sábado, 21 de março de 2015

Fazendeiros do Mato Grosso do Sul querem mudar lei que protege a reserva de Bonito

[A preservação da natureza é uma luta sem tréguas no mundo todo, e o Brasil obviamente não está fora disso, muito pelo contrário. A mata atlântica, a floresta amazônica e praticamente todas as áreas verdes do país estão sendo devastadas e há décadas não há governo capaz de enfrentar as madeireiras ilegais e/ou certo número de fazendeiros. A bancada ruralista cresceu enormemente no Congresso Nacional e exerce uma tremenda pressão para o maior relaxamento possível dos requisitos de preservação de matas e florestas. Sua atuação na aprovação do novo Código Florestal, com critérios altamente discutíveis, foi decisiva. Para complicar as coisas, o governo Dilma NPS (Nosso Pinóquio de Saia) nomeou para o ministério da Agricultura uma fazendeira, Kátia Abreu, que já foi autuada pelo Ibama por desmatamento ilegal!

Desta vez, a péssima notícia vem em uma reportagem (reproduzida abaixo) de Marina Ribeiro na revista Época de 16/3/2015, que denuncia que fazendeiros do Mato Grosso do Sul querem mudar lei que protege Bonito.]



Uma das principais atividades turísticas de Bonito (MS), o mergulho, depende da boa visibilidade das águas (Foto: Reprodução/Facebook)

Piscinas naturais com águas cristalinas, mergulhos em meio a cardumes de peixes, rapel em cachoeiras e visitas a grutas inundadas, são algumas das atrações que tornaram a pequena cidade de Bonito (MS) conhecida como um dos principais destinos de ecoturismo do país. Além de ter um ecossistema único, a cidade conquistou o posto com grande esforço de conservação ambiental, que agora pode ser ameaçado por um projeto de lei apoiado por ruralistas da região.

O principal instrumento para conservação das piscinas naturais é a lei estadual 1871, aprovada em 1998. Ela protege os rios Prata e Formoso e seus afluentes ao definir uma Faixa de Proteção Especial de 300 metros de largura – 150 para cada lado da margem dos rios - em que são proibidas atividades de agricultura, extração de madeira, indústria, extração mineral e até mesmo a criação de pequenos animais. A lei permite, no entanto, apicultura (criação de abelhas), pecuária e, claro, o ecoturismo neste espaço.

Como muitas leis no Brasil, a princípio a legislação não “pegou”. Com esforço do Ministério Público em fiscalizar, aos poucos a medida se tornou mais conhecida e permitiu a conservação da mata ciliar e dos rios, que não enfrenta a erosão e nem recebe agrotóxicos utilizados em plantações da região, garantindo a quantidade e a qualidade da água. Por tudo isso, ficou conhecida como “Lei das Águas Cristalinas”.


No entanto, após mais de quinze anos com a lei em vigor, ela passou a se mostrar insuficiente com a expansão da lavoura de soja. “Recentemente começou uma pressão muito forte de agricultura no município eu comecei a notar que a lei estava sendo descumprida, por isso, convoquei uma reunião para explicá-la aos produtores, em especial os arrendatários que estavam chegando”, afirma o promotor Luciano Furtado Loubet, da Promotoria de Justiça do Meio Ambiente da comarca de Bonito, que esteve envolvido no processo de implantação da 1871. Segundo ele, a partir de então, a pressão para que a medida fosse extinta cresceu. Em 2014, em uma assembleia com as entidades locais, representantes dos hotéis, de bares e restaurantes, de atrativos turísticos, rejeitaram qualquer alteração nas regras. A exceção foi o Sindicato Rural de Bonito.

Projetos em discussão

A partir de então dois novos projetos de lei surgiram. Por um lado, o deputado estadual, Paulo Corrêa (PR-MS) – autor da Lei das Águas Cristalinas – propôs o projeto 126 em que instituía “Área de Proteção Ambiental nas nascentes, áreas úmidas, brejos ou veredas dos rios da Prata, Formoso, Peixe, Aquidaban e afluentes”, ampliando a proteção da legislação já existente. O projeto foi derrubado na Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa, com o apoio da base ruralista.

Já os fazendeiros, por meio da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Mato Grosso do Sul (Famasul), escreveram um projeto de lei que derrubava os principais itens da Lei das Águas Cristalinas, com base no Código Florestal. Em dezembro de 2014, o ex-deputado Jerson Domingos (PMDB-MS) acatou a sugestão e propôs o projeto 191 em discussão na Assembleia Legislativa e, em meio ao esforço concentrado para o recesso do fim de ano, ele foi aprovado.



“A assembleia aprovou, sem ouvir a sociedade, mesmo a gente tendo mandado abaixo-assinado com centenas de assinaturas decorrentes das assembleias públicas que fizemos em Bonito”, disse o promotor. Para alívio da sociedade civil de Bonito, o recém-empossado governador, Reinaldo Azambuja (PSDB), vetou o projeto, que voltou para a Assembleia. Porém, os deputados ainda podem derrubar o veto, tornando-o, então, lei.

O medo das organizações locais é que a Famasul consiga votar sobre veto sem aviso novamente. “É difícil que rejeite o veto, mas eles estão trabalhando para aprovar a lei e têm uma pressão na base”, afirma Eduardo Coelho, presidente do Instituto das Águas da Serra da Bodoquena e vice-presidente da Associação dos Atrativos Turísticos de Bonito e Região.
Segundo o promotor, além do interesse em ampliar a produção, alguns produtores querem escapar de multas ambientais. “Na verdade, esse projeto pode beneficiar meia dúzia de produtores que têm ações civis públicas e execuções de taxas por que descumpriram a lei 1871. Se a lei cai, caem todas as multas e as grandes ações ambientais contra eles”, diz Loubet.

Lei federal x lei estadual

A Famasul nega. Segundo o assessor jurídico, Carlos Daniel Coldibelli, a intenção da federação é fazer uma “provocação legislativa” para estimular o debate para determinar com clareza qual regra os fazendeiros da região devem seguir: o previsto na lei 1871 ou o que está no Código Florestal. “A preocupação maior é que seja definido o que pode ou não pode, sejam regras mais rigorosas ou mais brandas, mas sejam claras”, disse Coldibelli.

As leis diferem em alguns pontos, com a lei federal sendo menos restritiva. O tamanho da faixa de proteção é um exemplo. O Rio Formoso, um dos protegidos pela lei estadual, poderia perder ao menos 100 metros de faixa de proteção permanente, já que segundo o Código Florestal cursos d’água de tal tamanho precisam de áreas de 200 metros. Além disso, nessas áreas é “permitido o acesso de pessoas e animais para obtenção de água e para realização de atividades de baixo impacto ambiental”.

Ainda que defenda os interesses econômicos dos fazendeiros, a Famasul levanta uma questão relevante no direito ambiental. A Constituição Federal de 1988 definiu que cabe à União e aos Estados definir regras sobre florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição. A Carta também afirma que cabe à União editar normas gerais e aos Estados estabelecerem normas suplementares da legislação federal. No entanto, não detalha quais regras seguir quando houver conflito das normas.


A Gruta do Lago Azul é um dos principais pontos turísticos de Bonito fica entre fica entre os córregos Taquaral e Anhumas, afluentes do Rio Formoso (Foto: Thinkstock) - (Fonte: Época)

Supremo Tribunal Federal também não tem um posicionamento claro sobre os conflitos de normas locais e nacionais quando se trata de legislação ambiental. “Muitos interpretam que leis locais só poderiam legislar dentro dos limites do que a União prevê. Apenas detalhar, mas não extrapolar”, explica a sócia da área de Meio Ambiente, Mudanças Climáticas do escritório Trench, Rossi e Watanabe, a advogada Renata Amaral. Segundo ela, existe ainda outra corrente, que tem aceitação no Judiciário, que determina que se as leis locais forem mais protetoras, podem extrapolar as federais.

“Esse é um debate muito grande, pois traz de um lado uma preocupação clara com o meio ambiente, e por outro um entendimento de que a União deve estabelecer as diretrizes gerais que o país pretende seguir, então não poderia ter legislações muito diferentes nos Estados”, afirma a advogada.

Responsabilidade financeira

Para o advogado da Famasul não há problema se for definido que a legislação mais restritiva é que deve continuar em vigor, mas é preciso passar a discutir a questão com base em fatos e documentos e indenizar as propriedades afetadas. “O Município tem direito de impor regras mais restritivas? Tem, mas tem custos para cada restrição de uso também. Quem é que vai arcar com as indenizações?”

O prefeito de Bonito, Leonel Lemos de Souza Brito, o Leleco (PT do B), concorda com a Famasul de que é preciso discutir com dados na mão. Para ele, é preciso um estudo sobre o impacto que a lei acarreta para os produtores da região. “Acho que vai mostrar que não tem custo econômico nenhum”, afirma o político que também tem 1.100 hectares de produção de soja na cidade. Mas, caso exista um custo por deixar de produzir nessas áreas, “podemos pensar em uma maneira de compensar financeiramente os produtores”.

Risco ambiental

Segundo o vice-presidente da Associação dos Atrativos Turísticos de Bonito e Região, Eduardo Coelho, é preciso rever as leis para acompanhar as novas técnicas agrícolas. Ele afirma que vai haver a pressão dos ruralistas para que as áreas protegidas diminuam, mas se todas as partes estiverem envolvidas na discussão será mais difícil dos interesses dos fazendeiros se sobreporem aos demais. “Quando o trabalho é feito às claras, não dá para apelar, não dá para pedir para destruir os rios, a opinião pública se opõe à influencia dos ruralistas na Assembleia Legislativa”, afirma.

Nem todos concordam em atualizar para as novas técnicas de manejo do solo. Segundo a coordenação do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Áreas Úmidas, a Lei 1871 deve ser revista, mas para ampliar sua proteção. Para a organização, a pecuária também deveria ser proibida nas faixas de proteção. “O pisoteio do gado torna frágil o solo, criando trilhas causando compactação no local, e durante o período chuvoso a água escorre aumentando as probabilidades da erosão do solo e consequentemente impactando na qualidade da água".

Além disso, o instituto defende que qualquer retrocesso seria danoso para a região, já que os riachos e rios pequenos reagem com muita sensibilidade às mudanças no ecossistema. “A temperatura aumenta, a transparência da água é reduzida por causa do aumento dos sedimentos e a qualidade de água diminui. A diversidade de habitats sofre redução e com isso a diversidade da flora e fauna aquática”, afirmam em documento. Para a entidade, “seria uma catástrofe” perder o exemplo de manejo sustentável de recursos hídricos que Bonito se tornou nos últimos anos.

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