[O texto traduzido abaixo é da autoria de David Böcking e foi publicado no dia 24/4 no site Spiegel Online.
O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade. A crise do euro e as mudanças climáticas têm algo grave em comum: muito bla-bla-bla, nenhuma solução à vista, e muito sofrimento por onde passam.]
Toda instituição tem seus mitos fundamentais. São suposições ou teses aceitas que, no melhor dos casos, são apenas parcialmente verdadeiras mas que ainda assim são vitais para que o trabalho do dia a dia seja executado. Entre os mitos fundamentais da União Europeia (UE) existe o de que seus funcionários, embora possam ser procedentes de diferentes países, deixam de lado suas identidades nacionais para trabalhar em conjunto pela unidade europeia.
Mas, repetidas vezes são levantadas dúvidas sobre essa suposição. Por exemplo, quando Mario Draghi tornou-se presidente do Banco Central Europeu e muitos europeus do norte insinuaram que, com certeza, poder-se-ia prever uma megainflação. Como Draghi é italiano, e a Itália é um país em que aumentos percentuais de preços de dois dígitos não são incomuns, ele teve que empenhar-se com mais esforço para demonstrar sua confiabilidade.
Surge então o presidente da Comissão Europeia (CE), José Manuel Barroso, que tem tentado atuar de maneira que não seja visto basicamente como um cidadão português. Como líder da Comissão espera-se que ele, mais do que qualquer outra pessoa, personifique o consenso transnacional. Desde segunda-feira (22/4), entretanto, parece possível que mesmo Barroso nem sempre deixa sua identidade nacional de lado.
[É importante ter em mente que, juntamente com o FMI e o Banco Central Europeu, a CE compõe a famosa troika responsável pelas duras medidas de austeridades que vêm sendo aplicadas à zona do euro e castigando severamente países como Portugal, berço de Barroso.]
Numa reunião de reflexão política, em Bruxelas, Barroso
cautelosamente criticou as medidas de austeridade que a UE impôs até agora sobre os países membros, majoritariamente meridionais, que enfrentam uma crise econômica na zona do euro. Ainda que a política possa ser "fundamentalmente correta", disse ele, ela "chegou ao seu limite". No curso prazo, acrescentou, faz-se necessária "uma ênfase mais forte no crescimento".
Foi grande a comoção criada por suas palavras, particularmente na imprensa de língua inglesa. "Era de austeridade já cumpriu sua trajetória, diz a UE", anunciava uma manchete da agência Reuters. No Wall Street Journal a manchete foi "Limitem a austeridade, diz funcionário da UE". A reação irritada da Alemanha não demorou muito. "Crescimento não pode ser comprado com novas dívidas", alertou o ministro das Relações Exteriores Guido Westerwelle. "O presidente da Comissão está questionando o resgate do euro", disse Herbert Reul que, como líder dos conservadores alemães no Parlamento Europeu, pertence até à mesma tendência partidária que Barroso.
Talvez a perturbação tenha sido tão grande por ser Barroso uma das últimas pessoas de quem se esperasse esse tipo de crítica. Ele é considerado enfadonho, e não tem a reputação de tomar medidas claras na crise do euro -- muito menos contra a chanceler alemã Angela Merkel, a quem deve muito por sua controvertida reeleição.
Críticas crescentes à austeridade
Mas, será que Barrosso iniciou realmente uma mudança de rumo na UE? Isso não seria de todo surpreendente, já que os sentimentos antiausteridade vêm crescendo em muitos países que estão em crise, nos quais a recessão tem mostrado poucos sinais de se esgotar. Vários dias atrás, veio a público que um estudo frequentemente citado pelos defensores da austeridade
contém erros de cálculo significativos. [
Ver postagem anterior sobre isso.]
Mas, na CE ninguém quer ouvir falar em momento decisivo de mudança. Em Bruxelas diz-se que Barroso certamente não estava falando de por um fim à austeridade ou de se assumirem novas dívidas. Ele estava simplesmente sugerindo que deveria haver uma ênfase maior no crescimento, algo que deve resultar de reformas estruturais e do uso focado dos subsídios da UE, dizem os mesmos funcionários de Bruxelas.
Sugestões dessa natureza, entretanto, não são novas. Desde o início, reformas fizeram parte dos pacotes de resgate. Já em 2011, um grupo de especialistas foi incumbido da tarefa de melhorar a eficiência dos fundos estruturais da UE na Grécia. O fato de Chipre estar agora programada para receber os pagamentos iniciais de um fundo estrutural da UE é um detalhe a mais no contexto do drama maior do resgate da UE.
Barroso, entretanto, não foi de todo mal compreendido. A UE tem, por um tempo, negociado com vários países sobre se deveriam ter mais tempo para atingir suas metas de dívida. Isso inclui não apenas Grécia, Portugal e Espanha, mas também a França.
"O Tratado não significa nada"
No final das contas, entretanto, a Comissão não terá outra opção senão ceder. Cifras novas reveladas na segunda-feira, quase no mesmo instante em que Barroso fez seus comentários, indicam que aumentou ainda mais a nova tomada de empréstimos por parte dos países em crise. Na Grécia, o valor para o ano passado foi de 10%, significativamente mais alto do que os 6,6% esperados pela CE. E a situação não se apresenta também tão cor-de-rosa na terra de Barroso. Embora há muito considerado um reformador modelo entre os países com crise de dívida na eurozona, Portugal teve seu deficit orçamentário aumentado em 6,4% em vez dos 5% esperados pela UE.
No debate em Bruxelas, é possível que a pergunta levantada pelo moderador do painel tenha momentaneamente ferido o orgulho de Barroso, como português e um europeu do sul
[numa licença geográfica, o autor do texto juntou o oeste da Europa com o seu sul ... ou então, revela-se o preconceito de considerar "sul" tudo que estiver abaixo da Alemanha e, talvez, da França], e que ele, em resposta, tenha oferecido a seus compatriotas a perspectiva de relaxar as medidas de austeridade.
De acordo com uma transcrição da discussão
[em Bruxelas], prontamente liberada pela CE em resposta ao furor da mídia, a moderadora do painel, Matina Stevis, ridicularizou a Comissão por não agir de maneira suficiente. Ela acusou Barroso e seus parceiros da CE de limitar sua atuação na crise a apenas garantir que os países nela mergulhados obedecessem os tratados europeus. "Para um ateniense, não significa nada que o Sr. seja um guardião do Tratado", disse Stevis. "O Tratado não significa coisa alguma. O Sr. tem que ser o guardião daquele cidadão, de seu compatriota em Lisboa". A moderadora do painel deixou claro que seus comentários se dirigiam a Barroso. "Este é um momento existencial para o Sr.", disse ela.
A transcrição informa que, então, Barroso explicou em detalhes porque os contratos são na realidade importantes. Sua violação, lembrou ele à audiência, foi o que originalmente gerou a crise. Foi depois desse ponto que ele fez as afirmações que agora estão sendo amplamente interpretadas como sinais de que Barroso está se afastando do caminho de austeridade da UE. No debate de segunda-feira, é provável que não apenas a nacionalidade de Barroso tivesse tido importância na discussão, mas também a de Stevis, uma grega que é jornalista da Dow Jones e do Wall Street Journal. Depois que um conhecido blogueiro grego começou a tuitar sobre seu pleito a favor dos gregos, a jornalista Stevis orgulhosamente tuitou de volta: "Ei, essa sou eu!".
Dada a raridade com que Barroso faz um estardalhaço nas manchetes hoje em dia, poder-se-ia deixar de culpá-lo por expressar como fez esse tipo de sentimento. No fim, entretanto, Barroso recuou rapidamente de sua cautelosa pressão contra a austeridade. Um porta-voz da Comissão disse na terça-feira que textos sugerindo um fim para a ação pró-austeridade na Europa eram uma interpretação injusta e parcial das observações de Barroso.
Barroso provocou ondas de reação na segunda-feira ao insinuar que a austeridade havia "chegado aos seus limites" - (Foto: AFP).