo,
Alguém vai na frente.
Esnobar
É exigir café fervendo
E deixar esfriar.
Eu vim com pão, azeite e aço;
Me deram vinho, apreço, abraço:
O sal eu faço.
Na poça da rua
O vira-lata
Lambe a Lua.
À nossa vida
A morte alheia
Dá outra partida.
Envelhecido, cheio de saudade
Ando na multidão
Sempre da mesma idade.
É tudo natural:
A galinha -- poedeira
O galo -- teatral.
Fiquei bom da vista!
Depressa,
Um oculista!
É meu conforto
Da vida só me tiram
Morto.
O umbigo
Devia ser
Só pro amigo.
A caveira é bem rara
Pois não pensa nem fala:
Só encara.
A girafa, calada,
Lá de cima vê tudo
E não diz nada.
Eis o meu mal
A vida pra mim
Já não é vital.
Com que grandeza
Ele se elevou
Às maiores baixezas!
Probleminhas terrenos:
Quem vive mais
Morre menos?
O cético sábio
Sorri
Só com um lábio.
Não esmaguem a barata
Sua nojeira
É inata.
Por fim se descobriu;
O soldado desconhecido
É um civil.
Pensa o outro lado:
Só quem tem fama
É difamado.
Lá está o magistrado
Com seu ar
De injustiçado.
O inacreditável é crível
Mas o impossível
Não é possível.
Goze.
Quem sabe essa
É a última dose?
Há colcha mais dura
Que a lousa
Da sepultura?
Maravilha sem par
A televisão
Só falta não falar.
Com pó e mistério
A mulher no espelho
Retoca o adultério.
O irmão siamês
É um invento
Chinês.
O pato, menina,
É um animal
Com buzina.
Nada tem nexo.
Tudo é apenas
Um reflexo.
Coisa rara:
Teu espelho
Tem a minha cara.
Nos dias quotidianos
É que se passam
Os anos.
Na vida, o gozado
É que nem o palhaço
É engraçado.
Diz pensar livre pensar.
Livre-pensar
É só pensar.
Vê-se, pelo trajar,
Que seu estado civil
É militar.
É impudico
Só ter fortuna
O rico.
Mulatas na pista,
Perco a vontade
De ser racista.
Santo de verdade:
Um egoísta
Da generosidade.
Pra ser feliz de verdade
É preciso encarar
A realidade.
Será que o doutor
Cobra pela cura
Ou cobra a dor?
Na penumbra, a sós.
Quando a luz se acende
Já não somos nós.
Democracia é um espeto!
Pra mim, é preto no branco
Pra ele, é branco no preto.
Se só ouvir
Eu nunca vou
Me repetir.
Por que lutam os bravos?
Querer liberdade
É coisa de escravos.
Meu protesto
É só andar com pessoas
Que detesto.
Nunca esqueça:
A vida
Também perde a cabeça.
Recebido por email de Luiz Bissoli em 07/12:
ResponderExcluirRimando, Millôr Fernandes
compôs hai-kais
melhor que muitos grandes...