terça-feira, 6 de agosto de 2013

A internet e a "demência digital"

[No dia 20 do mês passado o jornal O Globo publicou uma reportagem que me pareceu extremamente importante e preocupante sobre o que o neurocientista alemão Manfred Spitzer denominou de "demência digital", relativo a problemas de atenção, memória e concentração passíveis de serem desenvolvidos  pelos chamados "nativos digitais".

Continua ainda inconclusa e confusa a discussão sobre os efeitos do uso intensivo da Internet sobre o cérebro humano e as inúmeras possíveis consequências daí decorrentes. Naturalmente, a maior dificuldade e o maior desafio residem no que ocorrerá com a geração que está nascendo e se desenvolvendo na era do "touch screen" (ou écran tátil) -- quem tem pequerrucho de 2 anos, ou até um pouco menos, na família fica simplesmente embasbacado com a desenvoltura desses pingos de gente em manobrar a telinha. Com relação a adolescentes e adultos, há na mídia mais informação -- já fiz postagens sobre isso em 01/12/2011 ("Jogos violentos podem alterar funções cerebrais"),  em 14/9/2011 ("A tecnologia da informação pode estar gerando estúpidos"), em 7/8/2011 ("O Facebook é bom ou ruim para adolescentes?"), em 7/7/2011 ("As redes sociais e as crianças: é necessário educar "digitalmente" a garotada?"), e em 29/01/2011 ("O que a Internet está fazendo com as nossas mentes?"). Vamos à citada reportagem de O Globo. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]

Jovens que aprenderam a ler no navegador da internet e a escrever enviando e-mails são o que os especialistas chamam de nativos digitais [segundo o site da Universidade Nacional de Cingapura, a expressão "nativo digital" surgiu pela primeira vez no trabalho "Digital Natives, Digital Immigrants" de Marc Prensky, publicado em 2001]. Dessa novíssima geração, pouco se sabe sobre como o cérebro dos que jogam Angry Birds no tablet, passam mensagem pelo Whatsapp e assistem a Porta dos Fundos no notebook (não raro ao mesmo tempo) vai envelhecer com tanta informação. O neurocientista alemão Manfred Spitzer, diretor médico do Departamento de Psiquiatria da Universidade de Ulm, na Alemanha, dá a sentença: nativos digitais que passam a maior parte do dia plugados são candidatos a desenvolver, desde já, problemas de atenção, memória e concentração, mal que ele batizou como “demência digital”.

Spitzer diz que médicos sul-coreanos já usam o termo para definir estes sintomas há seis anos. Mês passado, jornais britânicos replicaram uma notícia vinda da Coreia do Sul de que aumenta o número de diagnósticos de jovens com a tal demência. O país é conhecido por ser o mais conectado do mundo, onde 67% da população têm smartphones e, desses, um em cada cinco fica mais de sete horas conectado [ver, por exemplo:'Digital dementia' on the rise as young people increasingly rely on technology instead of their brain"].
No Brasil, 36% do donos de celular têm smartphones, segundo pesquisa da Nielsen de junho.

O mais recente argumento a favor do neurocientista — cujo livro com título em inglês de “Digital Dementia”, ainda sem tradução para o português — vem da revista científica "Proceedings of the National Academy of Sciences" (PNAS), uma das mais importantes do mundo. Pesquisadores da Universidade Nacional de Cingapura estudaram nativos digitais chineses de Pequim, Guanzou e Jining e concluíram que essas crianças têm mais dificuldades com leitura que a média. A explicação é que os chinezinhos digitais aprendem a escrever as primeiras palavras usando teclado, onde as palavras se constroem por meio de fonemas, como no alfabeto latino, e não pela associação direta entre grafia e significado, como no mandarim. Essa confusão atrapalha o desenvolvimento intelectual das crianças, conclui o estudo.

"Não há nada que os nativos digitais possam fazer melhor que pessoas mais velhas", afirma Spitzer, que foi professor visitante em Harvard por dois anos. "O estudo (de Cingapura) mostra que os dispositivos digitais também podem apresentar efeitos colaterais".

A milhares de quilômetros de Ulm, em Los Angeles, o neurocientista Gary Small, professor de psiquiatria da Universidade da Califórnia, concorda que a cultura digital tem seus efeitos, mas é contra o termo “demência digital”. Em artigo publicado este ano na revista “Internacional Psychogeriatric”, Small conclui que as queixas de memória pioram com a idade, mas estão mais relacionadas a hábitos saudáveis — alimentação, atividade física e cigarro — do que ao próprio envelhecimento, o que tem levado mais jovens a se queixarem de esquecimento. [É interessante ler a entrevista concedida por Gary Small à revista Veja em 12/8/2009.]

"Sabemos que o cérebro é sensível a estímulos e, se um estímulo mental em particular é extenso, os circuitos neurais que controlam a experiência vão se fortalecer e se tornar mais eficientes", explica Small depois de perguntado sobre os efeitos da internet em excesso. "Nativos digitais melhoram suas habilidades com tecnologia, mas pioram na conversa presencial, como manter um contato visual e reconhecer expressões não verbais".
A empresária Sonia Nesi, 66 anos, é do tempo em que se decorava telefone de cabeça e se fazia conta no lápis. As dúvidas cotidianas duravam muito mais que dois minutos, pois não existia Google. Ela é avó de Isadora, de 18 anos, Giovana, de 19 — que aprenderam a ler quando já existia e-mail e sala de bate-papo na internet — e Enzo, de 10 anos, que aprendeu as letras quando o mundo conhecia o primeiro modelo de tablet. Quando têm qualquer dúvida, os três usam o buscador do celular. São comunicativos, espertos, e se queixam dos colegas que mergulham no “touch screen“ no intervalo dos estudos. Sonia conta o que observa:

"As mães que vão ao meu salão levam os filhos pequenos que, antes de aprender a falar, já mexem nos tablets. Minha filha controla bastante o uso da internet pelos meus netos, senão vira um vício. Aderi às máquinas também para ter mais assunto com eles. Hoje, o computador me dá chance de não precisar memorizar muita coisa, mas sei de cor os números das cores das tintas de cabelo".
Jovens conectados. A empresária Sonia Nesi com os netos, Isadora, Enzo e Giovana. Enquanto os jovens usam o Google para tirar qualquer dúvida, a avó é conectada, mas sabe de cor números da tintas que usa em seu salão - (Foto: Fabio Seixo /Fonte: O Globo). 
Nosso cérebro, ou dos nossos ancestrais de cinco mil anos atrás, quando nossa espécie inventou a escrita, são rigorosamente iguais. Mas a capacidade moldar os circuitos neurais de acordo com a necessidade é o que se chama de neuroplasticidade. O chefe do Laboratório de Neuroplasticidade do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ, Roberto Lent, diz desconhecer o termo criado pelo colega alemão, e explica que toda atividade mental, seja usar internet ou tocar instrumentos, tem seus impactos:

"Nosso cérebro é finito. Vejo o uso de dispositivos móveis como benéfico, mas, como tudo em excesso, faz mal. A neuroplasticidade pode ocorrer tanto para o bem quanto para o mal. Músicos que praticam à exaustão podem desenvolver distonia focal, doença que paralisa o músculo usado para tocar o instrumento e tem origem exclusivamente cerebral".

Sintomas

Perdas cognitivas

Em jovens, redução da memória, falta de atenção, diminuição de concentração, sonolência e depressão por causa do excesso de tempo conectado estão entre os sintomas da recém-descrita “demência digital”.

Olho no olho

De acordo com Gary Small, da Universidade da Califórnia, nativos digitais tendem a ter dificuldade em manter contato visual em conversas.

O neurocientista alemão Manfred Spitzer - (Foto: Reprodução da Internet/Fonte: O Globo).

Entrevista de O Globo com o neurocientista alemão Manfred Spitzer, publicada em 20/7:

OGLOBO: É possível dizer que o uso crescente de dispositivos de comunicação digital está mudando, ou poderá mudar a anatomia cerebral das próximas gerações?

MANFRED SPITZER: Sim. Como o cérebro muda constantemente com seu uso (o termo técnico é neuroplasticidade) não há como a anatomia não mudar.

Quais habilidades dessa geração conectada podem melhorar e quais podem piorar?

MS: Há várias afirmativas de que as habilidades melhoram, mas nenhuma se apoia em evidências. Nativos digitais não são excelentes em pesquisas na internet, por exemplo. Em vez disso, clicam aleatoriamente e interrompem as buscas antes de terminá-las.

Os sintomas da “demência digital” são irreversíveis?
 
MS: O problema com o uso da mídia digital por crianças e adolescentes é que o desenvolvimento cerebral fica desequilibrado, o que leva a um desenvolvimento social e intelectual que poderia ser muito melhor. Na terceira idade, quando as células cerebrais morrem, por diversos motivos, os problemas que se desenvolvem dependem da “reserva cognitiva” que se construiu quando jovem. O estudo de Cingapura mostra que quando as crianças chinesas são ensinadas a usar computador, há o risco de que metade delas não seja mais capaz de ler. Se isso não mostra como pode ser perigoso, então não sei quando alguém terá ideia do que é.

[Os interessados podem ler também "Does the internet make you dumb? Top German neuroscientist says yes -- and forever" ("A internet o torna estúpido? Neurocientista de ponta alemão diz que sim -- e para sempre", em tradução direta.]
 


Um comentário:

  1. Apaixonante assunto e estonteante abordagem do blog em divulgar o assunto em alto nível. Permitam-me botar a colher!Em séria reportagem apresentada recentemente no canal francês (TV5-Monde), foi feita alusão ao “autismo” e essa revolução digital. Explico: algumas formas de autismo se devem ao fato de eles (autistas) não serem capazes de processar as muitas informações que recebem, já que são muito sensíveis ao muito externo. Mas como ninguém é capaz de ensiná-los a processar as tais volumosas informações, acabam caindo no, digamos, “autismo”. É isso! Essa circulação idiota de informações idiotas (olhe as redes sociais, salvando as nobres causas) vai criar uma geração incapaz de processar informações e vai, no seu lugar, criar “moleques de recado”. Bem... claro é que estou ficando demente, e isso desde o ano 2000, confesso.

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