quinta-feira, 17 de novembro de 2016

As Belas Artes na Medicina (I) -- exemplos na mitologia egípcia e em Leonardo da Vinci

[Esta postagem se baseia em dois excelentes livros que ganhei de meu médico e grande amigo Ricardo Cruz:

  • As Belas Artes da Medicina - Armando J. C.Bezerra -Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal - Brasília, março de 2003
  • Os Quadros da Academia Nacional de Medicina e suas Histórias - Acad. Francisco J. B. Sampaio - Editora Academia Nacional de Medicina, 2016]
O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]

As Belas Artes da Medicina

Armando J. C. Bezerra - 2003

A coluna vertebral na História, na arte e no amor

A Pirâmide de Zoser, também chamada de Pirâmide Escalonada ou Pirâmide de Saqqara, Egito, cerca de 2.650 a.C - (Foto: Google)

Tem início no Egito a história da coluna vertebral, com o vizir (primeiro-ministro) do faraó Djoser (Zoser) chamado Imhotep, que era também arquiteto, médico e um apaixonado por Medicina. Quando traduzia um papiro encontrado numa região do Egito, o egiptólogo Edwin Smith deparou-se com informações extremamente interessantes: "Caso 33 - Instruções concernentes a uma vértebra amassada no pescoço: se examinares um homem com uma vértebra fraturada no pescoço, acharás que uma vértebra para junto da outra, enquanto ele está mudo e não pode falar; a sua queda de cabeça para baixo foi o que causou o desabamento de uma vértebra sobre a outra; verás que ele não tem consciência de seus dois braços e de  suas duas pernas. Dirás em relação a esse  homem: "É um caso de vértebra amassada no pescoço; ele está inconsciente de seus dois braços e duas pernas. Este mal não pode ser ratado".

É admirável que, mais de dois mil anos antes de Cristo, um médico tenha relatado um caso de fratura de coluna vertebral cervical com consequente tetraplegia. Naquela época, Imhotep já advertia que não havia cura para isso. E até hoje, continua não havendo.

Imhotep era tão fascinado por coluna vertebral, que mandou construir uma pirâmide que lembra as vértebras empilhadas.  A  Pirâmide de Degraus de Saqqara é a mais antiga do mundo (cerca de 2.650 a.C.). Depois que fez a pirâmide, Imhotep passou a ser considerado um deus da Medicina, pois os egípcios achavam que somente um deus poderia criar uma pirâmide tão monumental. [Construída na necrópole de Saqqara, a nordeste da cidade de Mênfis, é o edifício central de um grande complexo mortuário num amplo pátio cercado por estruturas com elementos decorativos cerimoniais.]

A coluna de Osíris

O deus Osíris, irmão e marido da deusa Ísis, era uma divindade em forma de ave.  Seu irmão, chamado Seth, apaixona-se por Ísis. Para ficar com ela, decide matar e esquartejar Osíris. Como as  divindades egípcias tinham frequentemente o poder de voar, Seth voa sobre o deserto do Saara e do alto espalha fragmentos do corpo do irmão, de maneira que Ísis jamais pudesse ter o marido de volta. Um dos pedaços do corpo, o pênis, caiu não no  deserto, mas no rio Nilo, sendo comido pelos peixes.

Querendo reconstituir o corpo de Osíris, sua esposa sobrevoa o deserto, junta os fragmentos e consegue o seu objetivo. Ísis resolve ter um filho com Osíris, mas falta-lhe o pênis. Ela então faz um membro totalmente de ouro, pousa sobre ele e engravida. Dessa gravidez, nasce Hórus. Este cresce e toma  conhecimento de que seu pai fora morto pelo tio Seth. Hórus resolve vingar-se e entra em luta corporal com Seth. Na briga, perde o olho esquerdo. O deus Toth, vendo que a perda do olho aconteceu por causa da devoção de Hórus ao pai Osíris (atitude de vingança) repõe nele um olho esquerdo novo. É por isso que o olho esquerdo, cuja forma lembra a letra R, é usado nos receituários médicos como amuleto e invocação para que Hórus ilumine o médico na prescrição de remédios capazes de curar (ver "O significado do R no receituário médico", em Admirável Mundo Médico, pág. 74, publicado pelo CRM-DF).


Ísis, sob a forma de um pássaro, copula com o falecido Osíris. Nos extremos temos, de um lado Hórus (embora ainda não nascido) e Ísis sob forma humana - Relevo da ressuscitação do deus Osíris pela deusa Ísis na câmara mortuária de Seth I, em Abydos (Egito) - (Foto: Olaf Tausch)



Gravura reproduzindo o relevo acima - (Foto: Google) - Obs.: nenhuma destas duas representações é a que consta do livro, porque não consegui encontrá-la e escaneá-la não daria bom resultado)


Da mesma maneira que no Brasil se usam comumente como amuletos a fita do Senhor do Bomfim, a figa e o pé de coelho, um amuleto muito popular no Egito é a coluna de Osíris, usada por quem quer ter saúde. Esse segmento de coluna geralmente evidencia, de maneira individualizada, três corpos vertebrais cervicais e três discos intervertebrais.


Coluna Vertebral de Osíris, gravura egípcia - (Foto: Google)

A coluna vertebral desenhada por Leonardo da Vinci

Um dos primeiros estudiosos e artistas a desenhar com perfeição a coluna vertebral humana foi Leonardo da Vinci (1452-1519), que foi o primeiro a mostrar a coluna com sua totalidade de vértebras: 33. Os desenhos de da Vinci são tão perfeitos que, apesar de feitos no período do Renascimento, já detalhavam todos os acidentes anatômicos de vértebras complexas como o atlas e o áxis. Também com perfeição, Leonardo da Vinci desenhou o sacro.

Abaixo do sacro ele desenhou o cóccix, assim chamado porque lembra o bico de uma ave europeia chamada cuco, muito representada no passado em relógios de parede, de onde saía para avisar a hora certa. "Cócciz" é o termo grego (kókkyx) para "cuco".

Um dos desenhos mais notáveis de da Vinci chama-se O Coito (1492), que mostra o corte sagital de um casal durante a cópula. 

Leonardo da Vinci (1452-1519) - O Coito (1492), desenho a caneta e tina, 27,3 x 20,2 cm. Castelo de Windsor (Windsor) - (Foto: Google)

Detalhe do desenho anterior - (Foto: Google)

O artista acreditava que o receptáculo de armazenamento dos espermatozóides era o cérebro, e que o pênis possuía duas uretras, uma com função urinária e ligada diretamente à bexiga, e outra  situada superiormente à urinária e originada da medula espinhal. Assim, estava explicada sob o ponto de vista de Leonardo da Vinci a via ejaculatória: os espermatozóides saíam do cérebro, passavam pela medula e, ao final do sacro, a uretra partia em direção à glande peniana.

Por que a primeira vértebra se chama atlas?

Obviamente é uma alusão ao deus da mitologia grega Atlas. Por causa de um desentendimento com Zeus, deus dos deuses, Atlas [um dos Titãs, 12 deuses que, segundo a mitologia, nasceram no início dos tempos; eles eram os ancestrais dos futuros deuses olímpicos (como Zeus, Afrodite, Apolo…) e também dos próprios mortais] recebeu o castigo de ter que carregar, para o resto da vida, o globo terrestre. Como a primeira vértebra cervical suporta o peso da cabeça, é chamada de atlas para lembrar o sacrifício imposto ao deus grego.

Atlas segurando a Abóbada Celeste, ou Atlas de Farnese (200 d.C.). Escola Romana, Museo Nazionale Archeologico (Nápoles) - (Foto: Google)

A morte de Atlas se dá quando ele se transforma em pedra. Perseu [semideus, filho de Zeus que, sob a forma de uma chuva de ouro, entrou na torre em que estava enclausurada por seu pai Acrísio a mortal Dânae, e a engravidou -- Acrísio aprisionou a filha para evitar que tivesse um filho, porque um oráculo lhe disse que seria morto por seu neto filho de Dânae -- ver "Zeus, o pegador"], usando um escudo espelhado que havia  tomado emprestado de Atena (Minerva) se aproximou da górgona [criatura da mitologia grega, representada como um monstro feroz, de aspecto feminino e com grandes presas. Tinha o poder de transformar todos que olhassem para ela em pedra, o que fazia com que, muitas vezes, imagens suas fossem utilizadas como uma forma de amuleto; a górgona também vestia um cinto de serpentes entrelaçadas] Medusa, que tinha o poder de petrificar com o olhar quem a fitasse. Os raios de sol se refletiram no escudo e incidiram diretamente nos olhos de Medusa. Ofuscada, ela desvia o olhar de Perseu, que então  a degola, segura sua cabeça pelos cabelos de serpente e tenta atravessar as terras habitadas por Atlas. Este tenta expulsá-lo mas Perseu, enraivecido, mostra-lhe a cabeça de Medusa. Sem saber que não poderia fitá-la, Atlas então é petrificado e transformado no atual monte Atlas, na África.

Michelangelo Merisi, conhecido como Caravaggio (1571-1610) - Medusa (1597), óleo sobre tela - Galleria dei Uffizi, Florença - (Foto: Google) - Ver: "Caravaggio, outro gênio fantástico da pintura"


Simbolicamente, para o povo egípcio, ganhar a ressurreição depende de se preservar a coluna vertebral. Assim, a mumificação tem o objetivo de preservar, fundamentalmente, a coluna vertebral. É como se ela fosse o passaporte para a vida eterna.

Aliás, o sacro (termo que vem do latim sacrum, sagrado) tem este nome por ser considerado pelos egípcios a única parte da coluna vertebral que não poderia jamais faltar para que a pessoa pudesse ter garantida a vida eterna.

2 comentários:

  1. Vasco, que assunto interessante, Jamais poderia imaginar estes fatos. Obrigada pela aula de História e mitologia.

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  2. Fantástico conhecer a mitologia grega.
    É tão importante que a Psicologia utiliza suas representações nos estudos da psique humana.

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