domingo, 6 de dezembro de 2015

Ecos dos atentados de Paris (III - final))

(Ver postagem anterior.)

Como mencionado na primeira das postagens sobre os ecos dos atentados em Paris,  o segundo grande dilema e enigma enfrentado pela França é identificar como e porquê foi possível que ocorressem as tragédias do 13 de novembro, apenas 10 meses após os traumáticos atentados contra o jornal satírico Charlie Hebdo e  um supermercado de produtos para judeus.

O governo francês rejeita veementemente qualquer hipótese de falha de seus serviços de inteligência, mas é impossível negar a evidência disso diante de uma abundância de detalhes que envolvem, por exemplo, a livre circulação de cidadãos já fichados como perigosos para a segurança do Estado e sua participação nos atentados de 13/11, e a estranha e absurda incapacidade da inteligência francesa de detectar qualquer indício de que algo estava por acontecer.  A polícia concluiu que havia pelo menos três franceses entre os sete terroristas camicases que perpetraram aqueles atentados, o que aumenta o mistério sobre a falha na segurança francesa. 

A polícia concluiu também que a Bélgica havia servido de base de retaguarda para parte dos comandos que aterrorizaram Paris. A atitude francesa de atribuir à inteligência belga a responsabilidade pela falha na segurança em relação aos atentados em Paris provocou a reação imediata de Bruxelas, que defendeu também com veemência a eficiência de seus serviços. Nesse jogo de empurra, as investigações se concentram em uma possível rede franco-belga de terroristas. 

Os atentados da sexta-feira desencadearam também reflexões amargas dos próprios franceses e da imprensa estrangeira sobre a França, seus líderes, sua atuação internacional contra o terrorismo, seu relacionamento com as minorias étnicas e sua visão sobre o Estado Islâmico e outros grupos terroristas. O jornal francês Le Monde classificou o governo de François Hollande como o mais belicista da V República. Houve acusações de que, na guerra contra o terrorismo, a França tem atuado muito a reboque dos EUA.

O atentado terrorista em um hotel internacional de Bamako, capital do Mali, em 20 de novembro (uma semana depois dos atentados em Paris), com 27 mortos, foi visto como outro fracasso da ação da França contra os terroristas. Ex-colônia francesa do final do século XIX até 1960, o Mali está sob intervenção militar da França desde janeiro de 2013 com apoio logístico dos EUA e de outros países europeus, a pedido da junta militar que governava o país desde o golpe de 2012.  

A mídia francesa foi impiedosa com a França, mesmo no trauma imediatamente após os atentados em Paris. Usando a palavra Daech em vez de Estado Islâmico (Daech é a sigla árabe para isso), o jornalista Éric Zemmour publicou um artigo pesado de página inteira na Le Figaro Magazine de 20/21 de novembro com o título "A França, eterno 'pequeno Satã'". Em seu texto ele diz que a França não é o único alvo do Estado Islâmico, mas é um alvo privilegiado por conta de seus caças Rafale que bombardeiam o Iraque e a Síria e de suas tropas de elite que frearam a expansão dos islamitas no Mali e na África Central. Segundo ele, os bombardeios franceses não ameaçam as atividades do Daech nos territórios que este conquistou. A França para eles não é um adversário, é um inimigo. O Daech não teme as armas francesas, mas quer vingar-se da história francesa.

Segundo Zemmour -- numa opinião compartilhada por outros jornalistas e intelectuais franceses -- a França, nessa perspectiva histórica, é vista não apenas como o país que que liderou as Cruzadas, mas também como aquele que fez em 1789 uma Revolução violentamente antirreligiosa, sem esquecer esta França moderna que, do Egito à Argélia, colonizou terras muçulmanas. "Cruzados, blasfemos e idólatras", eis os franceses para o Daech. A França (sempre segundo Zemmour) não é ainda uma "terra do Islã" mas está em vias de tornar-se uma -- ela é pois, de acordo com a terminologia do Corão, uma"terra de guerra". Essa é na realidade a única diferença entre salafistas e a Irmandade Muçulmana. Aqueles querem islamizar a França a ferro e fogo, segundo o modelo de Maomé. Os Irmãos Muçulmanos se apoiam na demografia para chegar ao mesmo resultado, pacífica e democraticamente. Boualem Sansal -- um conhecido romancista e ensaísta argelino, de expressão francesa -- diz que "um islamita é um muçulmano impaciente". Um salafista do Daech é um Irmão Muçulmano belicoso.

Diante da salafização maciça da juventude muçulmana francesa, arremata Zemmour, que permite aos soldados do Estado Islâmico viver como peixe na água no seio dos subúrbios franceses ou belgas, os políticos franceses alarmados e nervosos consideram sagaz fazer dos Irmãos Muçulmanos adeptos de um inencontrável "Islã da França", de um quimérico Islã "republicano". Nisso está todo o sentido de colocar em evidência um Tareq Oubrou, imã de Bordeaux e grande amigo de Alain Juppé [político francês que foi primeiro-ministro da França de 1995 a 1997, e prefeito de Bordeaux de 1995 a 2004]. Estratégia que seria ridícula e risível, se não fosse trágica e suicida. 

Na mesma Le Figaro Magazine que publicou o artigo de Éric Zemmour resumido acima há uma reportagem muito interessante de Jean-Marc Conin com o título "Daech, um inimigo misterioso", e com o subtítulo "A França está em guerra. François Hollande a declarou diante do Congresso. Manuel Vals [primeiro ministro] a reiterou, assim como Bernard Cazeneuve [ministro do Interior] e Jean-Yves Le Drian [ministro da Defesa]. Mas, em guerra contra quem?".

Na TV e na mídia impressa francesas surgiram inúmeros debates sobre o Daech, sobre sua nova estratégia internacional e sobre como enfrentá-lo, explicitando divergências. Há os que consideram que dar-lhe prioridade e montar todo um aparato de guerra para combatê-lo só faz legitimá-lo, e dá corpo ao seu objetivo de provocar o que chama de uma "guerra de civilizações". Em comum nesses debates, a perplexidade diante de um inimigo sem rosto que atingiu o coração da França nos atentados de Paris.

Os efeitos colaterais dos atentados de Paris sobre a União Europeia (UE) ainda não estão absolutamente definidos em variedade e conteúdo, mas os primeiros resultados são profundos e preocupantes e atingem o cerne da própria concepção da UE. A primeira vítima imediata foi o Espaço Schengen, um dos pilares da UE, que garante a livre circulação de cidadãos entre os países da União. O livre trânsito de terroristas entre a Bélgica e a França, e um passaporte sírio encontrado perto do corpo de um dos terroristas mortos no Estádio da França, em Paris, acenderam a luz vermelha e ligaram as sirenes contra Schengen e contra a livre entrada de refugiados na Europa -- o passaporte sírio foi rastreado até a ilha de Léros, na Grécia, um dos principais pontos de entrada de refugiados na Europa. Há gente de peso que considera que a União Europeia perde o sentido sem o Espaço Schengen. 

Outro efeito pernicioso dos atentados, estritamente do ponto de vista das normas da UE, foi o efeito dominó sobre os orçamentos de defesa no âmbito. A França anunciou 600 milhões de euros a mais em 2016 para reforçar sua segurança. O Reino Unido anunciou um reforço de 17 bilhões de euros para os próximos dez anos no seu orçamento de defesa. A princípio reticente, a Alemanha aprovou o envio de tropas à Síria em apoio aos franceses. 

Os atentados em Paris fizeram também brotar os problemas quotidianos enfrentados com muçulmanos na vida francesa. A RATP (Administração Autônoma dos Transportes Parisienses) informou sobre a série de problemas gerados com o aumento das reivindicações de seus empregados muçulmanos salafistas, que vão desde a recusa a apertar a mão de colegas mulheres a não aceitar viajar em ônibus dirigido por mulheres, exigir locais para suas orações, reclamar do cardápio da festa de Natal (com foie gras, vinho, etc) e exigir um cardápio de acordo com sua dieta religiosa. Os mesmos problemas, com o mesmo tipo de empregados, são relatados pela Air France, pelas Ferrovias Francesas e pelos Correios. Comunidades muçulmanas reclamam também da presença de carne de porco no cardápio das creches e escolas públicas, e querem sua mudança, mas isso tem sido rejeitado pelos órgãos que zelam pela laicidade do Estado francês. 

Por infeliz coincidência, a edição da semana de 7 a 13 de novembro (publicada portanto antes dos atentados de Paris) da revista The Economist teve como reportagem de capa "A europeia indispensável", com a foto de Angela Merkel. Focado na posição da chanceler alemã contra o estabelecimento de um limite máximo no número de refugiados que a Alemanha pode absorver, a revista diz que apesar de enfrentar seu pior desafio político até agora Angela Merkel permanece indispensável para a Europa e confronta sua liderança com a "pequenez" -- segundo a revista -- de François Hollande e David Cameron, entre outros. Na mesma edição, a revista publica o artigo "A França dispensável", em que diz que o país tem cada vez menos influência na União Europeia e tem medo de usar a que ainda lhe resta.

Os efeitos dos atentados de Paris de 13 de novembro sobre a França, a Europa e o combate ao terrorismo continuam ainda confusos, difusos, complexos e repletos de divergências. Como pano de fundo, uma preocupação quase unânime: novos e terríveis atentados deverão ocorrer.


Um comentário:

  1. Recebido por email em 16/12/2015:

    Meu amigo,

    Suas observaçōes sao precisas
    Abraços

    Damasio

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