O ponto nevrálgico da integração envolve a política da sociedade anfitriã em relação à sua convivência com os imigrantes, em termos de temas como a identidade cultural e religiosa dessa nova mão de obra e sua interação e integração com seus anfitriões, o que originará entre inúmeros resultados complexos novas gerações de cidadãos dos países anfitriões. Qual será o perfil sociopolítico, cultural e religioso desses novos cidadãos? Que valores prevalecerão neles, os de suas origens, os do país de que são cidadãos, ou uma mescla de ambos até onde isso for possível e imaginável?
No livro "Infiel" (Companhia das Letras, 2006), uma autobiografia, temos a história de uma mulher da Somália (Ayaan Hirsi Ali) criada nos costumes tribais da Somália, que sofreu mutilação sexual e espancamentos brutais na infância, foi muçulmana devota, fugiu de um casamento forçado, tornou-se deputada na Holanda, clamou pelos direitos das muçulmanas, criticou Maomé e está condenada à morte pelo fundamentalismo islâmico. Uma de suas principais bandeiras era criticar o governo holandês por sua denominada política "multicultural", que permite que imigrantes estabeleçam guetos em que mantêm integralmente seus valores culturais e religiosos, sem maiores preocupações ou cuidados com sua integração à sociedade holandesa. Recomendo fortemente a leitura desse livro.
Esse mesmíssimo tema da integração que ocorre na Holanda repete-se na França, cada país guardando suas peculiaridades. Sobre o problema francês, parece-me mais do que oportuno ler a entrevista de Luc Ferry -- filósofo e ex-ministro da Educação da França -- publicada no Globo (seção Sociedade) de domingo 25/01/2015, cujo texto reproduzo a seguir na íntegra. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]
Luc Ferry: "Modelo de integração francês foi abandonado"
Fernando Eichenberg, correspondente -- O Globo, 25/01/2015
Para ex-ministro da Educação, país errou ao se render ao multiculturalismo e se transformou hoje no maior alvo do terrorismo islâmico
O filósofo e ex-ministro da Educação Luc Ferry defende o modelo republicano francês como superior ao multiculturalismo adotado por países como a Inglaterra e a Alemanha. Na sua opinião, o sistema francês não fracassou, mas foi abandonado após maio de 1968. A França é hoje, segundo ele, o país mais visado no mundo pelo islamismo radical, e deve se preparar para enfrentar a ascendência política interna da extrema-direita.
Você diz que a França é o país mais ameaçado no mundo hoje. Por quê?
Por três razões. A primeira é que temos as maiores comunidades judia e muçulmana da Europa, no mesmo território. Temos entre 5 milhões e 8 milhões de pessoas que são de origem cultural muçulmana. E provavelmente em torno de 1 milhão de judeus na França. É algo muito singular. Temos aqui refrações particulares do conflito do Oriente Médio. A segunda razão é que temos operações militares exteriores. Houve intervenções na Líbia, no Mali, na República Centro-Africana etc. A França está engajada na luta contra o islamismo radical no exterior. E a terceira razão é que a França é, historicamente, o país da laicidade. E para os islamistas a laicidade significa a sua própria morte. Eles querem o califado, sistemas políticos religiosos. E a França é a separação absoluta da religião e da política, Nos Estados Unidos se tem “In God we trust” nas notas de um dólar, algo totalmente inimaginável na França. Estamos num país em que a laicidade é praticamente sagrada. E por todas estas razões, penso que os problemas estão à nossa frente, e não atrás de nós. E está claro que somos o alvo do Estado Islâmico e da al-Qaeda.
A França é um caso à parte na Europa?
Nós nos recusamos em organizar a França em comunidades, como foi o caso na Inglaterra ou na Alemanha. Eu sou totalmente favorável à integração, mas infelizmente desde 1968 renunciamos progressivamente ao princípio da laicidade republicana à francesa. A república francesa não fracassou, mas foi abandonada. Abandonamos a ideia republicana na França em prol de uma rendição crescente ao multiculturalismo. Foi assim que se constituíram guetos, o que deveríamos ter impedido. Malek Boutih (deputado socialista, ex-presidente da ONG SOS Racismo), quem aprecio muito, diz que há uma centena de guetos na França que são zonas interditadas e que deixamos serem constituídas. Nós abandonamos os princípios republicanos, sob o efeito das ideologias do direito à diferença, multiculturalistas, de direito de minorias. Nós nos americanizamos. Fizemos como países que aceitaram que existam comunidades competamente separadas umas das outras. Em Nova York, você tem Little Italy, Chinatown etc. Aceitamos estes guetos se constituírem, o que é um escândalo absoluto. Sou totalmente contrário a isso. Em Seine-Saint-Denis (subúrbio norte de Paris), as famílias judias não colocam mais seus filhos em escolas públicas, o que não é normal, mas uma vergonha para a França.
Fala-se há décadas da falência do modelo de integração francesa...
O que é um grave erro. O modelo de integração não falhou, foi abandonado, o que não é a mesma coisa. É porque foi abandonado que não funciona. Há uma coalizão de direita e de esquerda contra a ideia republicana. Daniel Cohn-Bendit e Nicolas Sarkozy entraram nessa ideologia de discriminação positiva.
Este contexto favorece a extrema-direita na França?
Isso é evidente. Não há nenhuma dúvida disso. A Frente Nacional (FN, partido da direita radical) está esfregando as mãos. Há 20 anos que eles dizem que há uma islamização da França e perguntam quantos irmãos Kouachi há no país hoje. Quando vemos certos alunos em escolas de determinados bairros dizerem “Eu sou Kouachi” e que sentem simpatia com o Estado Islâmico, a FN tira consideráveis benefícios. Muitos jovens colocam no mesmo plano uma blasfêmia no papel e um massacre de metralhadora. Podemos discordar completamente do “Charlie Hebdo”, mas não podemos colocar no mesmo nível de armas mortais. Essa situação reforça consideravelmente a FN. São os extremos que se reforçam, como sempre. E é calamitoso.
A escola francesa retornou ao centro dos debates. Qual a sua análise?
O problema da escola é similar: deixamos de lado os princípios republicanos após maio de 1968. E neste caso a direita e a esquerda, de novo, estão na mesma linha. Hoje os professores não têm mais nenhum tipo de autoridade diante de jovens que se recusam a assistir a cursos sobre o Holocausto ou fazer um minuto de silêncio em homenagem às vítimas dos atentados. Há um problema maior a ser resolvido. E penso que a melhor maneira é abordá-lo desde a escola primária. A crianças pequenas ainda não estão revoltadas, não estão com ódio. Deixamos as coisas à deriva por 40 anos, e hoje estamos pagando o preço.
O governo quer reforçar o ensino moral e cívico nas escolas. Você defende que o aprendizado do conhecimento não impede a barbárie...
Este é o grande ensinamento do nazismo. A Alemanha nazista era o país mais culto do mundo, com um sistema educativo de excelente desempenho, e foi o país mais bárbaro do mundo. Era a pátria de Kant, de Goethe, de Schubert, de Bach, e foi o país do nazismo e de Hitler. Osama bin Laden era também culto e inteligente, tinha doutorado de uma universidade americana. A imagem do nazista que tortura sua vítima escutando Schubert, infelizmente, é verdadeira. Pode-se ser extremamente culto e um canalha, e pode-se ser um pequeno camponês nos confins do Brasil e ser um homem de bem. A educação moral e a intelectual são completamente diferentes.
Você considera a imigração um falso debate na França?
A imigração não é o problema, não são os estrangeiros. O problema está relacionado à colonização, a jovens que são franceses há três gerações, e que infelizmente se identificam com o Estado Islâmico e a al-Qaeda. Não são imigrantes, eles são franceses. É preciso parar com este discurso sobre a imigração. O problema atual é a refração das guerras externas — EI, al-Qaeda, Oriente Médio — no interior de bairros franceses, em jovens de três ou quatro gerações de imigrantes que se revoltam contra a França, defendem o islamismo radical e querem ir fazer a jihad na Síria. E devemos aceitar o fato que fomos nós que colonizamos o Magreb, não foram eles que vieram para cá primeiro.
Qual a influência da política externa francesa nos atuais acontecimentos?
Penso que tivemos razão em não intervir no Iraque junto com os americanos. Penso que a intervenção na Líbia foi uma catástrofe. O Mali é discutível, não se podia deixar Bamako tombar nas mãos do islamismo. Fora isso, constato que há 20 anos nossas operações no exterior terminam sistematicamente em catástrofe. Deveríamos refletir sobre os efeitos perversos que produzimos em nossas intervenções em nome dos direitos humanos. Nove em cada dez de nossas intervenções plenas de boas intenções produzem efeitos calamitosos. Sou extremamente cético em relação a isso. Não acredito mais que se possa impor a democracia de fora. Acreditei, mas me enganei.
Você é pessimista em relação ao futuro imediato francês?
O que, apesar de tudo, me deixa um pouco otimista foram essas manifestações do 11 de janeiro. Foi algo extraordinário. Não houve uma vontade de eliminar as diferenças, a direita e a esquerda existem; judeus, católicos e muçulmanos também, mas houve este sentimento de que em frente ao horror e à morte havia valores superiores. Isso é a res publica, a república. Deste ponto de vista, não sou pessimista. Marine Le Pen (líder da FN) não será eleita. Ela estará no segundo turno das eleições presidenciais de 2017, mas não vencerá, este é o meu prognóstico. O sucesso da FN não é algo anedótico, não é fogo de palha, mas a França manterá seus princípios republicanos. Mas hoje estamos engajados numa guerra assimétrica, na qual não há um Estado contra outro, mas pequenos grupos organizados contra Estados. É uma guerra na qual não há critério de vitória nem de derrota, não há assinatura de tratado de paz. São guerras subterrâneas e longas. É o que viveremos nos próximos anos. Por isso, não podemos ceder para a extrema-direita e nem confundir muçulmanos e islamistas.
O que, apesar de tudo, me deixa um pouco otimista foram essas manifestações do 11 de janeiro. Foi algo extraordinário. Não houve uma vontade de eliminar as diferenças, a direita e a esquerda existem; judeus, católicos e muçulmanos também, mas houve este sentimento de que em frente ao horror e à morte havia valores superiores. Isso é a res publica, a república. Deste ponto de vista, não sou pessimista. Marine Le Pen (líder da FN) não será eleita. Ela estará no segundo turno das eleições presidenciais de 2017, mas não vencerá, este é o meu prognóstico. O sucesso da FN não é algo anedótico, não é fogo de palha, mas a França manterá seus princípios republicanos. Mas hoje estamos engajados numa guerra assimétrica, na qual não há um Estado contra outro, mas pequenos grupos organizados contra Estados. É uma guerra na qual não há critério de vitória nem de derrota, não há assinatura de tratado de paz. São guerras subterrâneas e longas. É o que viveremos nos próximos anos. Por isso, não podemos ceder para a extrema-direita e nem confundir muçulmanos e islamistas.
Não há risco de que, passada a emoção e com o retorno à tona da crise econômica e do desemprego, essa união se deteriore?
A Europa, a França incluída, possui todos os meios de se tornar a primeira potência econômica mundial. As escolhas são políticas. O debate direita-esquerda é legítimo, mas ele não deve ser feito sobre a produção, e sim sobre a redistribuição. Sobre a produção, os liberais têm razão, eles conhecem melhor economia do que os socialistas. Mas deve-se debater a redistribuição das riquezas, a igualdade. Deve-se ser liberal em economia e socialista na política. É a melhor solução.
[É interessante conhecer a reação da imprensa árabe ao atentado contra a equipe do Charlie Hebdo. O Blog do Pedlowski mostra uma interessante sequência de charges de jornais árabes sobre o massacre da equipe do Charlie Hebdo, tirada de um artigo de Jordan Valinski publicado no World.Mic em 09/01/2015.
Líbano
A charge acima, publicada no jornal Al Akhbar (A Notícia), que é visto por alguns como pró-Hezbollah, traz a legenda "liberdade solta no ar".
Um cartunista libanês descreveu a situação como "mais fácil, mas longe do ideal", em seguida à Primavera Árabe, que foi vista como o início de um movimento rumo à liberdade de expressão. "Queremos defender a liberdade da imprensa, a liberdade da mídia e a liberdade de expressão. Esta é a nossa missão", disse Stavo Jabro, que desenha para dois jornais e conhecia algumas das vítimas [do Charlie Hebdo].
Qatar
O jornal publicado em inglês Al-Araby Al-Jadeed -- que tem como slogan "Pão. Liberdade. Justiça Social"-- publicou uma imagem poderosa de um lápis derrotando uma bala:
[É interessante conhecer a reação da imprensa árabe ao atentado contra a equipe do Charlie Hebdo. O Blog do Pedlowski mostra uma interessante sequência de charges de jornais árabes sobre o massacre da equipe do Charlie Hebdo, tirada de um artigo de Jordan Valinski publicado no World.Mic em 09/01/2015.
Líbano
A legenda diz: "Mas ... ele me chamou de terrorista"
"É assim que nos vingamos do assassino do cartunista"
As duas charges acima foram publicadas no jornal An Nahar (O Dia).
Um cartunista libanês descreveu a situação como "mais fácil, mas longe do ideal", em seguida à Primavera Árabe, que foi vista como o início de um movimento rumo à liberdade de expressão. "Queremos defender a liberdade da imprensa, a liberdade da mídia e a liberdade de expressão. Esta é a nossa missão", disse Stavo Jabro, que desenha para dois jornais e conhecia algumas das vítimas [do Charlie Hebdo].
Qatar
O jornal publicado em inglês Al-Araby Al-Jadeed -- que tem como slogan "Pão. Liberdade. Justiça Social"-- publicou uma imagem poderosa de um lápis derrotando uma bala:
Liberdade de expressão x Terrorismo
Egito
Makhlouf, um cartunista jovem, fez duas charges para o jornal privado Al-Masry Al-Youm. Ambas têm a frase "Em apoio a Charlie Hebdo" junto à hashtag #JeSuisCharlie.
Fonte: Imgur
[Em outra charge, Makhlouf (*) desenhou "ele mesmo segurando um lápis diante de um assaltante vestindo uma balaclava, com olhos quase como de um alienígena, apontando-lhe uma arma" -- a charge foi publicada em 07/01/2015. A legenda em árabe, novamente, diz "Em apoio a Charlie Hebdo":
(*) Charges de outros cartunistas também egípcios:
A charge de Anwar mostra um cartunista francês sorridente, pintando com um pincel molhado com tinta vermelha um sorriso na balaclava de um assaltante que porta uma arma.
Uma charge de Hicham Rahma, publicada em 07/01/2015 na sua página no Facebook, traz em árabe a legenda "Foi um dia difícil" e os turbante têm a palavra ISIS (Estado Islâmico):
Outra charge de Makhlouf, publicada em 08/01/2015, com a legenda "Em apoio a Charlie Hebdo":]
A França não obrigou ninguém a vivera nos guetos ,Eles foram escolhidos pelos emigrantes por razoes pessoais (conviver juntos, falando a mesma língua árabe...) e por razoes financeiras o subúrbio e sempre mais barato.Mas os judeus da Russia e da polonia eram obrigados a viver em guetos fechados sem liberdade de sair a qualquer hora.. Nem por isso eram violentos ou problematicos
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