Ainda não há dignidade para as mulheres chinesas
Sheng Keyi (*) - International New York Times, 11/11/2015
Uma cena que vi há 30 anos atrás está gravada para sempre na minha memória. Um homem retornando para nosso vilarejo rural puxava uma carroça de duas rodas que sacolejava ao longo da estrada de terra. Deitada nela estava a mulher dele, que estava se recuperando de uma cirurgia de esterilização. Uma colcha grossa, com motivos florais, cobria a mulher da cabeça aos pés. Ela estava imóvel, como um cadáver.
Desde que vi aquela mulher inconsciente tive medo de que um dia pudesse terminar como ela: uma vítima da doentia violação física perpetrada por um propósito do governo chinês de impor sua política draconiana de um filho por casal. Jurei comigo mesma que nunca teria filhos, para que a cirurgia de esterilização jamais me fosse aplicada.
A liderança do Partido Comunista Chinês anunciou em 29 de outubro o fim da política do filho único, a ser substituída por uma lei que permitiria a casais casados ter dois filhos. Mas, eliminar a política do filho único não terminará com o controle do governo sobre os corpos das mulheres. Ainda não temos a palavra final quando se trata de nossos direitos reprodutivos.
Esse flagrante desrespeito pelos direitos das mulheres é parte inerente do sistema, que vi de perto. Em 1997, encontrei um emprego de "promoção da noção de saúde" no escritório de propaganda de um centro hospitalar de planejamento familiar.
Coisas que vi no hospital me chocaram. Um dia, quatro homens fortes vestidos com camuflagem militar arrastavam uma mulher jovem para a sala de operações, um homem para cada membro dela, enquanto ela se contorcia desesperadamente. Uma débil sensação de ultraje vibrou dentro de mim, mas não lhe dei muita atenção porque estava demasiado ocupada preocupando-me com meu emprego e com minha própria sobrevivência.
Para tornar-me um empregado formal do hospital, fiz algo que me envergonharia pelo resto de minha vida: escrevi uma história fictícia edificante sobre o centro de controle de natalidade, descrevendo como os médicos cuidavam dos pacientes como se eles fossem pessoas de suas famílias. A história foi publicada, e ganhou um prêmio da Comissão de Planejamento Familiar.
Escrevi também o relatório anual de desempenho do hospital, incluindo estatísticas de cirurgias de esterilização e abortos. Ainda me lembro de um número assombroso que encontrei: o diretor do hospital conseguira um recorde, realizando 88 esterilizações em um dia.
Na época, não me dei conta de que as esterilizações e abortos forçados estavam sendo feitos em todo o país. Pessoas que eram consideradas ter violado os regulamentos de planejamento familiar eram detidas, suas casas eram demolidas e suas criações de animais confiscadas. As autoridades em cidades e vilas tinham que cumprir metas de coletar multas e fazer abortos. Houve casos de mulheres grávidas sendo sequestradas e levadas a hospitais para que, à força, se fizessem nelas procedimentos de controle de natalidade.
A web está agora repleta de promoções que encorajam os casais a ter um segundo filho, o que parece uma piada cruel à luz das recentes exortações para que se tivesse apenas um filho.
A maioria das mulheres não quererá provavelmente ter mais de duas crianças -- com o bem-estar e educação recentemente descobertos e acessíveis, a maioria das pessoas parece preferir manter a família pequena. E as despesas para criar filhos serão impeditivas para um aumento da família. Mas, a política de dois filhos significa que o Estado pode interferir e irá interferir nas decisões que as mulheres tomam sobre seus corpos e suas famílias.
O que acontece com a família que quer ter um terceiro filho? E quanto às mulheres que engravidaram acidentalmente uma terceira vez e querem ter a criança?
Liang Zhongtang, um demógrafo que assessorou autoridades sobre política populacional, disse recentemente ao Beijing News que o planejamento familiar era ainda parte da missão do Estado. "Para manter a integridade da política estatal, é preciso que existam medidas compulsórias punitivas para quem violar a política de planejamento familiar", disse ele.
Essas "medidas punitivas" continuarão não apenas a afetar as mulheres, mas também um número não divulgado de segundas e terceiras crianças -- algumas estimativas apontam que esse número está na casa dos milhões -- que permanecem sem documentos, porque seus pais não têm como pagar as multas pela violação da política do filho único. Crianças cujos pais não pagam tais multas não podem ter documentos de identidade oficiais. Sem estes, as crianças não têm acesso à educação, a cuidados médicos e a outros benefícios sociais. Não há razão para crer que essas crianças serão reconhecidas oficialmente à luz da nova política, nem há razão para acreditar que não irá continuar a prática de multar os violadores da política de dois filhos.
O regime de controle de natalidade vai além da vida familiar. O governo proíbe as mulheres solteiras de usar "tecnologia reprodutiva assistida", que inclui o congelamento de óvulos e a fertilização in vitro. Este ano [2015], a importante atriz chinesa Xu Jinglei disse que havia ido aos Estados Unidos congelar seus óvulos. A discriminação particular sofrida pelas mulheres solteiras não será alterada na política de dois filhos.
A vasta e consolidada burocracia de planejamento familiar pode ter sido um fator nos cálculos do governo. A Comissão Nacional de Saúde e Planejamento Familiar alegadamente emprega mais de 500.000 pessoas -- e as multas aplicadas aos violadores da política de um filho têm sido uma fonte de receita importante para o governo. Os burocratas lutarão para manter seus empregos na política de dois filhos.
A mudança na política é meramente um reconhecimento do problemático desequilíbrio de gêneros e do rápido envelhecimento da população na China. A natureza do sistema continuará a mesma: ela ainda pisoteia a dignidade das pessoas e ainda coloca os interesses do Estado acima daqueles dos cidadãos comuns. A política de dois filhos é muito pouco, e muito tardia.
(*) Sheng Keyi é uma romancista chinesa baseada em Beijing, cujos livros incluem "Northern Girls" e "Death Fugue". O texto em inglês do artigo foi traduzido do chinês pelo The New York Times.
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[Embora os atos coletivos do Estado chinês tenham uma escala sem paralelo no resto do mundo (para a construção da hidrelétrica de Três Gargantas, por exemplo, 1 milhão de pessoas foram transferidas de lugar por decreto, sem qualquer possibilidade de contestação), a esterilização forçada de mulheres também ocorreu em proporções assustadoras no Brasil e alhures na América do Sul. Ver: "Assim como no Brasil na década de 80, houve esterilização em massa de mulheres no Peru na década de 90".]
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