sábado, 13 de fevereiro de 2016

As causas dos 1.000 anos de inimizade entre católicos e ortodoxos

[Traduzo a seguir a reportagem de Daniel García Marco, publicada no site espanhol BBC Mundo. A tentativa de reaproximação com a igreja ortodoxa é um dos muitos gestos revolucionários do papa Francisco. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]

É o primeiro encontro entre o Papa de Roma e o Patriarca de Moscou desde o cisma de 1054 - (Foto: Getty)

Nada dura para sempre, nem mesmo a inimizade. Os mais de 1.000 anos de rivalidade entre as igrejas católica e ortodoxa serão postos à prova na sexta-feira 12 com o  encontro em Havana entre o líder católico e o patriarca da igreja russa, a maior e mais influente da Ortodoxia.

Por isso, poucas vezes o qualificativo "histórico" esteve tão justificado.

A reunião de duas horas, na neutralidade do aeroporto da capital de Cuba, entre o papa Francisco e o patriarca Kiril é vista como um primeiro passo para a reconciliação entre as duas maiores igrejas em que se divide o cristianismo.

O BBC Mundo explica alguns pontos-chaves de uma divisão milenar e de um possível entendimento futuro.

O que aconteceu no ano de 1054?

Adata é simbólica. É o ponto final de uma divisão que se vinha gerando durante séculos. Em 1054, o Papa de Roma e o Patriarca de Constantinopla se excomungaram mutuamente e assim começou o que se conhece como o grande cisma do cristianismo, que persiste até hoje.

A diferença no conceito de autoridade é um dos divisores entre católicos e ortodoxos - (Foto: Getty)

Mas as igrejas cristãs do Oriente e do Ocidente já vinham se separando havia séculos, sobretudo culturalmente. No Ocidente se falava o latim, enquanto no Oriente bizantino prevalecia a cultura helenística grega. 

A questão, no entanto, ia mais além do cultural  e do linguístico. O enfrentamento, além das diferenças rituais, se apoia em aspectos doutrinários ou teológicos como o conceito de purgatório e a chamada "controvérsia trinitária". 

Enquanto no Ocidente se acredita no Espírito Santo e a ele se reza, que de acordo com as correntes  teológicas mais amplas na igreja ocidental "procede do pai e do filho", os ortodoxos prescindem da figura do filho. 

É o conflito pelo que em latim se denomina "filioque"("e do filho"). "Essa única palavra gerou concílios, guerras e mal-entendidos. Por ela, lutamos durante um milênio", afirma ao BBC Mundo Philip Goyret, vice-reitor da Universidade Pontifícia da Santa Cruz de Roma. 

Papa versus Patriarca 

Mas o tema-chave nesse relacionamento é o modo diferente de entender a função de quem manda na igreja. Na católica, a função do Papa se entende como a figura máxima em termos de autoridade. A igreja ortodoxa, ao contrário, está dividida em patriarcados, entre os quais existe uma igualdade. Há um, o de Constantinopla, ocupado atualmente por Bartolomeu, que é considerado o "primeiro entre iguais". 

Bartolomeu tem uma certa proeminência, mas não tem jurisdição sobre toda a igreja ortodoxa. Além disso, seu patriarcado, com sede em Istambul e com cerca de 10.000 fiéis, não tem o peso do de Moscou, que com Kiril à frente congrega cerca de 120 dos 200 milhões de crentes ortodoxos. Por seu lado, a igreja católica conta com cerca de 1,2 bilhão de fiéis. 

A igreja ortodoxa russa sempre esteve muito ligada ao poder, como foi com o imperador, com o czar ou com o secretário-geral do Partido Comunista na era soviética. Agora, Kiril, patriarca desde 2009, mantém uma estreita relação com o presidente russo Vladimir Putin. A oposição ao Kremlin critica habitualmente a sintonia entre a Igreja e o Estado. 

O patriarca Kiril e o presidente russo Vladimir Putin, com quem mantém estreita relação - (Foto: Getty)

Questão de poder

O cisma teve também muito o que ver com o poder. No século XVI, a Europa estava se evangelizando e começaram as disputas para ver a que igreja caberia uma determinada missão. "Houve um conflito de poderes", explica Goyret. E ele de alguma maneira persiste, e é fonte de tensões. 

Com a chegada do comunismo, e a criação do bloco soviético, a igreja católica na Ucrânia e na Rússia foi violentamente reprimida pelo Estado, que entregou os templos católicos à igreja ortodoxa. Quando caiu o Muro de Berlim os católicos recuperaram a liberdade religiosa e surgiu tensão, porque quiseram reaver o que havia sido seu. 

Os ortodoxos não toleraram bem nos últimos anos o que consideram como tentativas de expansão do catolicismo na Rússia. A criação de dioceses católicas no país pelo papa João Paulo II gerou inquietude em Moscou, que viu isso "como uma invasão", conta Goyret. 

Hoje em dia o conflito persiste na Ucrânia, onde a igreja católica greco-ucraniana, a segunda maior do país, tem ritos orientais mas se reporta a Roma, o que desgosta Moscou. 

Por que agora?

A ambas as igrejas as une neste momento a preocupação com a perseguição a cristãos, católicos e ortodoxos, e a destruição de monumentos cristãos na África e na Ásia, sobretudo pelas mãos do autodenominado Estado Islâmico na Síria. 

"Nesta trágica situação, temos de deixar de lado nossos desentendimentos internos e unir esforços para salvar o cristianismo nas raegiões em que é objeto de perseguição", afirmou Hilarion Alfeyev, chefe de política externa da igreja ortodoxa russa. 

Datas-chaves do cisma e da aproximação

1054 - O Papa de Roma e o Patriarca de Constantinopla se excomungam mutuamente

Março de 2013 - O Patriarca de Constantinopla comparece à posse de Francisco como Papa

Novembro de 2014 - O Papa estende a mão a Kiril: "Irei onde queiras. Chama-me e vou"

12 de fevereiro de 2016 - O Papa e o Patriarca da igreja ortodoxa russa se reúnem pela primeira vez em 1.000 anos 

Mas, Goyret acredita que a hipotética unidade futura entre as igrejas é o tema que está por trás de tudo. "O fato de estarem divididas é escandaloso, e prejudica a evangelização de maneira muito séria. Tira credibilidade ao cristianismo", opina o especialista. 

De acordo com o porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi: "O encontro é de uma importância extraordinária no caminho das relações ecumênicas e do diálogo entre as confissões religiosas". 

Como foi gerado o encontro

Já há anos as igrejas haviam dado mostras de querer se aproximar. Comissões de uma e outra se deslocaram para Roma e Moscou. 

Ao sair à janela da Praça São Pedro recém-eleito papa no 13 de março de 2013, Francisco se apresentou simplesmente como "bispo de Roma". "Essa relação bispo-povo é algo muito apreciado no Oriente", explica Goyret.  

O patriarca Bartolomeu apreciou esse gesto do papa de entender a igreja como um conjunto de dioceses autônomas não centralizadas em Roma, e por isso acudiu ao Vaticano quando Francisco tomou posse. Era a primeira vez na história em que o Patriarca de Constantinopla estava presente a esse ato

O Papa Francisco e o Patriarca Bartolomeu se reuniram em Istambul  em 2014 - (Foto: Getty)

E foi um feito simbólico que não passou despercebido em Moscou. Em novembro de 2014, o novo Papa estendeu  a mão a Kiril: "Irei onde queiras. Chama-me e vou", se ofereceu. E o patriarca russo respondeu positivamente à sua iniciativa. 

A ambos os une a preocupação com o meio ambiente, mas não é apenas isso. "Que o Papa tenha se distanciado dos liberalismos econômicos extremos é algo também compartilhado", afirma Goyret. 

E a partir de agora?

A unidade do cristianismo não acontecerá de um dia para o outro, mas o encontro aparece como uma tentativa de deflagrar um processo que exigirá concessões de ambas as partes.

Do ponto de vista católico, essa aproximação faz parte das reformas que Francisco quer fazer avançar. Entre elas, a que a primazia papal não seja um obstáculo à unidade da igreja.

O papa busca a aproximação das igrejas cristãs como meta de seu papado - (Foto: Getty)

"Essas são palavras fortes, porque o chamado 'ministério petrino' vem da vontade de Cristo", explica Goyret. Do lado ortodoxo, "o problema é ao contrário", diz ele, devido à falta de uma chefia clara. 

A igreja ortodoxa vem tentando reunir-se em um sínodo (que a igreja católica chama de concílio) há mais de 50 anos. Por não haver uma autoridade central, não há quem possa convocá-lo, mas finalmente será celebrado em junho na ilha de Creta, na Grécia. 

Talvez Kiril encontre mais tensões internas que Francisco. "As forças conservadoras em Moscou disseram que não lhes agrada a reunificação com o Ocidente, porque isso os enfraquece", afirma Chad Pecknold, teólogo da Universidade da América, nos EUA.

[Detalhamento das principais diferenças entre a Santa Igreja Católica Apostólica Ortodoxa e a Igreja Católica Apostólica Romana, na visão dos ortodoxos: 

As diferenças fundamentais são a questão da infalibilidade papal e a reivindicação de supremacia universal da Sé de Roma, o que a Igreja Ortodoxa não admite, pois ferem frontalmente a Sagrada Escritura e a Santa Tradição.
 Existem, ainda, outras distinções, abaixo relacionadas em dois grupos básicos: 


DIFERENÇAS GERAIS:


São dogmáticas, litúrgicas e disciplinares.

A Igreja Ortodoxa só admite sete Concílios, enquanto a Romana adota vinte.

A Igreja Ortodoxa ensina que o Espírito Santo procede unicamente do Pai, conforme afirma o Credo Niceno-Constantinopolitano, e não do Pai e do Filho, conforme o ensino da Igreja Romana, que resolveu no ano de 1014 dC aceitar a modificação imposta pelo Imperador Carlos Magno no Séc. IX, adulterando assim o texto do Credo e, principalmente, a noção da Ontologia Trinitária.

A Sagrada Escritura e a Santa Tradição tem o mesmo valor como fonte de Revelação, segundo a Igreja Ortodoxa, pois na Bíblia se tem o ensinamento Divino e, na Tradição a correta interpretação, ambas fruto do Sopro de Deus, o Espírito Santo. A Romana, no entanto, considera a Tradição mais importante que a Sagrada Escritura.

A consagração do pão e do vinho, durante a missa, no Corpo e no Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, efetua-se pelo Prefácio, Palavra do Senhor e Epíclese, e não pelas expressões proferidas por Cristo na Última Ceia, como ensina a Igreja Romana.

Em nenhuma circunstância, a Igreja Ortodoxa admite a infalibilidade do Bispo de Roma. Considera a infalibilidade uma prerrogativa de toda a Igreja e não de uma só pessoa.

A Igreja Ortodoxa entende que as decisões de um Concílio Ecumênico são superiores às decisões do Papa de Roma ou de quaisquer hierarcas eclesiásticos.

A Igreja Ortodoxa não concorda com a supremacia universal do direito do Bispo de Roma sobre toda a Igreja Cristã, pois considera todos os bispos iguais. Somente reconhece uma primazia de honra ou uma supremacia de facto (primus inter pares).

A Virgem Maria, igual às demais criaturas, foi concebida em estado de pecado ancestral. A Igreja Romana, por definição do papa Pio IX, no ano de 1854, proclamou como "dogma" de fé a Imaculada Concepção.

A Igreja Ortodoxa nega a existência do limbo e do purgatório.

A Igreja Ortodoxa não admite a existência de um Juízo Particular para apreciar o destino das almas, logo após a morte, mas um só Juízo Universal.

O Sacramento da Santa Unção pode ser ministrado várias vezes aos fiéis em caso de enfermidade corporal ou espiritual, e não somente nos momentos de agonia ou perigo de morte, como é praticado na Igreja Romana.

Na Igreja Ortodoxa, o ministro habitual do Sacramento do Crisma é o Padre; na Igreja Romana, o Bispo, e só extraordinariamente, o Padre.

A Igreja Ortodoxa não admite a existência de indulgências.

No Sacramento do Matrimónio, o Ministro é o Padre e não os contraentes.

Em casos excepcionais, ou por graves razões, a Igreja Ortodoxa acolhe a solução do divórcio admitindo um segundo ou terceiro casamento penitencial.

São distintas as concepções teológicas sobre religião, Igreja, Encarnação, Graça, imagens, escatologia, Sacramentos, culto dos Santos, infalibilidade, Estado religioso... 


DIFERENÇAS ESPECIAIS:


Além disso, subsistem algumas diferenças disciplinares ou litúrgicas que não transferem dogma à doutrina. São, nomeadamente, as seguintes:

1- Nos templos da Igreja Ortodoxa só se permitem ícones.
2- Os sacerdotes ortodoxos podem optar livremente entre o celibato e o casamento.
3- O batismo é por imersão.
4- No Sacrifício Eucarístico, na Igreja Ortodoxa, usa-se pão com levedura; na Romana, sem levedura.
5- Os calendários ortodoxo e romano são diferentes, especialmente, quanto à Páscoa da Ressurreição.
6- A comunhão dos fiéis é efetuada com pão e vinho; na Romana, somente com pão.
7- Na Igreja Ortodoxa, não existem as devoções ao Sagrado Coração de Jesus, Corpus Christi, Via Crucis, Rosário, Cristo-Rei, Imaculado Coração de Maria e outras comemorações análogas.
8- O processo da canonização de um santo é diferente na Igreja Ortodoxa; nele, a maior parte do povo participa no reconhecimento do seu estado de santidade.
9- Existem, três ordens menores na Igreja Ortodoxa: leitor, acólito e sub-diácono; na Romana: ostiário, leitor e acólito.
10- O Santo Mirão (Crisma) e a Comunhão na Igreja Ortodoxa efetuam-se imediatamente após o Batismo.
11- Na fórmula da absolvição dos pecados no Sacramento da Confissão, o sacerdote ortodoxo absolve não em seu próprio nome, mas em nome de Deus - "Deus te absolve de teus pecados"; na Romana, o sacerdote absolve em seu próprio nome, como representante de Deus - "Ego absolvo a peccatis tuis...."
12- A Ortodoxia não admite o poder temporal da Igreja; na Romana, é um dogma de fé tal doutrina.

Os Dez Mandamentos

A Santa Igreja Católica Apostólica Ortodoxa conservou os dez mandamentos da Lei de Deus na sua forma original, sem a menor alteração. O mesmo não sucedeu com o texto adoptado pela Igreja Católica Apostólica Romana, no qual os dez mandamentos foram arbitrariamente alterados, tendo sido totalmente eliminado o segundo mandamento ("Não adorar ídolos", segundo os ortodoxos)  e o último dividido em duas partes, formando dois mandamentos distintos. Esta alteração da Verdade constitui um dos maiores erros teológicos desde que a Igreja Romana cindiu a união da Santa Igreja Ortodoxa no século XI. Esta modificação nos dez mandamentos, introduzidos pelos papas romanos, foi motivada pelo Renascimento das artes. Os célebres escultores daquela época tiveram um amplo leque de atividades artísticas, originando obras de grande valor. Não obstante, as esculturas representando Deus, a Santíssima Virgem Maria, os santos e os anjos estavam em completo desacordo com o segundo mandamento de Deus. Havia, pois, duas alternativas, ou impedir a criação de estátuas ou suprimir o segundo mandamento. Os papas escolheram esta última solução, caindo em grave erro.

Há ainda outra explicação para o intensivo uso de imagens pela Igreja de Roma -- este acréscimo é meu e não da fonte utilizada acima. Devido ao alto nível de analfabetismo entre os fiéis, dizem outras fontes, a Igreja de Roma teria decidido recorrer fortemente às imagens para reforçar e consolidar a adesão de seus seguidores.]  

  

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