quinta-feira, 12 de março de 2015

Pleito grego por reparação da guerra abre nova frente de conflito entre Berlim e Atenas

[A manutenção por Alexis Tsipras, recém-eleito primeiro-ministro da Grécia, do pleito para que a Alemanha pague à Grécia uma elevada importância (162 bilhões de euros) como reparação por perdas impostas pelos alemães aos gregos na Segunda Guerra Mundial acirrou ainda mais os ânimos entre os dois países, justamente no momento em que a Grécia entra em negociações vitais com a UE (União Europeia) sobre a reformulação e a renegociação de sua dívida com a zona do euro. A Alemanha -- principal credor da Grécia -- opõe enorme resistência a que se dê qualquer favorecimento à Grécia nesses entendimentos. Reproduzo a seguir reportagem do jornal espanhol sobre o assunto, publicada na sua versão digital brasileira. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]



Hasteamento da suástica na Acrópole em 1941 - (Foto: Bundesarchiv /Fonte: El País)

Dever moral, exercício de memória histórica e um certo desejo de revanche (ou pelo menos de justiça poética): na solicitação da Grécia à Alemanha para que pague reparações pela ocupação nazista do país mediterrâneo (1941-44) misturam-se muitos sentimentos, temperados com o nacionalismo que percorre todo o arco político do país, da direita (partido Gregos Independentes, ANEL) à esquerda (Syriza) e vice-versa. Mas, embora soe extemporâneo – Berlim considera o assunto encerrado –, o pedido não foi desengavetado agora de anais poeirentos, pois desde 2010 já era um clamor entre os setores mais nacionalistas dos partidos Nova Democracia e Pasok, que se revezavam no Governo grego até a vitória eleitoral do Syriza, em 25 de janeiro.

Em abril de 2013, uma comissão do Ministério de Finanças avaliou em 162 bilhões de euros (533,7 bilhões de reais, pelo câmbio atual) a quantia pleiteada, incluindo o espólio e a destruição de infraestrutura (108 bilhões de euros) e a devolução do empréstimo compulsório (54 bilhões) que o Banco da Grécia precisou fazer a Berlim em 1942 para financiar a ocupação. O valor reivindicado representa quase a metade da dívida grega, ou o 80% do PIB. Uma prova de que o assunto está há bastante tempo na pauta é que em março de 2014 o presidente grego, Karolos Papulias – que quando jovem participou ativamente da resistência antinazista –, formulou uma queixa ao seu homólogo alemão, Joachim Gauck, durante uma visita oficial deste a Atenas.

O que torna a exigência atual diferente é que a Grécia passou por uma radical mudança política e tem agora um primeiro-ministro, Alexis Tsipras, de origem comunista (os comunistas, e a esquerda em geral, foram os grandes derrotados da guerra civil que seguiu à ocupação) [quando estudante do ensino médio Tsipras ingressou nas fileiras da Juventude Comunista da Grécia]. Há uma semana, o chefe de Governo usou a apresentação do seu programa no Parlamento para insistir num pedido formal de compensações da Alemanha, conforme constava das promessas eleitorais do Syriza. “A Grécia tem uma obrigação moral para com seu povo, com a história, com todos os povos da Europa que lutaram e deram seu sangue contra o nazismo”, disse Tsipras a poucos metros da bancada parlamentar do partido neonazista Aurora Dourada (17 assentos, terceira força política do país). O próprio Tsipras, depois de tomar posse do seu cargo, dirigiu-se ao antigo campo de tiro de Kesariani, um bairro de Atenas, para homenagear os 200 resistentes, em sua maioria comunistas, fuzilados pelos alemães em 1º. de maio de 1944, como represália por um ataque anterior aos militares nazistas.

A oferenda floral de Tsipras pareceu na ocasião ser um simples ato simbólico, mas a solicitação formal de compensações vai alguns passos além. “A Grécia tenta usar diplomaticamente muitos meios para pressionar a Alemanha. Tsipras tem motivações ao mesmo tempo políticas e nacionais. Sua estratégia de comunicação é mostrar que protege a dignidade dos gregos, frequentemente contra as políticas da Alemanha. Mas ao mesmo tempo muitos membros do Syriza e o próprio primeiro-ministro acreditam estar certos ao propor essa reivindicação”, diz George Tzogopoulos, do centro de estudos Eliamep. “Nas presentes circunstâncias, este país precisa de dinheiro, e as referências à II Guerra Mundial não ajudam. A Grécia deveria iniciar uma disputa judicial com a Alemanha, a qual demoraria muito e cujo resultado não está nada claro”, acrescenta o pesquisador.

A memória da ocupação é transmitida de geração em geração. Os mais velhos do lugar, como Katerina Katragalos, de 85 anos, moradora de Kesariani, ainda recordam “o chiado dos eixos das carroças carregadas de mortos, a maior parte deles esqueletos de fome e miséria, que eram recolhidos como despojos das ruas” durante a invasão, uma das mais bárbaras da Europa e que custou a vida de entre 200.000 e 300.000 gregos, segundo as fontes (só no inverno de 1941 a 1942 a fome acabou com 100.000 pessoas). Também são lembrados os saques em cidades e lavouras, o roubo de alimentos e bens, e, finalmente, a afronta da bandeira nazista tremulando no alto da Acrópole, de onde foi arrancada por Manolis Glezos, hoje nonagenário eurodeputado do Syriza e principal promotor dessa causa há várias décadas.

Também ocupa um lugar destacado nos livros-texto o rosário de atrocidades perpetradas pelas SS contra a população: Dístomo, onde mataram 218 civis em 1944 como em resposta a um ataque dos partisanos; Kalavryta, com mais de 700 vítimas mortais; e Ligiadis, com centenas de caídos. Alguns desses crimes de guerra, como o de Dístomo, foram levados à Justiça internacional, sem resultado. Agora Atenas, com a solicitação a Berlim, abre uma frente para estancar feridas que ainda supuram, mas também para evitar males semelhantes no futuro, como apontou dias atrás o ministro das Finanças, Yanis Varoufakis, em Berlim: a Alemanha, felizmente, erradicou o nazismo; mas na Grécia ele é a terceira força política no Parlamento.

[Para entender um pouco mais do antagonismo entre Alemanha e a Grécia na questão do resgate financeiro feito pela UE para os gregos e a dívida que estes contraíram em decorrência disso, basta dar uma olhada no perfil da dívida grega e na lista de seus maiores credores segundo divulgação feita pelo jornal espanhol El País: 


DÍVIDA DA GRÉCIA, em bilhões de euros -- FUNDO EUROPEU DE RESGATE - Milhões de euros - entre parênteses, porcentagem sobre o total -- O fundo emitiu bônus para financiar-se e emprestar aos Estados resgatados. Os países do euro avalizaram essa emissão de dívida. Dessa forma, pode-se calcular o risco econômico que assumem com a Grécia -- (BCE = Banco Central Europeu).

Em 20 de fevereiro, a Grécia e o Eurogrupo chegaram a um acordo para prorrogar a ajuda financeira a Atenas após negociação que envolveu ministros das Finanças europeus e o Fundo Monetário Internacional (FMI). O programa de resgate para o pagamento da dívida grega foi prorrogado por mais quatro meses, evitando assim um calote a credores internacionais, que poderia tirar o país da zona do euro.

O acordo ainda deixou vários pontos sem solução, incluindo quais reformas Atenas levará a cabo para obter a ajuda adicional que receberá nessa extensão. Autoridades da zona do euro disseram que o país vai enviar uma carta ao Eurogrupo na segunda-feira (23) listando quais serão as medidas tomadas em troca do resgate.

Ver postagens anteriores: O que aconteceria se a Grécia deixasse a zona do euro?  e  Visões francesas da questão grega]

Nenhum comentário:

Postar um comentário