domingo, 6 de novembro de 2016

A Argentina, entre recessão e conflitos sociais

[Em escala numérica menor, pelas próprias dimensões do país e de sua economia, a Argentina é hoje uma réplica em menor escala do Brasil, ela também vítima de uma política populista e corrupta materializada no casal Kirchner. O que interessa aos argentinos não é a comparação de sua crise com a dos brasileiros, mas sim o fato de que ela já se faz pesada e insuportável. Assim como no Brasil, os problemas econômicos desaguam em insegurança pública e aumento da violência. Traduzo a seguir uma reportagem sobre a Argentina do correspondente do jornal francês Le Monde em Buenos Aires. O que acontece nesse país nos interessa muito de perto, não apenas por ter fronteira física conosco mas também por ser o nosso maior parceiro comercial regional e também fonte infindável de atritos conosco. Além disso, a semelhança dos problemas desperta a curiosidade e a atenção sobre as medidas corretivas tomadas ou planejadas por nossos vizinhos. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]

Pedestres passam por uma pessoa dormindo ao relento no dia 2 de setembro, em Buenos Aires - (Foto: Agustin Marcarian/AP)

Dez meses após a eleição de um presidente oriundo da centro-direita e do mundo dos negócios, o reerguimento da terceira economia da América Latina se faz esperar, a pobreza se amplia e as tensões sociais se exacerbam

Ainda que a Argentina esteja engessada em dificuldades econômicas e sociais imensas, seu presidente Mauricio Macri, oriundo da centro-direita e vindo do mundo dos negócios, quer seduzir os investidores. Várias centenas de chefes de empresas, na maioria estrangeiros, responderam a seu apelo e se deslocaram a Buenos Aires para participarem de 13 a 15 de setembro de um Fórum de negócios e investimentos.

Um encontro no qual Macri apostava para convencer seus antigos parceiros a investirem na Argentina. Não sem razão: o CEO da Siemens, Joe Kaeser, anunciou na capital argentina "algo como 5 bilhões de euros" de investimentos "na infraestrutura, nos transportes e na energia". A terceira economia da América Latina dispõe de imensas riquezas agrícolas, importantes reservas de lítio e de gás de xisto. O sucessor de Cristina Kirchner naCasa Rosada que sonha com 35 bilhões de dólares (31 bilhões de euros) de investimentos, quer fazer de seu país o "supermercado do mundo", uma versão atualizada do "celeiro de trigo do mundo" que era a Argentina no início do século XX.

Até agora, os investimentos têm vindo em conta-gotas. O reerguimento da economia, em recessão, será mais lento do que previsto. O coquetel recessão (-0,5% de crescimento em 2016, segundo o Banco Mundial), inflação (40% nos últimos doze meses), queda de consumo e alta do desemprego é explosivo.

Nesse contexto, as estatísticas publicadas em 11 de agosto pela Universidade Católica de Buenos Aires (UCA) tiveram o efeito de uma bomba. Segundo a UCA, próxima do papa argentino Francisco e cujas estatísticas são respeitadas, há 1,4 milhão de novos pobres após a posse de Macri em 10 de dezembro de 2015. Nela, o novo presidente havia prometido uma "pobreza zero". Isto está longe! A pobreza alcança agora mais de um terço dos 41 milhões de argentinos. 

Dezenas de milhares de cidadãos vão regularmente às ruas para expressar seu descontentamento. Manifestações, interdições de vias de trânsito e sopas populares paralisam quotidianamente quarteirões inteiros da capital. 

Até aqui divididos, os sindicatos estão em pé de guerra e ameaçam com uma greve geral em outubro [não deflagrada]. "Haverá conflitos sociais enquanto o governo não mudar sua política econômica", garante Pablo Micheli, secretário-geral da Central dos Trabalhadores da Argentina, autônoma (CTA). "O governou adotou medidas que agravaram seriamente a situação das classes mais vulneráveis", ressalta Hector Daer, um dos membros do triunvirato que dirige a nova Confederação Geral do Trabalho (CGT). Reunificada em 22 de agosto, após oito anos de divisões internas, a central operária endureceu o tom contra o presidente Macri. De acordo com os cálculos dos sindicatos, mais de 200.000 empregos foram perdidos desde o início do ano.

A abertura econômica que inquieta

Uma parte dos argentinos esperava de Macri, oriundo do mundo econômico, talentos de gestão. Ele lançou reformas impopulares, como a supressão das subvenções nas contas de gás, água e energia elétrica, uma prática introduzida pelos Kirchner que arruinou o orçamento do Estado e levou o déficit orçamentário a níveis recordes. Um reajuste se fazia necessário, mas o aumento de um só golpe -- de até 900% -- da tarifa do gás em pleno inverno austral se revelou um bumerangue político. O presidente teve que dar marcha à ré. Ele se chocou em fins de agosto com a Corte Suprema, sensível aos argumentos dos usuários que denunciaram aumentos brutais. As novas tarifas de gás deverão ser progressivas, e decididas após consultas públicas. Uma pedra no jardim da liberalização. 

As famílias apertam os cintos e os comerciantes mostram sua contrariedade. Avisos de "Aluga-se" e "Vende-se" aparecem em inúmera boutiques da avenida Santa Fé, a tradicional via comercial de Buenos Aires. Esses locais fecharam nos últimos meses em seguida à queda do consumo, provocada por uma inflação galopante porque a Argentina reabriu brutalmente suas fronteiras, após doze anos de protecionismo. Os aumentos "vertiginosos das tarifas de gás, da energia elétrica e da água", que pesam sobre o consumo das famílias, indiretamente levaram Sergio Moral a fechar sua loja de roupas. "As vendas caíram mais de 3% em 2016", deplora Luis di Fiori, presidente da Câmara de Comércio Argentina. Ele permanece entretanto otimista, apostando na "chegada de marcas internacionais que haviam deixado o país e que retornam". Ele cita o exemplo da Apple, que deverá instalar-se dentro em pouco na Argentina.  

A reativação da economia prometida por Macri é esperada em todos os setores, mas com uma certa inquietação nos meios econômicos. Os industriais argentinos temem os efeitos da política de abertura sobre suas atividades, e em particular os laços tecidos com a China. A produção industrial caiu 4% no ano. As Pequenas e Médias Empresas não se sentem preparadas para competir com uma oferta externa barata. Face à falta de divisas e às dificuldades encontradas para obter créditos externos, a ex-presidente peronista Cristina Kirchner (2007-2015) havia imposto sérias restrições às importações.

Hoje, é muito mais fácil importar. A queda da produção -- de 30% por exemplo para a indústria de calçados em relação a 2015 -- provocou uma onda de demissões. O desemprego subiu a 9,3%, enquanto o trabalho informal alcança já quase a metade dos trabalhadores. O país continua a sofrer com a recessão do Brasil, seu principal parceiro comercial, que passou a importar menos. Decorre daí que na indústria automobilística cerca de 6.000 operários tem a carga horária de trabalho reduzida.

A indústria local compete igualmente com o comércio dito "porta a porta", liberado pelo governo em agosto, que permite aos consumidores comprar online na internet sem ter que pagar direitos aduaneiros. "Não se pode condenar os argentinos a pagar produtos mais caros que no resto do mundo", declarou o presidente no final de agosto na China, onde estava para a reunião do G20. 

O presidente atribui as dificuldades econômicas atuais à penosa herança deixada pelos Kirchner: Nestor (2003-2007) e depois sua mulher Cristina (2007-2015). "Os doze anos de kirchnerismo foram devastadores, os piores governos em duzentos anos", admite Luis Miguel Etchevehere, presidente da Sociedade Rural Argentina (SRA), que desde 1866 agrupa os grandes proprietários de terras. "O único objetivo deles era enriquecer-se pessoalmente às custas do Estado", acrescenta esse produtor agrícola de origem basca. A revelação diária de casos de corrupção envolvendo a família Kirchner e antigos altos funcionários de seus governos  contribui para consolidar essa opinião no seio da população.

Prazo decisivo em 2017

"O presidente Macri pôs fim à guerra contra o mundo agrícola", do qual os Kirchner fizeram seu principal inimigo, comemora Etchevehere, lembrando que esse setor "garante 60% das divisas e um terço dos empregos da Argentina", e que "para 2016-2017, os investimentos para a produção agrícola se elevam a 58 bilhões de dólares".

De fato, a agricultura é um dos grandes beneficiários da nova política: eliminação de impostos sobre todas as culturas, à exceção da soja, para a qual a taxação passou entretanto de 35% para 30%, e desvalorização de 30% do peso em relação ao dólar, o que torna mis competitivos os exportadores argentinos.

Eleito com 51,34% dos votos no segundo turno da eleição presidencial de novembro de 2015, Macri beneficiou-se mais com a rejeição ao antigo governo do que com uma onda de entusiasmo em torno de sua pessoa e de seu programa de governo. Segundo a última pesquisa nacional, efetuada em fins de agosto pelo instituto de pesquisas Ricardo Rouvier, ele recebe ainda 47% de opiniões favoráveis contra 50,6% de negativas. É um resultado mais que honroso, tendo-se em conta as dificuldades pelas quais passa a Argentina.

Mas o prazo decisivo será em em 2017, com eleições legislativas nas quais o presidente Macri tentará conquistar uma maioria de que não dispõe atualmente no Congresso. Daqui até lá, para ampliar o círculo dos que o apoiam, ele terá que acumular bons resultados no fronte econômico e apaziguar um clima social tenso. Um desafio, sem crescimento.

[O site BBC Brasil de 02 de novembro corrente reforça o clima de crise argentino com a reportagem de Daniel Pardo "Quanto cresceu a dívida da Argentina na gestão Macri -- e porque isso pode ser seu calcanhar de Aquiles". 

Macri pode ser vítima de seu sucesso ao recolocar a Argentina nos mercados - (Foto: AFP)

Um grupo de economistas e políticos demonstra preocupação com os níveis inéditos de endividamento que a Argentina alcançou no governo de Mauricio Macri, que completa um ano no poder daqui um mês.

Esse nervosismo contrasta com o entusiasmo em alguns setores da sociedade e meios de comunicação, que elogiam a gestão do presidente com frases como "não viramos a Venezuela" - o que é, ao mesmo tempo, uma crítica às políticas "populistas" adotadas pelo governo anterior, de Cristina Kirchner.

Com o controle cambial e algumas medidas concretas - como ajustar tarifas de serviços públicos, negociar com a oposição e buscar mais transparência nos números - Macri conseguiu gerar confiança interna e externa para pagar a dívida de US$ 9,3 bilhões de dólares (R$ 33,35 bilhões) aos "fundos abutres".

Essa é a alcunha geralmente dada aos fundos especulativos que compraram títulos de credores que não aceitaram a reestruturação da dívida feita por Buenos Aires entre 2005 e 2010.

Com isso, a Argentina voltou aos mercados internacionais depois de 15 anos. E aproveitou isso - nos últimos 11 meses, governos, províncias e bancos argentinos receberam US$ 40 bilhões (R$ 129 bilhões) em empréstimos, o que elevou a dívida pública em cerca de US$ 200 bilhões (R$ 647 bilhões), o que representa quase 30% do PIB (Produto Interno Bruto).

Os números são alarmantes para alguns economistas, mas não pelo que revelam, já que a Argentina continua sendo um dos países menos endivididados a nível regional. O que eles temem é que a chamada "chuva de dólares" possa representar um retrocesso diante de todo o esforço para baixar a inflação, reduzir o deficit e recuperar o crescimento.


O maior desafio de Macri é conseguir um ajuste profundo que permita equilibrar as contas sem que isso transforme o país em um palco de protestos - (Foto: AFP)

Os traumas do passado


O medo é embasado em experiências anteriores, quando um alto deficit fiscal foi financiado com emissão de títulos de dívida sem que houvesse uma mudança na forma como a Argentina paga suas contas.
Guardadas as devidas proporções, foi o que aconteceu em 2001, quando o esquema de financiamento internacional foi interrompido de repente em meio à profunda crise política e econômica que terminou com o famoso "corralito" (restrição dos depósitos bancários) e em uma revolta social que deixou 39 mortos em protestos.
E não foi a única vez - em 1989, após vários planos governamentais para conter a inflação usando empréstimos para financiar o deficit não funcionarem, criou-se um ambiente de incerteza que disparou a fuga de capitais e gerou a hiperinflação, o que acelerou a queda do então presidente Raúl Alfonsín.
E aconteceu também durante o regime militar, em 1979, quando o governo realizou várias minidesvalorizações sem reduzir o gasto e não conseguiu conter a perda de reservas, o que o obrigou a fazer uma desvalorização radical e chegar, mais uma vez, à hiperinflação.


Em sua nova fase, a Argentina recebeu apoio de várias frentes, entre elas dos EUA - Obama e o secretário do Tesouro Jude Lew (à esq.) foram ao país - (Foto: AFP)
Os argentinos sabem do risco envolvido em emitir títulos de dívida, um mecanismo de financiamento que em tese é necessário e utilizado por todos os governos do mundo.
Não por caso, a dívida é uma das questões que a ex-presidente, que representa uma parte importante da oposição, utiliza para criticar Macri. "Adivinhem quem vai pagar?", perguntou Cristina recentemente nas redes sociais. "Não serão os bancos estrangeiros, não será o governo, serão os milhões de argentinos e argentinas".

Por que isso pode ser um problema


Apesar de muitos serem críticos a Cristina, alguns analistas que questionam o endividamento do governo Macri compartilham a preocupação da ex-presidente.


Argentinos vivem com uma inflação de 40% - (Foto: AFP)

E, em termos gerais, a explicação é a seguinte: os empréstimos que o governo está recebendo não estão sendo gastos em planos de longo prazo - ou seja, que podem gerar dinheiro para pagar a dívida -, mas em pagamentos de fundo de caixa, redução de deficit fiscal e aumento das reservas internacionais.

A pergunta é: o que vai acontecer com a dívida e com os gastos do governo no próximo ano?

Os especialistas consultados pela BBC Mundo, serviço em espanhol da BBC, explicam que os investimentos mistos e privados de cerca de US$ 50 bilhões (R$ 162 bilhões) que Macri disse ter realizado não são todos diretos - e podem ser considerados "de andorinha". Em outras palavras, são capitais que podem voltar a sair do país em qualquer momento de incerteza ou crises internacionais.


A Argentina é um dos países com maior gasto público da América Latina, e 80% do despendido é destinado a serviços sociais como saúde e educação ou econômicos, como infraestrutura, por exemplo.

Se o governo continuar gastando mais do que tem, advertem os especialistas, cedo ou tarde ficará sem fundos para pagar a dívida. E, com isso, poderia repetir cenários do passado mencionados acima.

"No momento, tenhamos calma - pelo menos até setembro ou outubro do ano que vem", disse Hector Rubini, professor de Economia da Universidade del Salvador, em Buenos Aires.


Macri manteve o nível alto do gastos públicos do governo anterior - (Foto: AFP)

"A preocupação é que vemos um grande crescimento do deficit fiscal e da dívida pública, mas não do investimento produtivo e isso, somado ao atraso do tipo de câmbio real, pode provocar sérias dúvidas no futuro sobre a capacidade efetiva do Estado de gerar dólares e pesos o suficiente para cumprir seus compromissos com os credores", disse à BBC.

"A nossa sociedade pensa que é muito mais rica do que é e está inclinada demais a desacreditar qualquer governo que peça um ajuste", afirmou Juan José Cruces, diretor do Centro de Investigação de Finanças da Universidade Torcuato di Tella, em Buenos Aires.

"Eu tenho a esperança de que o governo faça (o ajuste) antes das eleições de 2017", acrescentou, em referência a um programa que implicasse reduzir significativamente o gasto público, que é historicamente alto.

"O risco é que nunca façamos isso, e aí sim estaremos em apuros".

Um corte certamente poderia afetar os programas sociais que Macri prometeu manter, algo talvez ainda menos popular do que o endividamento.

A BBC Mundo tentou conversar com o Ministério da Fazenda argentino sobre o assunto, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.]













Um comentário:

  1. Estive recentemente na Argentina (Buenos Aires) e pude constatar o aumento da mendicância espalhado por diversos bairros e o descontentamento presente em manifestações politicas diárias contra o governo.Mas convenhamos, os subsídios concedidos pela Cristina eram insustentáveis e populistas.

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