segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Uma visão russa do caso Snowden

[O artigo traduzido abaixo foi publicado na versão digital em inglês do principal jornal russo, o Pravda ("Verdade", em russo), em 26/7. É preciso observar que o texto foi escrito antes da Rússia conceder asilo a Edward Snowden, quando portanto ele ainda estava na área de trânsito do aeroporto internacional de Moscou. É interessante e importante conhecer-se uma outra visão de um mesmo problema. A noção e a consciência de que os EUA espionam todo mundo - governos, empresas e cidadãos -- não são de hoje, mas a atuação de Snowden deu-lhes nova dimensão e projeção.  O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]

Os EUA violam flagrantemente leis domésticas e internacionais ao responsabilizar Putin


Na primeira chance real de que a Rússia poderia oferecer asilo a EdwardSnowden, um ex-empregado contratado da Inteligência dos EUA, os Estados Unidos aumentaram a pressão sobre a Rússia exigindo esclarecimento sobre o status de Snowden. O Pravda.Ru solicitou a Yuri Ursov, ex-chefe do serviço de imprensa do Conselho de Segurança da Rússia, seus comentários sobre os eventos.

"Examinei os dez tópicos de notícias principais na versão americana do Google. Está tudo lá: uma menção à morte do rei da heroína em Mianmar, o assassinato de um jornalista no Daguestão, um desastre aéreo no Alasca, sequestro no estado de Ohio. Não havia uma palavra sobre Edward Snowden -- um ex-empregado da CIA americana, que está no momento na área de trânsito do aeroporto Sheremetyevo de Moscou. Pode-se presumir que a mídia dependente do governo americano foi instruída a não abordar esse tema, de modo a não atrair atenção para as violações flagrantes da Constituição americana e de vários tratados internacionais assinados pelos EUA.

A mídia liberal russa cobre sem dúvida esse assunto [minha primeira reação, como certamente a da maioria, foi a de reagir contra ou no mínimo estranhar esse adjetivo "liberal", mas confesso que frequentemente me espanto com a abertura com que inúmeros temas são abordados na versão inglesa do Pravda que, obviamente, não deixa de ter também clichês típicos de um sistema centralizador duro como o russo]. Ela o faz sob um ângulo muito peculiar. Por exemplo, a rádio "Eco de Moscou" iniciou uma discussão com sua audiência sobre se Snowden era um traidor. Este é um tema sensível e, naturalmente, de acordo com aquela rádio o fato de que Snowden é um traidor está predeterminado. Mas, por que ele é um traidor? Seus atos afetaram a defesa dos EUA? Não, não afetaram.

Seus atos afetaram pessoas? Alguém foi preso ou executado? Não! Então, qual é a traição de Snowden? Na realidade, ele disse ao mundo que os EUA faziam vigilância [leia-se "espionagem"], escutando pessoas que trabalham na Internet e falam ao telefone. Isso significa que ele revelou que os EUA estavam violando um dos direitos fundamentais da democracia -- o direito à privacidade [aqui é difícil ficar apático a essa ironia de "direito à privacidade" vinda de um ex-membro do Conselho de Segurança russo, embora ele sempre possa alegar que está falando em tese, ao referir-se a uma democracia ...].

Em suas transmissões, a rádio Eco de Moscou acusa as autoridades da União Soviética e da Rússia, de Stalin a Putin, de fazer vigilância [leia-se "espionagem"]. Quando a vigilância é realizada pelas agências de inteligência americanas, elas desvirtuam as conversas substituindo notícias reais por discussões secundárias. Elas provocam um resultado predeterminado, dando eco à interpretação americana de que Snowden é um traidor. [Se a rádio russa citada faz, como dito, aberta e impunemente as denúncias citadas, esse é mais um paradoxo do regime russo.]

Essa imagem está sendo incutida na consciência coletiva. O Kommersant ["Empresário", um diário russo voltado à política e aos negócios] publicou a informação de que o presidente americano Obama se recusa a vir a Moscou para uma reunião do G8 se Snowden não for extraditado para os EUA. Houve um debate de tal maneira vigoroso sobre isso que o embaixador americano, McFaul, teve que fazer um desmentido dizendo que, claro, Obama virá à reunião. [No final, a notícia do Kommersant acabou por confirmar-se já que, efetivamente, Obama cancelou sua visita oficial a Moscou em setembro após a concessão de asilo político temporário a Snowden pela Rússia.]

Isso é indicativo da tendência à qual a mídia liberal se filia. Parece que alguém no Estado-Maior Americano deu uma ordem para distorcer o assunto, substituindo o conteúdo básico e essencial por detalhes secundários, no caso relegando a segundo plano o fato de que os EUA violaram não apenas suas próprias leis, mas também as leis da comunidade internacional.

Isso é confirmado pelas afirmações dos famosos senadores McCain e Schumer. Em resumo, a essência e o patético de suas afirmações resumem-se em culpar o presidente Putin por causar danos aos EUA por toda a parte, de Sheremetyevo até o Irã e a Síria. O presidente Putin deve ser responsabilizado pelo fato de os EUA terem violado a legislação internacional e suas próprias leis. Isso nem mesmo é lógica dupla ou dúbia, é uma completa falta de lógica -- embora, como eles dizem, se falta lógica a questão principal é o poder.

Obviamente, esse é o princípio básico da política atual dos EUA na situação com Snowden.  Não foi fácil para Snowden, o jovem encontrou forças para desafiar  o país mais poderoso do mundo e tem medo da morte, pois foi informado de que pode ser morto. Isto parece ser verdade.

O que você pode dizer àqueles que acreditam que os atos de Snowden são uma traição? Traição é quando uma pessoa pratica atos que causam danos a seu país, viola o juramento [de cidadão americano, no caso] e o dever, quando seus atos geram perdas financeiras significativas. O que fez Snowden? Ele disse que os EUA, através da CIA, violaram suas próprias leis, em particular a 4ª e a 5ª emendas da Constituição ao vigiarem [= espionarem] os membros da comunidade online, grampeando telefones e gravando conversas [a 4ª Emenda protege o cidadão contra buscas e apreensões arbitrárias, e a 5ª Emenda diz que ninguém será chamado a responder por um crime capital, ou infamante, a menos que sob denúncia ou indiciamento oriundo de um grande júri, excepto em casos que se apresentem nas forças terrestres e navais, ou na milícia, quando chamadas a serviço ativo em tempo de guerra ou perigo público, que ninguém será obrigado a testemunhar contra si mesmo, etc]. Pode-se chamar de traição a informação sobre o crime iminente ou cometido? Não estou convencido de que isso é uma traição.

Falar sobre os crimes dos EUA ou da Alemanha nazista pode ser considerado traição? Snowden agiu com base em duas razões legítimas -- a primeira em observância à Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1947, que proíbe a interferência na vida privada das pessoas [é o artigo XII desse documento: "ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques"], e a segunda em obediência à legislação americana que ameaça de processo penal o cidadão que não informar sobre a deliberação de um crime ou um crime cometido. Snowden reportou o crime, e chamou de criminosos as autoridades e os serviços de inteligência. Os acusados, naturalmente, o acusaram imediatamente de violação de juramento e espionagem. 

Snowden é um contratado, não fez nenhum juramento [aqui o autor força a barra em seu raciocínio -- alguém contratado para trabalhar para a CIA, NSA ou algo do gênero, e mesmo em áreas que não a de inteligência, obviamente se obriga a respeitar e manter a confidencialidade de seu trabalho, certamente até por escrito em seu contrato de trabalho, o que tem a mesma força de um "juramento"]. Se você acredita que ele é um espião, cite o país para o qual estava trabalhando. Sua verdade é tão óbvia que os EUA não conseguem negá-la. Não se trata do destino pessoal de Snowden; os esforços dos EUA são inúteis, já que o processo iniciado por ele não pode ser sustado. A perda de confiança na União Europeia, o congelamento de planos geopolíticos de longo prazo para criar duas zonas de comércio -- no Atlântico e no Pacífico -- visando a limitar os crescentes poder e influência dos BRICs em geral e da China em particular, tais processos independem do asilo político de Snowden. 

Mas, a máquina de guerra do estado americano é vingativa e incapaz de transigir. Sua tendência -- destruir a qualquer custo e sem atentar para leis -- é muito difícil de ser redirecionada para um rumo mais construtivo. Obviamente, a situação é bastante singular, sem precedentes. Nunca aconteceu na história mundial que um empregado da área de inteligência vivesse no setor de trânsito de um aeroporto. A última coisa revelada pelo guardador de segredos é também sensacional: a informação de que os EUA e Israel lançaram um supervírus, uma super-arma que destruiu os reatores nucleares do Irã [esta informação não é novidade alguma, apenas sofreu uma boa requentada por conta de Snowden].  Consequentemente, há um tipo novo de guerra, uma guerra cibernética sem armas de fogo mas comparável em termos de seus efeitos aos golpes de armas guiadas com precisão.

A situação de Snowden é também um teste para o governo russo, para verificar se é independente para tomar decisões políticas. O presidente Putin está passando no teste com dignidade, apesar de uma pressão intensa por parte de grupos pró-americanos no país -- vamos chamá-la de uma unidade Chubais-Friedman -- evidenciado por sua ressalva de que a Rússia dará asilo a Snowden se ele parar de praticar atos prejudiciais aos EUA.  Mas, todo mundo sabe que isso é um disfarce, o presidente mantém-se firme em sua posição e isso é bom de se ver. [Chamar de "temporário" o asilo dado a Snowden me pareceu uma jogada de mestre dos russos, enxadristas de alta estirpe. Quanto à "unidade Chubais-Friedman" citada pelo autor, quero crer que se refere a Anatoly Chubais, um destacado político e empresário russo responsável pela política de privatizações na Rússia e membro do Conselho Consultor do banco JP Morgan Chase desde 2008, e a Thomas Friedman, famoso jornalista e autor americano (colunista do The New York Times) ferrenho defensor da globalização. Friedman afirma que os países, individualmente, têm que sacrificar algo de sua oberania econômica em benefício de instituições globais (tais como mercados de capitais e corporações multinacionais), uma situação que denominou de "camisa de força de ouro".]

Nenhum comentário:

Postar um comentário