segunda-feira, 18 de março de 2013

Venha para casa, América

[Não me lembro de ter lido nada mais preciso e didático sobre as origens e consequências da autoproclamação dos EUA como xerifes do mundo do que o artigo de Elizabeth Cobbs Hoffman publicado no dia 6 de março corrente da versão impressa do International Herald Tribune - IHT (a edição global do The New York Times), na página de editorial e opiniões, com o título "A Segunda Guerra Mundial acabou, América". O mesmo artigo saiu, na mesma página da edição virtual do jornal, no dia 4 de março com o título que encabeça esta postagem. Traduzo a seguir a íntegra do texto. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade. A reprodução do texto não significa que concordo com tudo que nele está.]

Ilustração: Ben Jones (International Herald Tribune)

Venha para casa, América

Elizabeth Cobbs Hoffman (*) - IHT, 04/3 e 06/3/2013

Todo mundo fala em pular fora do Iraque e do Afeganistão. Mas, o que dizer de Alemanha e Japão?

O sequestro [corte automático de gastos do governo americano contido no Ato de Controle Orçamentário -- Budget Control Act -- firmado entre democratas e republicanos, que entrou em vigor em 2/8/2011] -- US$ 85 bilhões de cortes orçamentários este ano, dos quais cerca da metade será no Pentágono -- dá aos americanos uma oportunidade para discutir uma questão que temos posto de lado há demasiado tempo: por que ainda estamos lutando a Segunda Guerra Mundial?

Desde 1947, quando o Presidente Harry S. Truman estabeleceu uma política de sustar uma expansão adicional soviética e "apoiar povos livres" que estavam "resistindo a serem subjugados por minorias armadas ou por pressões externas", a América agiu como uma polícia do mundo.

Por mais de um século, a Grã-Bretanha "segurou a barra" contra agressões na Eurásia, mas com a Segunda Guerra Mundial isso se desfez. Apenas dois anos após a reunião dos Aliados em Yalta para firmar a ordem do pós-guerra, Londres deu a Washington uma notícia com cinco semanas de antecedência: agora é a sua vez. O governo grego estava combatendo partisans armados pela Iugoslávia comunista. A Turquia estava sendo pressionada para permitir que tropas soviéticas patrulhassem suas hidrovias. Stalin estava armando governos fortemente, da Finlândia ao Irã.

Alguns historiadores dizem que Truman amendrontou o povo americano e levou-o a um compromisso amplo e sem término com a segurança mundial. Mas, os americanos já estavam amedrontados: em 1947, uma pesquisa Gallup revelou que 73% deles consideravam provável uma Terceira Guerra Mundial.

Da Doutrina Truman emergiu uma estratégia que compreendia várias e múltiplas alianças: o Pacto do Rio de 1947 (América Latina), o Tratado da OTAN de 1949 (Canadá e Europa Setentrional e Ocidental), o Tratado de Anzus de 1951 (Austrália e Nova Zelândia) e o Tratado da Seato de 1954 (Sudeste Asiático). O tratado da Seato expirou em 1977, mas os outros protocolos permanecem vigentes, como também ainda vigoram acordos de defesa coletiva com Japão, Coreia do Sul e Filipinas. Enquanto isso, inventamos a prática da ajuda externa, começando com o Plano Marshall.

Foi uma mudança profunda, ainda mais em relação a 1940, quando Franklin D. Roosevelt ganhou um terceiro mandato prometendo não lançar os EUA numa guerra. Isolacionismo havia tido uma rica tradição, do alerta de Washington em 1796 contra confusões externas ao debate de 1919 sobre o Tratado de Versalhes, no qual Henry Cabot Lodge argumentou: "Quanto menos assumirmos o papel de árbitros e nos envolvermos nos conflitos europeus, melhor para os Estados Unidos e para o mundo".

A Segunda Guerra Mundial e a relativa impotência das Nações Unidas convenceram sucessivas administrações de que a América tinha que preencher esse vazio, e assim o fizemos. O mundo estava muito mais seguro na segunda metade do século 20 do que em sua desastrosa primeira metade. A porcentagem de população mundial morta em conflitos entre países reduziu-se em cada década após a Doutrina Truman. A América viveu mais guerras (Coreia, Vietnam, as duas guerras do Iraque, Afeganistão), mas o mundo como um todo sofreu menos conflitos.

Não éramos tanto um império -- o império criticado pelo acadêmico e veterano Andrew J. Bacevich e celebrado pelo historiador Niall Ferguson -- mas um árbitro, um árbitro que defendia o acesso igualitário das nações-estados a ganhos políticos e econômicos, à arbitragem pacífica de conflitos, e à transparência no comércio e nos negócios. Mas, as condições mudaram radicalmente desde a Guerra Fria. Quando os Estados Unidos estabeleceram bases na Alemanha Ocidental e no Japão, estes países eram considerados renegados perigosos que precisavam ser vigiados. Seus governos restabelecidos desejavam também proteção, particularmente contra a União Soviética e a China. O primeiro secretário-geral da OTAN, Hastings Ismay, ficou famoso ao dizer que a aliança existia "para manter os russos fora, os americanos dentro e os alemães submissos".

Hoje, nossas maiores bases permanentes estão ainda na Alemanha e no Japão, que estão perfeitamente capacitados a se defenderem e deveriam ser estimulados a ajudar seus vizinhos. Já é hora deles pagarem uma parte maior da conta ou de operarem suas próprias bases. O capitalismo autoritário da China não tem se traduzido em agressão territorial, enquanto a Rússia não exerce mais comando sobre as Europas Central e Oriental. A duração irracional da Doutrina Truman deve-se ao fato de os altos escalões militares ainda falarem em manutenção da capacidade de lutar uma guerra de dois fronts -- presumivelmente em terra na Europa e no mar no Pacífico.

Nossas guerras no Oriente Médio desde 2001 aumentaram significativamente seus custos gerais por causa dessa doutrina onerosa e ultrapassada. A teoria do dominó jacente por trás da guerra do Vietnam reviveu sob uma nova formulação: a não ser pelo arbítrio americano, os bandidos (Al Qeda, Irã, Coreia do Norte) vencerão.

Apesar das expectativas de seus partidários, o presidente Obama tem adotado para o Oriente Médio uma política quase idêntica à de seu antecessor. Ele nos retirou do Iraque apenas para aprofundar nosso comprometimento com o Afeganistão, de onde estamos saindo exatamente agora. Ele rejeitou as técnicas de contraterrorismo mais odiosas do governo de George W. Bush, mas por outro lado não alterou as políticas básicas vigentes.  Os acenos de Obama rumo a um multilateralismo não foram correspondidos por um compromisso proporcional de muitos de nossos aliados.

Cínicos afirmam que o "complexo industrial-militar" contra o qual Dwight D. Eisenhower previdentemente alertou existiu basicamente para enriquecer uma nação gananciosa e imperialista. Mas, a América era próspera muito antes de tornar-se uma superpotência -- por volta de 1890, já era a maior e mais rica economia  do mundo.  Não necessitamos de um sistema militar grande para sermos ricos -- é exatamente o oposto, ele drena os nossos recursos.

Realistas sustentam que se deixarmos de defender o acesso aos recursos naturais do mundo -- leia-se petróleo -- ninguém mais o fará. Será? Não é plausível que os europeus, que dependem de importações energéticas bem mais do que a nação que possui o Texas e o Alasca, joguem suas mãos para cima e enterrem suas cabeças na areia. É paternalista e ingênuo pensar que a América é verdadeiramente o único país "necessário". Bons líderes geram novos líderes. A crise líbia mostrou o muito que nossos aliados podem fazer.

Os Estados Unidos podem e devem pressionar o Irã e a Coreia do Norte com relação a seus programas nucleares. Têm que ajudar a reformar e fortalecer instituições multilaterais como as Nações Unidas, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Têm que defender o direito das nações pequenas, incluindo Israel, a "libertar-se do medo". Mas, há muitas maneiras para alcançar esses objetivos e nem todos eles envolvem mais empréstimos e gastos.

Debates politicamente tendenciosos focados em cortar um ponto percentual do orçamento do Pentágono aqui ou ali não nos levarão para onde precisamos ir. Ambos nossos partidos estão aferrados ao paradigma de um ativismo internacional caro, enquanto potências emergentes como China, Índia, Brasil e Turquia estão acumulando riquezas e elevando sua produtividade e seus padrões de vida, como fizemos no século 19. As consequências no longo prazo são óbvias.

Desde 1945, a América tem pago um preço em sangue, dinheiro e reputação. Árbitros podem ser necessários, mas raramente são populares e, por definição, não podem vencer. Talvez os outros jogadores se movimentem apenas se ameaçarmos sair de campo. Compartilhar com nossos aliados o ônus da segurança é mais do que uma necessidade fiscal. É a condição sine qua non para o retorno a uma normalidade global.

[A autora do texto mostra, aqui e acolá, alguns dos ranços típicos quanto ao papel dos EUA no mundo, mas inegavelmente merece ser elogiada pela abordagem do tema. A ironia da história é que a pátria do capitalismo teve que render-se às leis de mercado e concluir que, assim como não há almoço de graça, fazer política intervencionista sem dinheiro no caixa é simplesmente inviável.]

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(*) Elizabeth Cobbs Hoffman é professora de relações externas americanas na Universidade Estadual de San Diego e publicou recentemente o livro "Árbitro Americano" (American Umpire).

Prof. Elizabeth Cobbs Hoffman - (Foto: Google).


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