sexta-feira, 20 de junho de 2014

Mundial de 2014: deve-se suprimir os hinos nacionais nos jogos?

[No jogo França x Honduras pela Copa do Mundo em Porto Alegre ocorreu um fato lamentável e bizarro: não houve a tradicional e emocionante apresentação dos hinos dos dois países devido a uma pane no sistema de som do estádio. De quem foi a culpa? A esta altura do campeonato isso não interessa mais, porém o fato originou um artigo interessante do sociólogo Albrecht Sonntag no jornal francês Le Monde de 17/6, com o título desta postagem, que traduzo a seguir. O autor é sociólogo na ESSCA, escola de administração (Angers, Paris), onde dirige o Centro de expertise e pesquisa em integração europeia. Atualmente, ele coordena o projeto FREE (sigla inglesa para Pesquisa sobre Futebol numa Europa Ampliada) que congrega 18 pesquisadores de nove universidades europeias. Sonntag se reporta ao incidente técnico que privou França e Honduras de cantarem seus hinos antes do jogo. -- O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]

A cerimônia antes do jogo no domingo, 15 de junho em Porto Alegre, tinha algo de engraçado: as equipes foram vistas se posicionando em campo para os hinos nacionais e depois ... depois, nada. Uma pane no sistema de som privou os jogadores de treinarem seu canto patriótico ou, alternativamente, atraírem para si a reprovação violenta de um grupo de telespectadores que consideram que isso deveria ser obrigatório para exprimir de maneira audível seu desejo de ver o solo encharcar-se de sangue impuro [alusão aos versos da Marselhesa "Qu'un sang impur / Abreuve nos sillons" -- "Que um sangue impuro/ Encharque nosso solo", em tradução livre].

Os hinos nacionais são necessários nesses encontros internacionais já sobrecarregados de simbolismo nacional? Seria preciso suprimí-los, com já foi defendido recentemente nestas colunas ("Por uma separação entre o futebol e o Estado")? Como a Copa do Mundo põe em confronto equipes que representam nações essa solicitação, ainda que possa ser justificada do ponto de vista internacionalista e pacifista, continuará inútil.   

76% se opõem ao fim dos hinos nos estádios

É a oportunidade de identificação nacional que, neste momento de uma globalização angustiante, permite à Copa do Mundo (ou, para ser mais exato, à Fifa) a atrair públicos normalmente menos inclinados a acompanhar a bola de futebol. Os hinos -- e tudo mais, como as cores nacionais, os representantes políticos nas arquibancadas, e os discursos nacionalistas que amplificam o evento em cada país -- contribuem para a atratividade do produto. 

Em meados dos anos 1990, um grande número de personalidades do mundo do futebol europeu prenunciava que os times nacionais entrariam em declínio. Para elas, não era senão uma questão de tempo até que os grandes torneios entre nações fossem substituídos por uma liga fechada de clubes (ou de "franquias") de caráter transnacional. A Copa do Mundo francesa de 1998 varreu todas essas previsões. A necessidade coletiva de se tranquilizar face às incertezas e inquietudes da época através da retomada dos símbolos familiares do povo fez da Marselhesa o sucesso do verão. A partir daí, a exibição de símbolos nacionais quando dos grandes eventos do futebol internacional não cessou de crescer em intensidade.

Hoje, os amantes do futebol parecem muito ligados ao momento dos hinos nacionais antes do pontapé inicial. Por ocasião de uma pesquisa recente feita pelo projeto FREE [ver a introdução desta postagem] em nove países europeus, apenas 13% dos consultados concordaram com a afirmação de que era "inútil tocar os hinos nacionais antes dos jogos internacionais" -- 76% se opuseram, dos quais 64% categoricamente. 

"Isso foi um ato de fraqueza"

Ao mesmo tempo, os espectadores atuais sabem perfeitamente conciliar o "fervor nacional" esperado no momento dos hinos com a descontração dos convidados a uma festa-surpresa: assim que percebem que a câmera está voltada para eles, a postura solene é abandonada imediatamente em favor de trejeitos pouco ortodoxos dirigidos ao mundo inteiro. Tudo faz crer que o espectador pós-moderno programado no modo "festa" poderia perfeitamente bem dispensar os hinos nacionais. Quem se lembra ainda que durante os primeiros anos da Copa europeia de clubes eles eram também executados antes de cada jogo?

Aliás, não foi a primeira vez que a Marselhesa não soou antes de um jogo internacional. Em 1952, as federações francesa e alemã decidiram pela não execução dos hinos antes do pontapé inicial do primeiro jogo França x Alemanha do pós-guerra. Era uma questão de evitar reavivar lembranças pouco agradáveis entre os espectadores de um público recorde de 60.000 pessoas em Colombes.  Enquanto o Frankfurter Allgemeine Zeitung sublinhava que não se devia em nenhum caso "tirar conclusões negativas quanto às relações esportivas franco-alemãs", o Le Monde comentou secamente: "Isso foi um ato de fraqueza".

Como seria também um ato de fraqueza teimar hoje em reduzir o simbolismo nacional nos estádios durante os grandes torneios. Deixemos que as coisas se resolvam com o passar do tempo. Nos anos 1950 e 1960, um hino poderia ser um assunto delicado. Hoje, pertence ao folclore da identidade.







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