segunda-feira, 6 de junho de 2016

Como descobrir o Brasil por sua literatura, na visão argentina

[Traduzo a seguir artigo interessante de Natalia Blanc, na seção Ideas (Ideias) do jornal argentino La Nación. É sempre instrutivo ver como nos vêem no exterior fora dos estereótipos de mulatas, carnaval  e outras mesmices -- e, sem dúvida, a literatura é uma excelente janela para se observar um país. O texto apresenta um panorama atualizado de autores de projeção na nossa literatura, além de mostrar o sério e organizado interesse dos argentinos por nossa cultura. Tenho quase certeza de que nada semelhante existe no Brasil em relação à Argentina. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]

Um mapa em português: como descobrir o Brasil por sua literatura

Natalia Blanc -- La Nación, 24/01/2016

De Jorge Amado aos nomes mais novos, um guia de livros traduzidos para o castelhano para conhecer em profundidade, região por região, um país que tem muito mais a oferecer do que praias, a bossa nova e o futebol.

Em 1945, Jorge Amado publicou Bahia de Todos os Santos, um guia literário sobre o estado da Bahia em que ele descreve a cultura dessa região além de questões geográficas e turísticas. Também em romances do escritor baiano como Tenda dos Milagres e Gabriela, cravo e canela se percebe a alma, a poesia e a música de uma cidade como Salvador ou de pequenos povoados vizinhos. Assim como a música e o cinema refletem determinadas características sociais, é possível conhecer as diversas realidades de um país através da obra de autores clássicos e contemporâneos. De Joaquim Maria Machado de Assis, João Guimarães Rosa, Oswald de Andrade e Graciliano Ramos a Silvano Santiago, João Gilberto Noll, Dalton Trevisan e Milton Hatoum, passando por Clarice Lispector, Chico Buarque e Ferreira Gullar: um guia literário para descobrir o Brasil, mais além do carnaval, do futebol e das praias.

"Há uma literatura brasileira atual na qual persiste um certo olhar regional, mas esse olhar já se transformou: é muito mais fragmentário e entrecruzado por outras problemáticas", explica Florencia Garramuño, diretora do Programa em Cultura Brasileira da Universidade de San Andrés.

Nesse olhar em que se entrecruzam o global e o local, a especialista situa autores como João Gilberto Noll, que nasceu em Porto Alegre e em suas histórias parte dessa cidade do Rio Grande do Sul para chegar a Londres (Lorde) ou Boston (Bandoleiros); o poeta Carlito Azevedo (do Rio de Janeiro à Ucrânia ou às colinas de Berkeley); Teixeira Coelho (São Paulo, Buenos Aires, Paris, Portugal); e Age de Carvalho (Amazonas e Alemanha).

Nos últimos anos, várias editoras argentinas começaram a publicar no país títulos fundamentais da literatura e da crítica brasileiras, com traduções muito boas para o espanhol. Corregidor abriu o caminho em 1999, com a coleção Vereda Brasil, que é dirigida por Garramuño, Gonzalo Aguilar (UBA - Universidade de Buenos Aires) e Maria Antonieta Pereira (Universidade Federal de Minas Gerais). Entre os 28 títulos que publicaram desde então, figuram os nomes mais representativos. Explica Aguilar: "Há escritores canônicos e novos. Assim, aparecem Oswald de Andrade, um dos vanguardistas mais importantes do século XX, autor de Escritos antropófagos [Manifesto Antropófago (ou Antropofágico), em português]; Graciliano Ramos (Vidas Secas, onde apresenta a problemática do Nordeste);  Clarice Lispector, que tem sua própria coleção; Silvano Santiago (Em liberdade) ou Carlito Azevedo (Monodrama).

Outros títulos emblemáticos dessa coleção pioneira são Poema sujo, de Ferreira Gullar, poeta, dramaturgo e crítico de arte nascido na cidade de São Luiz, capital do estado do Maranhão, que escreveu esse livro durante seu exílio em Buenos Aires na década de 1970. E Ubirajara, de José de Alencar, da zona do Ceará, um dos escritores mais destacados do romantismo brasileiro.

"Na literatura contemporânea o que mudou foi o conceito de representação, que foi substituído por uma ideia de apresentação de problemáticas contemporâneas que põem em questão a própria noção de realidade", continua Garramuño. A realidade, então, aparece em muitos dos autores brasileiros contemporâneos sob diferentes lupas. Podem ser histórias urbanas como a de Mãos de Cavalo (ed. Interzona), de Daniel Galera, nascido em Porto Alegre, que com este romance que descreve um percurso veloz de bicicleta pelas ruas de sua cidade natal foi finalista do prêmio Jabuti, o mais importante do Brasil. Ou um texto sobre a identidade e a memória, como Relato de um certo Oriente (ed. Beatriz Viterbo), o primeiro romance de Milton Hatoum, descendente de libaneses oriundo da cidade de Manaus, cujas tramas transcorrem nessa cidade, no Rio de Janeiro e em São Paulo.

"A própria história do Brasil permitiu essa pluralidade de vozes. Mas pluralidade não implica um olhar provincial, mas sim, em alguns casos, uma certa pretensão universalista. Pode-se pensar na obra de Silvano Santiago (nascido em Minas Gerais) ou nos romances de Hatoum e observar uma espécie de tensão dialética entre o local e o universal", diz Aguilar. O crítico e docente ressalta uma tendência forte nos últimos anos, vinculada à produção literária das favelas. "Diferentemente do que ocorre na música popular, onde há muita mistura e as fronteiras são mais flexíveis, a literatura do Brasil permaneceu fechada durante muito tempo. Mas, nos últimos anos, produziu-se uma mudança muito forte com respeito a autores marginais, que começaram a ter uma participação importante tanto na esfera estatal como na sociedade civil. Assim surgiu a literatura vinculada ao marginal [no sentido de "à margem"], que busca construir uma comunidade e articular a possibilidade de uma literatura alternativa à dominante. Essa luta se dá fundamentalmente em São Paulo".

Enquanto em um romance como Eles eram muitos cavalos (ed. Eterna Cadencia) Luiz Ruffato narra um dia no ano 2000 na imensurável cidade de São Paulo, em Capão Pecado, de Ferréz, é relatada a vida real no interior da favela. Na opinião de Aguilar, "em Ferréz há uma forte identificação local como uma reflexão sobre o local de origem. Além de publicar seus livros a partir da favela, Ferréz conseguiu impor-se como uma marca: ativou blogs, desenhou camisetas com motivos de orgulho bairrista, construiu toda uma estratégia mais além do literário. É um fenômeno cultural dentro da sociedade capitalista". A circulação da literatura não oficial em São Paulo se dá nos saraus, serões literários que se difundiram em Buenos Aires na Feira Internacional do Livro de 2014.

No Rio de Janeiro, a  problemática das favelas foi exposta ao mundo no livro Cidade de Deus, de Paulo Lins, que chegou ao cinema em 2003 em um filme dirigido por Fernando Meirelles. A história viajou da favela onde nasceu Lins para Hollywood sem escalas: o filme teve quatro indicações ao Oscar. Do local ao global.

Da costa à selva

Dez títulos e dez autores que revelam dez regiões brasileiras.


Ilustração: La Nación [Clique na imagem para ampliá-la. Aqui, a autora do texto cometeu um engano: colocou Graciliano Ramos como pernambucano, quando na realidade ele nasceu em Alagoas.]

No mapa acima (mantive os títulos que os livros receberam em espanhol -- entre parênteses está o nome da editora):

AMAZONAS (Manaus)  -- Relato de un cierto Oriente (Beatriz Viterbo) - Milton Hatoum 

MARANHÃO -- Poema sucio (Corregidor) - Ferreira Gullar 

CEARÁ -- Ubirajara (Corregidor) - José de Alencar

PERNAMBUCO -- Infancia (Beatriz Viterbo) - Graciliano Ramos (que na verdade era alagoano e não pernambucano)

BAHIA -- Tienda de los milagros (Emece) - Jorge Amado

RIO DE JANEIRO -- Padre contra madre (Eterna Cadencia) - Joaquim Maria Machado de Assis

SÃO PAULO -- Ellos eran muchos caballos (Eterna Cadencia) - Luiz Ruffato

RIO GRANDE DO SUL (Porto Alegre) -- Bandoleros (Adriana Hidalgo) - João Gilberto Noll

PARANÁ (Curitiba) -- La trompeta del ángel vengador (Mardulce) - Dalton Trevisan

MINAS GERAIS -- Gran Sertões: Veredas (Adriana Hidalgo) - João Guimarães Rosa



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