A mutilação genital feminina (MGF), também conhecida por circuncisão feminina, é a remoção ritualista de parte ou de todos os órgãos sexuais externos femininos. Geralmente executada por um circuncisador tradicional com a utilização de uma lâmina de corte, com ou sem anestesia, a MGF concentra-se em 27 países africanos, no Iémen e no Curdistão iraquiano, sendo também praticada em vários locais na Ásia, no Oriente Médio e em comunidades expatriadas em todo o mundo. A idade em que é realizada varia entre alguns dias após o nascimento e a puberdade. Em metade dos países com dados disponíveis, a maior parte das jovens é mutilada antes dos cinco anos de idade.
Os procedimentos diferem de acordo com o grupo étnico. Geralmente incluem a remoção do clitóris e do prepúcio clitoriano e, na forma mais grave, a remoção dos grandes e pequenos lábios e encerramento da vulva. Neste último procedimento, denominado "infibulação", é deixado um pequeno orifício para a passagem da urina e do sangue da menstruação, e a vagina é aberta para relações sexuais e parto. As consequências para a saúde dependem do procedimento, mas geralmente incluem infecções recorrentes, dor crônica, cistos, impossibilidade de engravidar, complicações durante o parto e hemorragias fatais. Não são conhecidos quaisquer benefícios médicos.
Neste último procedimento, denominado "infibulação", é deixado um pequeno orifício para a passagem da urina e o sangue menstruação e a vagina é aberta para relações sexuais e parto. As consequências para a saúde dependem do procedimento, mas geralmente incluem infeções recorrentes, dor crónica, cistos, impossibilidade de engravidar, complicações durante o parto e hemorragias fatais. Não são conhecidos quaisquer benefícios médicos.
A prática tem raízes nas desigualdades de gênero, em tentativas de controlar a sexualidade da mulher e em ideias sobre pureza, modéstia e estética. É geralmente iniciada e executada por mulheres, que a vêem como motivo de honra e receiam que se não a realizarem a intervenção as filhas e netas ficarão expostas à exclusão social. Mais de 130 milhões de mulheres e jovens foram alvo de mutilação genital nos 29 países onde é mais frequente. Entre estas, mais de oito milhões foram infibuladas, uma prática que na sua maioria ocorre no Djibuti, Eritreia, Somália e Sudão.
A mutilação genital feminina vem sendo considerada ilegal ou restringida em grande parte dos países onde é comum, embora haja grandes dificuldades em fazer cumprir a lei. Desde a década de 1970 que existem esforços internacionais para promover a rejeição desta prática. Em 2012, a Assembleia Geral das Nações Unidas reconheceu a mutilação genital feminina como violação de direitos humanos e votou de forma unânime no sentido de intensificar estes esforços. No entanto, existem algumas críticas por parte de antropólogos.
É digno de nota -- digo eu e não a Wikipédia -- que todos os comentários sobre as sequelas dessas mutilações, abordados acima, referem-se apenas à saúde física das mutiladas, ninguém se preocupou com o trauma psicológico das vítimas.
O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]
As mulheres mutiladas
Ondine Debré - Le Monde, 22/12/2016
Ilustração: Aline Bureau
Hoje, Mintou é uma mulher jovem "restaurada". Restaurada? Isto quer dizer que ela não está mais excisada, e para ela é importante dizê-lo: "Fui excisada quando bebê em Paris, tinha apenas alguns dias de vida. Vivi incompleta até meus 25 anos. Sou uma outra mulher, estou restaurada, estou completa".
A restauração de que fala Mintou não é apenas a de seu clitóris, mesmo que ela tenha sido feita há oito meses, mas a de sua identidade como mulher, de seu psiquismo, de todo o seu ser em suma. Um equilíbrio reencontrado entre seu corpo e seu espírito, graças à operação e graças à tomada de consciência que a acompanhou. Para a psicanalista Catherine Bensaïd, o traumatismo da excisão é comparável ao do estupro: "Essas mulheres que foram agredidas em sua intimidade ficam fragilizadas de maneira irremediável".
As Nações Unidas estimam que mais de 200 milhões de meninas e moças sofreram uma forma de mutilação genital feminina nos 29 países da África e do Oriente Médio onde a prática é mais corrente. A maior parte dos países da África proíbe e condena oficialmente as mutilações sexuais femininas. Entretanto, um país como o Egito, que as proíbe desde 2008 [tão tarde assim?!], conta com 91% das mulheres de 15 a 49 anos excisadas segundo um relatório da Unicef de 2013.
Na França, mesmo que as cifras sejam difíceis de serem definidas, estima-se que haja mais de 60.000 mulheres excisadas. E segundo a federação GAMS (Grupo para a Abolição de Mutilações Sexuais), 350 excisões são realizadas cada ano -- estimativa por baixo. No dia 23 de novembro, o Ministério dos Direitos das Mulheres apresentou um quinto "plano de mobilização e de luta contra todas as violências cometidas contra as mulheres", do qual três medidas visam a reforçar a prevenção da excisão e a manter um acompanhamento firme junto às mulheres e meninas afetadas.
Para aqueles que a praticam, a excisão é considerada para preservar as mulheres da infidelidade enquanto estão casadas. Privadas do prazer, elas não irão procurá-lo alhures. A tal ponto, que uma jovem não excisada não é considerada boa para casar. É importante enfatizar que nenhum preceito religioso exige esse ato sangrento.
"Era tabu"
Quanto à questão de saber se se pode viver sem clitóris, a resposta é não. No plano físico, ginecologistas e urologistas são formais: uma ablação inteira do clitóris, com ou sem os pequenos lábios, acarreta numerosos problemas que podem por em risco a saúde das mulheres e das crianças que vierem a delas nascer: "A cicatriz é uma zona mais dura, e quando do parto a passagem do bebê tem fortes chances de deslocar essa cicatriz", explica o urologista Pierre Foldès, especialista na reparação de mutilações sexuais em mulheres.
Essas mulheres não sentem nenhum prazer sexual, e pior: para a maioria delas, as relações sexuais são dolorosas ou desconfortáveis. Uma em cada três mulheres excisadas sofre de incontinência urinária pelo resto da vida.
Natural do Mali, Mintou não tinha ainda um mês de idade quando foi "cortada" em Paris pela célebre executora de operações excisórias Hawa Greou, condenada em 1999 a oito anos de prisão (cinco dos quais em regime fechado). Mintou foi levada por sua mãe e por sua avó, como quatro de suas outras cinco irmãs. Com uma faca à qual atribuía a força dos espíritos, Hawa Greou cortou o clitóris da criancinha com um gesto seguro e enérgico que sua mãe e sua avó repetiram outrora. Uma excisão de "tipo 1", como diria mais tarde o doutor Foldès a Mintou: somente o clitóris havia sido extirpado, a operação havia poupado os pequenos lábios vaginais.
A menina cresceu em um grupo feliz de irmãos e irmãs, retorna com frequência ao Mali e jamais fala de seu sexo com sua mãe. "Cresci no amor de meus pais. Meu pai fazia serviços de limpeza, lutou para que pudéssemos viver. Eu sabia que na nossa casa as meninas e moças eram excisadas, mas isso era tabu, jamais se falava sobre isso", explica ela. De tal modo que, quando da morte de sua mãe -- ela com 18 anos -- Mintou sofreu muito, certamente, mas tinha também a necessidade de saber o que lhe ocorrera. Marca consulta com um ginecologista e lhe pergunta imediatamente: "Sou excisada?". A resposta não a surpreendeu.
Frédérique Martz, que trabalha com mulheres mutiladas no Instituto de Saúde Genética de Saint-Germain-en-Laye, explica que algumas dessas mulheres crescem sem verdadeiramente saber que foram excisadas e ficam sabendo disso por acaso em uma consulta médica, quando de uma gravidez por exemplo. "Mas para todas aquelas com quem me encontrei", diz ela, "o fato de ser excisada provoca grandes sofrimentos psíquicos, que o tabu que pesa sobre essa prática não ajuda a minimizar".
A quê se parece um clitóris? Esta pergunta persegue as mulheres excisadas. A imagem desse pequeno apêndice e o papel que desempenha no prazer que se lhes retirou não cessam de alimentar a imaginação dessas mulheres incompletas. De tal modo que Mintou, que é auxiliar de enfermeira, dirige seu olhar ao sexo de suas pacientes. Discretamente, fortuitamente, ela tenta ver, quando de um atendimento, o que se esconde entre as pernas das mulheres intactas.
"Queria ver como era o sexo de uma mulher normal. Mais tarde falei com meu pai sobre minha excisão, ele ficou desolado e lamentou que isso tivesse ocorrido. Discutimos muito sobre isso e jamais tive ressentimento ou rancor por meus pais por causa disso", conta a jovem que, alguns anos mais tarde, decidiria fazer-se uma restauração na clínica do Dr. Foldès. A parceria que ele forma com Frédérique Martz permitiu a mais de 5.140 mulheres reencontrar sua integridade física graças a essa operação de restauração, que é reembolsada pela seguridade social, e para a maioria delas retomar sua vida sexual.
"Não pressiono forçosamente para a cirurgia", diz Frédérique Martz. "O trabalho é longo: a reparação, na medida em que por si só não basta, exige todo um trabalho de readaptação a fazer que acompanhamos no pós-operatório. Isso passa por massagens no clitóris recém-surgido, o que certas mulheres -- principalmente as muçulmanas -- se recusam de início a fazer. Mas, sem isso o prazer não vem". A médica recebe frequentemente apelos assustados de mulheres para as quais as sensações demoram a aparecer. às vezes, são fotos de seus sexos que as mulheres lhe enviam para se assegurarem de que tudo evolui bem ...
Aïda, de 32 anos, espera por uma consulta um mês após sua operação. Seu perfil tenso se desenha à luz da sala de espera, e seus cabelos encaracolados puxados para trás formam uma coroa em torno de seu semblante. Mesmo que hoje esteja bem, a cólera transparece em sua voz quando essa mulher jovem conta sua história.
"Sou africana e originária da Guiné-Conakry, mas cresci em Serra Leoa. Em minha família, as meninas são excisadas na idade entre 6 e 7 anos. Essas tradições não são questionadas, isso deve ser feito", conta ela. "Guardei tudo na memória: a casa suja e ordinária que não conhecia, a tanga ensanguentada diretamente sobre o chão, o medo que me invadiu quando senti essa mulheres me segurarem, os gritos que emitia, e a dor que ali aparecia várias vezes ... Podia encontrar o lugar, sem nenhuma dúvida. Foi minha avó que me levou, ela me falava "da etapa de iniciação". Penso nisso de novo todos os dias, dez vezes por dia ...".
Hoje, essa jovem mulher se sente renascer, quase que no sentido mesmo da palavra: "Foi levada uma parte de mim, era realmente difícil me identificar. Tenho hoje uma filha de 6 anos, e tinha vergonha de olhá-la, não conseguia lavá-la entre as pernas quando ela era pequena". Um ódio dessa parte do corpo encontrado entre as mulheres violadas.
Da operação, Aïda guarda uma lembrança angustiada porque o próprio ato cirúrgico ainda que não muito longo nem muito doloroso despertou as lembranças da excisão. "Mas valeu a pena, sou agora uma mulher completa. Falei com minha mãe sobre a excisão e a operação há uma semana. Estamos reconciliadas de uma certa forma, porque ela também sofria por ter deixado que me excisassem", diz Aïda.
Tradições, Educação, Submissão
Essa mulher jovem voluntária sempre foi senhora de seu destino: criada em uma família de homens, lutou desde pequena para escapar da escola em árabe e conseguiu ir com seus irmãos mais velhos à escola inglesa. Desembarcando na França aos 19 anos, casada aos 20 anos, ela abandona seu primeiro companheiro para quem não era problema a falta total de prazer sexual de sua esposa. Foi com seu novo marido que ela percorreu todo o caminho que a levou à sala de operação e que a conduzirá, quando ela decidir, a uma vida sexual que ela espera ser plena e feliz.
Essas histórias de mulheres são histórias de famílias, de destinos onde se misturam tradições, educação e submissão a um modelo patriarcal que para as novas gerações é imperativo que seja abandonado, se elas quiserem por um fim à prática da excisão. A França, onde algumas delas nasceram e onde outras cresceram, condena como crime a excisão e todas as mutilações sexuais. Pela lei, o autor do ato e o responsável pela criança mutilada são passíveis de dez anos de reclusão e 150.000 euros de multa.
No hospital Hôtel-Dieu, em Paris [considerado o mais antigo da cidade], no serviço de emergências médico-judiciárias consagrado às vítimas de mutilações sua chefe, Caroline Rey-Salmon, e Céline Deguette colocam seus conhecimentos de médicas legistas a serviço da proteção de mulheres e meninas contra a excisão. Sã0-lhes encaminhadas as meninas, sob o sistema de proteção da mulher e da criança, em relação às quais um diretor de escola tenha sinalizado ao serviço de menores que foram excisadas ou correm o risco de sê-lo. Ao serviço de emergências cabe a tarefa de fazer um diagnóstico seguro sobre elas.
"Quando uma menininha nos chega porque seus pais planejaram levá-las consigo para seu país durante as férias, nós examinamos seu estado físico. Se ela não for excisada, seus pais são obrigados a nos trazê-las ao retornarem das férias. Ela deve estar intacta, caso contrário a justiça é acionada para puní-los", explica Caroline Rey-Salmon. Ao prevenir o risco de excisão através de consultas com crianças "sob risco" e da condenação dos pais cujas filhas tenham sido mutiladas, a França protege da melhor maneira possível as mulheres em seu território. Mas nem sempre isso basta.
Assa tem hoje 25 anos, vive no norte de Paris, se prepara para um diploma universitário e vive com seu noivo. Ela é uma mulher jovem de seu tempo. Um detalhe adicional: ela também foi excisada em Paris quando tinha 2 anos. Ela o soube por intuição. O assunto é um tabu tal, que ela teve que esperar ter 20 anos para poder falar sobre ele com seus pais, muitos anos depois deles terem sido condenados pela justiça francesa.
Hoje, ela não quer mais culpá-los mas deseja lutar contra essa prática sangrenta. "Com base em que direito puderam eles dispor assim do corpo de sua filha? Se você disser à geração dos meus pais que eles são uns bárbaros não chegará a lugar nenhum, é preciso mais diplomacia e também de mais empatia", provoca ela.
O que a impressiona é que à sua volta, suas amigas tão parisienses, tão completamente assimiladas à cultura de sua terra natal, a França, são quase todas excisadas. Mulheres entre as quais Assa se levanta para se manifestar: "Sou orgulhosa de ser portadora dessas duas culturas. A África corre em minhas veias, mas jamais mutilarei minha filha. Cabe à nossa geração romper a cadeia e cassar as lâminas das executoras de excisão".
[Recomendo fortemente a leitura do livro "Infiel", de Ayaan Hirsi Ali (Companhia das Letras, 2004). A autora é uma ativista, escritora, política e feminista ateísta somali-holandesa-americana, que é conhecida por seus pontos de vista críticos da mutilação genital feminina e o islamismo. Ela escreveu o roteiro de Submission, filme de Theo van Gogh. Depois que ela e o diretor receberam ameaças de morte o diretor foi assassinado. Filha do político somali e líder da oposição Hirsi Magan Isse, ela é uma das fundadoras da organização de direitos das mulheres AHA Foundation.
Quando tinha oito anos, sua família deixou a Somália para a Arábia Saudita, depois Etiópia, e acabaram por se instalar no Quênia. Ela pediu e obteve asilo político nos Países Baixos em 1992, em circunstâncias que mais tarde se tornaram o centro de uma controvérsia política. Em 2003 foi eleita membro da Câmara dos Representantes (câmara baixa do parlamento holandês), representando o Partido Popular para a Liberdade e Democracia (VVD). Uma crise política em torno do potencial de remoção de sua cidadania holandesa levou à sua renúncia ao parlamento, e levou indiretamente à queda do segundo gabinete Balkenende em 2006.
Em 2005, ela foi nomeada pela revista Time como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo. Ela também recebeu vários prêmios, inclusive um prêmio de liberdade de expressão do jornal dinamarquês Jyllands-Posten, o Prêmio Democracia do Partido Liberal Sueco, e o Prêmio Coragem Moral de compromisso com a resolução de conflitos, ética e cidadania mundial. Em 2006, ela publicou um livro de memórias. Em 2013 Hirsi Ali se tornou fellow da John F. Kennedy School of Government da Universidade Harvard, um membro da The Future of Diplomacy Project at the Belfer Center, e vive nos Estados Unidos. Ela é casada com o historiador britânico e comentarista público Niall Ferguson. Se tornou uma cidadã naturalizada nos Estados Unidos em 25 de abril de 2013.]
"Não pressiono forçosamente para a cirurgia", diz Frédérique Martz. "O trabalho é longo: a reparação, na medida em que por si só não basta, exige todo um trabalho de readaptação a fazer que acompanhamos no pós-operatório. Isso passa por massagens no clitóris recém-surgido, o que certas mulheres -- principalmente as muçulmanas -- se recusam de início a fazer. Mas, sem isso o prazer não vem". A médica recebe frequentemente apelos assustados de mulheres para as quais as sensações demoram a aparecer. às vezes, são fotos de seus sexos que as mulheres lhe enviam para se assegurarem de que tudo evolui bem ...
Aïda, de 32 anos, espera por uma consulta um mês após sua operação. Seu perfil tenso se desenha à luz da sala de espera, e seus cabelos encaracolados puxados para trás formam uma coroa em torno de seu semblante. Mesmo que hoje esteja bem, a cólera transparece em sua voz quando essa mulher jovem conta sua história.
"Sou africana e originária da Guiné-Conakry, mas cresci em Serra Leoa. Em minha família, as meninas são excisadas na idade entre 6 e 7 anos. Essas tradições não são questionadas, isso deve ser feito", conta ela. "Guardei tudo na memória: a casa suja e ordinária que não conhecia, a tanga ensanguentada diretamente sobre o chão, o medo que me invadiu quando senti essa mulheres me segurarem, os gritos que emitia, e a dor que ali aparecia várias vezes ... Podia encontrar o lugar, sem nenhuma dúvida. Foi minha avó que me levou, ela me falava "da etapa de iniciação". Penso nisso de novo todos os dias, dez vezes por dia ...".
Hoje, essa jovem mulher se sente renascer, quase que no sentido mesmo da palavra: "Foi levada uma parte de mim, era realmente difícil me identificar. Tenho hoje uma filha de 6 anos, e tinha vergonha de olhá-la, não conseguia lavá-la entre as pernas quando ela era pequena". Um ódio dessa parte do corpo encontrado entre as mulheres violadas.
Da operação, Aïda guarda uma lembrança angustiada porque o próprio ato cirúrgico ainda que não muito longo nem muito doloroso despertou as lembranças da excisão. "Mas valeu a pena, sou agora uma mulher completa. Falei com minha mãe sobre a excisão e a operação há uma semana. Estamos reconciliadas de uma certa forma, porque ela também sofria por ter deixado que me excisassem", diz Aïda.
Tradições, Educação, Submissão
Essa mulher jovem voluntária sempre foi senhora de seu destino: criada em uma família de homens, lutou desde pequena para escapar da escola em árabe e conseguiu ir com seus irmãos mais velhos à escola inglesa. Desembarcando na França aos 19 anos, casada aos 20 anos, ela abandona seu primeiro companheiro para quem não era problema a falta total de prazer sexual de sua esposa. Foi com seu novo marido que ela percorreu todo o caminho que a levou à sala de operação e que a conduzirá, quando ela decidir, a uma vida sexual que ela espera ser plena e feliz.
Essas histórias de mulheres são histórias de famílias, de destinos onde se misturam tradições, educação e submissão a um modelo patriarcal que para as novas gerações é imperativo que seja abandonado, se elas quiserem por um fim à prática da excisão. A França, onde algumas delas nasceram e onde outras cresceram, condena como crime a excisão e todas as mutilações sexuais. Pela lei, o autor do ato e o responsável pela criança mutilada são passíveis de dez anos de reclusão e 150.000 euros de multa.
No hospital Hôtel-Dieu, em Paris [considerado o mais antigo da cidade], no serviço de emergências médico-judiciárias consagrado às vítimas de mutilações sua chefe, Caroline Rey-Salmon, e Céline Deguette colocam seus conhecimentos de médicas legistas a serviço da proteção de mulheres e meninas contra a excisão. Sã0-lhes encaminhadas as meninas, sob o sistema de proteção da mulher e da criança, em relação às quais um diretor de escola tenha sinalizado ao serviço de menores que foram excisadas ou correm o risco de sê-lo. Ao serviço de emergências cabe a tarefa de fazer um diagnóstico seguro sobre elas.
"Quando uma menininha nos chega porque seus pais planejaram levá-las consigo para seu país durante as férias, nós examinamos seu estado físico. Se ela não for excisada, seus pais são obrigados a nos trazê-las ao retornarem das férias. Ela deve estar intacta, caso contrário a justiça é acionada para puní-los", explica Caroline Rey-Salmon. Ao prevenir o risco de excisão através de consultas com crianças "sob risco" e da condenação dos pais cujas filhas tenham sido mutiladas, a França protege da melhor maneira possível as mulheres em seu território. Mas nem sempre isso basta.
Assa tem hoje 25 anos, vive no norte de Paris, se prepara para um diploma universitário e vive com seu noivo. Ela é uma mulher jovem de seu tempo. Um detalhe adicional: ela também foi excisada em Paris quando tinha 2 anos. Ela o soube por intuição. O assunto é um tabu tal, que ela teve que esperar ter 20 anos para poder falar sobre ele com seus pais, muitos anos depois deles terem sido condenados pela justiça francesa.
Hoje, ela não quer mais culpá-los mas deseja lutar contra essa prática sangrenta. "Com base em que direito puderam eles dispor assim do corpo de sua filha? Se você disser à geração dos meus pais que eles são uns bárbaros não chegará a lugar nenhum, é preciso mais diplomacia e também de mais empatia", provoca ela.
O que a impressiona é que à sua volta, suas amigas tão parisienses, tão completamente assimiladas à cultura de sua terra natal, a França, são quase todas excisadas. Mulheres entre as quais Assa se levanta para se manifestar: "Sou orgulhosa de ser portadora dessas duas culturas. A África corre em minhas veias, mas jamais mutilarei minha filha. Cabe à nossa geração romper a cadeia e cassar as lâminas das executoras de excisão".
[Recomendo fortemente a leitura do livro "Infiel", de Ayaan Hirsi Ali (Companhia das Letras, 2004). A autora é uma ativista, escritora, política e feminista ateísta somali-holandesa-americana, que é conhecida por seus pontos de vista críticos da mutilação genital feminina e o islamismo. Ela escreveu o roteiro de Submission, filme de Theo van Gogh. Depois que ela e o diretor receberam ameaças de morte o diretor foi assassinado. Filha do político somali e líder da oposição Hirsi Magan Isse, ela é uma das fundadoras da organização de direitos das mulheres AHA Foundation.
Quando tinha oito anos, sua família deixou a Somália para a Arábia Saudita, depois Etiópia, e acabaram por se instalar no Quênia. Ela pediu e obteve asilo político nos Países Baixos em 1992, em circunstâncias que mais tarde se tornaram o centro de uma controvérsia política. Em 2003 foi eleita membro da Câmara dos Representantes (câmara baixa do parlamento holandês), representando o Partido Popular para a Liberdade e Democracia (VVD). Uma crise política em torno do potencial de remoção de sua cidadania holandesa levou à sua renúncia ao parlamento, e levou indiretamente à queda do segundo gabinete Balkenende em 2006.
Em 2005, ela foi nomeada pela revista Time como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo. Ela também recebeu vários prêmios, inclusive um prêmio de liberdade de expressão do jornal dinamarquês Jyllands-Posten, o Prêmio Democracia do Partido Liberal Sueco, e o Prêmio Coragem Moral de compromisso com a resolução de conflitos, ética e cidadania mundial. Em 2006, ela publicou um livro de memórias. Em 2013 Hirsi Ali se tornou fellow da John F. Kennedy School of Government da Universidade Harvard, um membro da The Future of Diplomacy Project at the Belfer Center, e vive nos Estados Unidos. Ela é casada com o historiador britânico e comentarista público Niall Ferguson. Se tornou uma cidadã naturalizada nos Estados Unidos em 25 de abril de 2013.]
Temos que mudar esses métodos bárbaros aplicados as pobres mulheres.
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