terça-feira, 24 de junho de 2014

Henry Kissinger foi aconselhado a não vir assistir a Copa para não correr o risco de ser preso

[A coluna de José Casado no Globo de 24/6 revela a surpreendente informação de que Henry Kissinger (91 anos) -- que, também surpreendentemente, é conselheiro da Fifa (será que conseguiu ficar imune aos escândalos da entidade?...) -- sondou informalmente vir ao Brasil para assistir a Copa (como fez na maioria das Copas dos últimos 60 anos). Não houve um veto explícito, mas lembrou-se que ele correria riscos em território brasileiro, inclusive de prisão — há meia dúzia de organizações civis internacionais sempre mobilizadas com esse objetivo. Crimes contra a Humanidade são considerados imprescritíveis, também no Brasil. Por isso, mesmo com o passe livre da Fifa, o “Heinz” de Fürth virou um torcedor rejeitado nesta Copa, confinado à tela da televisão na Ilha de Manhattan, onde vive.

Poucas pessoas têm tido ou tiveram tanta participação e influência em acontecimentos de sérias implicações no cenário político-estratégico internacional como Henry Kissinger, e óbvia e consequentemente poucos como ele têm despertado tanta polêmica e controvérsia (ver postagens anteriores de 21/11/2013, de 26/12/2010 e de 18/12/2010), dado seu enorme e inegável poder sobre a formulação da política externa americana durante anos, principalmente durante conflitos armados violentos. Vários acontecimentos lamentáveis e dolorosos na América Latina, incluindo a derrubada de Salvador Allende no Chile, têm as digitais de Kissinger, que escreveu dois livros, cuja leitura é imprescindível para tentar entendê-lo e vislumbrar os bastidores da política externa americana: "Diplomacia" (Editora Saraiva, 2012, 928 págs.) e "Sobre a China" (Editora Objetiva, 2011, 576 págs.). No Globo de 30/3 deste ano, a excelente Dorrit Harazim -- jornalista e documentarista brasileira nascida na Croácia -- publicou um artigo contundente sobre ele, que transcrevo a seguir.]

O passado ronda os presentes

Dorrit Harazim -- O Globo, 30/3/2014


‘A visita do Dr. [Henry] Kissinger ao nosso campus não será divulgada, portanto contamos com sua confidencialidade...”, dizia o e-mail recebido no início desta semana pelos alunos de pós-graduação em História do Instituto de Assuntos Globais da Universidade de Yale. Enviado através da rede exclusiva ao grupo, o comunicado acrescentava que o evento era reservado a convidados cujos nomes seriam conferidos na entrada. Laptops e outros periféricos estavam vetados.

A palestra de Kissinger programada para a tarde de sexta-feira no Johnson Center for the Study of American Diplomacy era considerada “de segurança máxima”. Todos os participantes foram instruídos a permanecerem em seus assentos até o fim do evento. 


Não que o tema da palestra — “A Europa numa encruzilhada e seu papel no sistema internacional” — fosse explosivo, transcendental ou revelador de algo que Kissinger já não tenha escrito ou dito recentemente. A preocupação dos organizadores era com o palestrante de voz cavernosa que, apesar de estar fora do poder há quase quatro décadas, não consegue se desvencilhar do lado B de sua folha corrida. Nem de protestos contra sua pessoa.

Aos 91 anos, Henry A. Kissinger leva uma existência quase bipolar. Ora é execrado e recebido com apupos por uma geração de americanos que sequer era nascida quando a condução da política externa esteve em suas mãos; ora é reverenciado e regiamente pago por grandes instituições e empresas para fazer previsões sobre o andar do mundo. Não raro as duas coisas ocorrem simultaneamente.

Durante quase uma década (1969 a 1977) Kissinger foi o todo-poderoso conselheiro de Segurança Nacional e secretário de Estado de dois presidentes, Richard Nixon e Gerald Ford. Dono de um intelecto e de uma bagagem acadêmica invejáveis, desenvolveu uma filosofia política que norteou de ponta a ponta sua atuação como diplomata-estadista internacional. Segundo definição do biógrafo Walter Isaacson, Kissinger concluiu que o fator determinante do funcionamento da ordem mundial não é a moralidade nem o respeito aos direitos humanos — é o poder. E, assim sendo, os Estados Unidos deveriam perseguir seus interesses mundiais com um calculado senso de realismo e frieza.

Foi o que fez, de forma nem sempre magistral, porém sempre teatral. Reinou como ninguém na diplomacia da segunda metade do século 20 e, após deixar o governo, soube manter a áurea de conselheiro indispensável. Há quatro décadas atua como uma espécie de secretário de Estado particular para uns 30 conglomerados internacionais ávidos de sua expertise. Até pouco tempo atrás recebia de cada um desses grupos (American Express, Freeport-McMoRan Minerals, Chase Manhattan Bank, Volvo, entre outros citados por Isaacson) um honorário fixo anual de 250 mil dólares, e outros 100 mil dólares mensais por projeto específico.

Cinco novos presidentes já se revezaram na Casa Branca desde a era Kissinger, mas é a ele que a grande imprensa americana recorre quando surge uma nova crise mundial ou algum imbróglio diplomático encruado. Sua grife é cobiçada: ele analisa o conflito na Ucrânia, teoriza sobre a Primavera Árabe, debate a questão das armas químicas da Síria com saber acumulado.
Contudo, paralelamente a esta existência soberana e admirada, Henry A. Kissinger chega à última etapa da vida útil precisando se esconder da História. No verbete Guerra do Vietnã sua biografia se confunde com o bombardeio indiscriminado de massas de civis em três países da antiga Indochina. O horror praticado no Laos ainda é um capítulo em aberto. Foram quase quatro milhões de toneladas de bombas, mais do que durante a Presidência de Lyndon Johnson e o dobro do despejado sobre a Europa e os países do Pacífico envolvidos na Segunda Guerra Mundial.
Foi essa deliberada chacina a granel de não combatentes que levou o ensaísta Christopher Hitchens, morto em 2011, a classificar o ex-secretário de Estado de “criminoso de guerra” e a exigir seu julgamento no livro-libelo “The trials of Henry Kissinger”.

Mas Kissinger sempre driblou sua responsabilidade direta no apoio americano a regimes que praticaram barbáries contra civis, como no Chile, em Bangladesh, no Timor Leste, no Laos e no Camboja.


Até que um dia apareceu sua impressão digital num memorando secreto de 1977 revelado em 2004, graças à abertura de documentos oficiais do governo americano. O memorando foi redigido pelo embaixador americano em Buenos Aires e narrava um encontro entre Kissinger e o chanceler argentino da época, Cesar Augusto Guzzetti. “O principal problema da Argentina é o terrorismo”, informou Guzzetti. “Se há coisas que precisam ser feitas, então que sejam feitas rapidamente”, orientou Kissinger. Referia-se à guerra suja da junta militar, que resultou na morte ou desaparecimento de cerca de 30 mil pessoas.

Um novo documento secreto sobre o mesmo encontro, apenas com mais detalhes, foi divulgado recentemente. Nele consta que os argentinos temiam ouvir de Kissinger alguma pergunta sobre a questão dos direitos humanos, o que não ocorreu. Quem tocou no assunto foi Guzzetti. Kissinger então quis saber quanto tempo os militares levariam para “limpar o problema”. Informado de que tudo estaria terminado até o final do ano, o secretário de Estado deu seu aval, aliviado. Uma lei vinculando o respeito aos direitos humanos à ajuda externa fornecida pelos Estados Unidos acabara de ser aprovada e ele temia que ela entrasse em vigor antes da erradicação da esquerda na Argentina.
Não é só no Brasil que o passado ronda, desenterra memórias e verdades, e se mostra presente. Mesmo um Henry Kissinger tem o passado a lhe roubar a confiança. Até o fim da vida ele sabe que corre o risco de, no mínimo, ser apontado na rua por alguém que o chame de charlatão da História. Melhor então permanecer em ambientes controlados.

 






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