Albert Schnez, em uma foto sem data. Ele desempenhou um papel central no plano para a criação de um exército secreto. Schnez nasceu em 1911 e serviu como coronel na Segunda Grande Guerra, antes de ascender nos escalões da Bundeswehr (Formas Armadas Federais), fundada em 1955 - (Foto: DPA/Fonte: Spigel Online International).
A informação foi revelada por uma Comissão Histórica Independente contratada pelos Serviço Federal de Inteligência alemão, o BND [Bundesnachrichtendienst = Serviço Federal de Informações, em tradução direta], para determinar a influência de ex-nazistas sobre ele nos primeiros dias de sua criação. A Oraganização Gehlen (assim denominada em homenagem ao major-general Reinhard Gehlen, mostrado acima), a antecessora do BND, mantinha contatos com Albert Schnez, o homem por trás do exército [secreto]. - (Foto: US Army Signal Corps PD/Fonte: Spiegel Online).
Oficiais das Forças Armadas e da SS criaram o novo exército em 1949. Na foto, soldados alemães na Rússia em 1941. Hoje não se sabe exatamente quando o grupo secreto pós-guerra foi dissolvido, mas seu destino foi selado com a criação das forças armadas alemãs, a Bundeswehr, em 1955 - (Foto: Corbis/Fonte: Spiegel Online International).
Por quase seis décadas, o dossiê de 321 páginas permaneceu sem ser notado nos arquivos do BND, o serviço de inteligência alemão -- mas, agora seu conteúdo revelou um novo capítulo da história da Alemanha no pós-guerra que é tão impressionante quanto misterioso.
Os antes secretos documentos revelam a existência de uma coalizão de cerca de 2.000 ex-oficiais -- veteranos das Forças Armadas e da SS nazistas -- que decidiram em 1949 formar um exército na Alemanha do pós-guerra. Fizeram seus preparativos sem um mandato do governo alemão, sem o conhecimento do parlamento e, os documentos mostram, enganando as forças de ocupação aliadas.
O objetivo dos oficiais da reserva: defender a nascente Alemanha Ocidental contra agressões nos estágios iniciais da Guerra Fria e, no fronte doméstico, se organizar cointra os comunistas em caso de uma guerra civil. Coletaram informações sobre políticos da esquerda, como Fritz Erler, da Social Democracia (SPD), uma peça chave na reforma do partido após a Segunda Grande Guerra, e espionou estudantes como Joachim Peckert, que depois se tornou um funcionário sênior na embaixada da Alemanha Ocidental em Moscou nos anos 1970.
A descoberta do dossiê deu-se por uma coincidência. O historiador Agilolf Kesselring encontrou os documentos -- que pertenciam à Organização Gehlen, a predecessora do atual serviço de inteligência internacional -- enquanto trabalhava para uma Comissão Histórica Independente contratada pelo BND para investigar o início de sua história. Comissões semelhantes haviam sido contratadas por várias autoridades alemãs em anos recentes, incluindo os ministérios da Fazenda e das Relações Exteriores, para criar um registro acurado de legados antes encobertos.
Kesselring descobriu os documentos, que haviam recebido o estranho nome de "Seguros", quando tentava determinar o número de pessoas que trabalhavam para o BND. Em vez de papéis ou apólices, Kesselring deu-se com o que agora pode ser considerado a descoberta mais significativa da Comissão Histórica Independente. O trabalho que escreveu com base nisso foi divulgado esta semana.
Facilidade em minar a democracia
O dossiê é incompleto, e assim precisa ser considerado com certa reserva. Mesmo assim, seu conteúdo mostra a facilidade com que os padrões democráticos e constitucionais podiam ser solapados nos primeiros anos de existência da Alemanha Ocidental. De acordo com o dossiê, o chanceler Konrad Adenauer não soube da existência do grupo paramilitar até 1951, mas então, como se mostra evidente, não decidiu eliminá-lo.
No caso de uma guerra, dizem os documentos, o exército secreto poderia recrutar 40.000 combatentes. O envolvimento de figuras de sua liderança nas futuras forças armadas alemãs, a Bundeswehr, é uma indicação exata de quão séria parece ter sido a iniciativa.
Entre seus atores mais importantes estava Albert Schnez. Ele nasceu em 1911, e serviu como coronel na Segunda Grande Guerra antes de galgar postos nos escalões da Bundeswehr, que foi criada em 1955. No final dos anos 1950, Schnez fazia parte do staff do então ministro da Defesa Franz Joseph Strauss (do CDU) e depois serviu como chefe do exército, sob as ordens do chanceler Willy Brandt e do ministro da Defesa Helmut Schmidt (ambos do SPD).
Declarações de Schnez citadas nos documentos sugerem que o projeto de montar um exército clandestino tinha o apoio também de Hans Speidel -- que se tornaria o comandante supremo da OTAN no exército aliado na Europa Central em 1957 -- e de Adolf Heusinger, o primeiro fiscal geral da Bundeswehr.
Kesselring, o historiador, tem uma conexão especial com a história militar alemã: seu avô Albert foi marechal de campo e comandante supremo do Terceiro Reich no sul, com Schnez como seu subordinado e "general de transportes" na Itália. Ambos tentaram evitar a rendição parcial da Alemanha na Itália.
Em seu relatório, Kesselring omitiu Schnez tranquilamente. Ele não menciona o envolvimento de Schnez com os ativistas da direita, e descreve a espinoagem deste sobre os ativistas de esquerda como "controles de segurança". Quando questionado sobre isso, o historiador explicou que tratará desses aspectos do dossiê num relatório abrangente no ano que vem. Mas, o BND liberou recentemente o dossiê com o arquivo "Seguros", permitindo que se obtenha uma visão independente da questão.
O projeto do exército secreto teve início no período pós-guerra na Suábia, a região à volta de Stuttgart, onde Schnez, então com 40 anos, comercializava madeira, tecidos e itens domésticos e, paralelamente, organizava eventos sociais para os veteranos da 25ª Divisão de Infantaria, na qual havia servido. Eles se ajudavam mutuamente, sustentavam as viúvas e órfãos dos colegas, e conversavam sobre os velhos e novos tempos.
Medo de um ataque vindo do Leste
Mas, suas discussões sempre voltavam ao mesmo ponto: o que deveria ser feito caso os russo e seus aliados do leste invadissem o país? Na época, a Alemanha Ocidental não tinha ainda um exército e os EUA haviam removido muitos de seus militares da Europa em 1945. De início, o grupo de Schnez cogitou deixar-se derrotar e então liderar um esquema de guerrilha por trás das linhas, antes de se reacomodar em algum lugar fora da Alemanha. No caso de um ataque de surpresa vindo do leste, escreveu depois um empregado da Organização Gehlen, Schnez queria fazer uma retirada com sua tropa e levá-la com segurança para fora da Alemanha. Eles travariam a partir do exterior a batalha para libertar a Alemanha.
Para preparar uma resposta à ameaça potencial, Schnez -- filho de um funcionário do governo da Suábia -- buscou criar um exército. Mesmo violando a legislação aliada -- organizações militares ou "similares" estavam banidas, e quem violasse isso corria o risco de ser condenado à prisão perpétua -- a ideia tornou-se rapidamente muito popular. O exército começou a tomar forma no máximo em 1950. Schnez coletou doações de empresários e de ex-oficiais que comungavam das mesmas ideias, contatou grupos de veteranos de outras divisões, perguntou a empresas de transporte que veículos poderiam fornecer no pior dos cenários e trabalhou em um plano de emergência.
Anton Grasser, um ex-general de infantaria que na época era empregado da empresa de Schnez, ficou responsável pelo armamento. Em 1950, começou sua carreira no Ministério do Interior em Bonn, onde se tornou fiscal geral e supervisionou a coordenação das Forças Táticas da Polícia nos estados alemães para o caso de uma guerra. Ele queria usar seus ativos para equipar a tropa no caso de uma emergência. Não há indicação de que o então ministro do Interior Robert Lehr tivesse sido informado desses planos.
Schnez queria criar uma organização de unidades compostas de ex-oficiais, idealmente staffs inteiros de divisões de elite da Wehrmacht que pudessem ser colocados rapidamente em posição de combate no caso de um ataque. De acordo com as listas existentes nos documentos, todos os recrutados/recrutáveis estavam empregados, o que incluía homens de negócios, representantes comerciais, um comerciante de carvão, um advogado criminalista, um procurador, um instrutor técnico e até mesmo um prefeito. Presumivelmente, eram todos anticomunistas e, em alguns casos, motivados por um espírito de aventura. Por exemplo, os documentos revelam que o Tenente-General da reserva Hermann Hölter "não estava satisfeito trabalhando em um escritório".
A maior parte dos membros da reserva secreta vivia no sul da Alemanha. Um resumo da documentação revela que Rudolf von Bünau, um general de infantaria da reserva, liderava um grupo de oficiais seniores nos arredores de Stuttgart. Havia subunidades adicionais em Ulm (sob o comando do Tenente-General da reserva Hans Wagner), em Helibronn (Tenente-General da reserva Alfred Reinhardt), em Freiburg (Major-General da reserva Wilhelm Nagel), assim como em muitas outras cidades.
A lista de Schnez não foi passada adiante, mas os documentos informam que ele dizia que ela incluía 10.000 nomes, o bastante para formar o núcleo de três divisões. Por razões de confidencialidade ele formalizou apenas 2.000 oficiais. Ainda assim, Scnez não tinha dúvidas de que os outros se juntariam a eles. Não parecia haver nenhuma escassez de candidatos para as unidades -- afinal, não faltavam alemães com experiência de guerra. Ficou indeterminado onde esses militares seriam reunidos em caso de emergência. Schnez negociou com localidades suiças, mas suas reações foram "muito restritivas"; os documentos informam que ele depois planejou um possível deslocamento para a Espanha para usá-la como uma base, a partir da qual lutaria ao lado dos americanos.
Contemporâneos descrevem Schnez como um organizador cheio de energia, mas também autoconfiante e arredio. Ele manteve contato com a Liga da Juventude Alemã e sua organização especializada, o Serviço Técnico, que estavam se preparando para um movimento de guerrilha contra os soviéticos. Os dois grupos, financiados secretamente pelos EUA, tinham como membros ex-oficiais nazistas e foram ambos banidos pelo governo federal da Alemanha Ocidental em 1953 como organizações de extrema-direita. Ao que parece, Schnez não tinha nenhuma objeção de qualquer tipo para associar-se com ex-nazistas.
Schnez mantinha também um dispositivo de inteligência que avaliava candidatos para a "Companhia de Seguros", nome que dava ao projeto, e verificava se tinham características suspeitas. Um criminoso chamado K foi descrito como "inteligente, jovem e meio-judeu".
Documentos americanos acessados pela Spiegel indicam que Schnez negociou com Otto Skorzeny, ex-tenente-coronel da SS. O oficial da SS tornou-se um herói nazista durante a Segunda Grande Guerra depois que organizou com êxito uma missão para libertar o ditador italiano deposto Benito Mussolini, que havia sido preso pelo rei da Itália. Skorzeny tinha planos semelhantes aos de Schnez. Em fevereiro de 1951, ambos concordaram em "cooperar imediatamente na região da Suábia" -- até hoje se desconhece o que precisamente resultou desse acordo.
Em sua busca por financiamento para uma operação de tempo integral, Schnez solicitou ajuda ao serviço secreto da Alemanha Ocidental durante o verão de 1951. Em uma reunião em 24/7/1951, ele ofereceu os serviços de seu exército secreto a Gehlen, o chefe dos serviços de inteligência, para "uso militar" ou "simplesmente como uma força potencial", fosse para um governo alemão no exílio ou para os aliados ocidentais.
Uma anotação nos papéis da Organização Gehlen afirma que "houve de longa data relações de natureza amistosa" entre Schnez e Reinhard Gehlen. Os documentos indicam também que o serviço secreto tomou conhecimento pela primeira da existência do exército clandestino na primavera de 1951. A Organização Gehlen classificava Schnez como uma "conexão especial", com o estranho nome de código de "Schnepfe", um termo insultuoso para as mulheres [pode ser traduzido também como "vaca"ou "prostituta"].
Adenauer evitou envolver-se?
É provável que o entusiasmo de Gehlen pela oferta de Schnez tivesse sido maior se ela tivesse surgido um ano antes, quando a Guerra da Coreia estava sendo deflagrada. Naquela época, a então capital da Alemanha Ocidental, Bonn, e Washington haviam cogitado a ideia de "agrupar membros das ex-tropas de elite alemãs no caso de uma catástrofe, dando-lhes armas e juntando-as às tropas de defesa aliadas".
Em um ano, a situação alterou-se um pouco, e Adenauer se afastou daquela ideia. Em vez disso, pressionou para que a Alemanha Ocidental se integrasse mais profundamente com o Ocidente e que fosse criada a Bundeswehr [as forças armadas alemãs]. O grupo ilegal de Schnez era um risco potencial para essa política -- se sua existência se tornasse pública poderia teria gerado um escândalo internacional. Ainda assim, Adenauer decidiu não agir contra a organização de Schnez, o que levanta pelo menos uma questão: estaria ele evitando entrar em conflito com veteranos das Forças Armadas e da SS?
Havia apreensão no âmbito da Organização Gehlen, particularmente com relação a Skorzeny. De acordo com outro documento do BND a que a Spiegel teve acesso, um chefe de divisão levantou a questão sobre se seria possível para a organização adotar uma posição agressiva contra Skorzeny. A direção da Organização Gehlen sugeriu que se consultasse "a SS", acrecentando que "a SS é um fator a ser levado em conta, e devemos conhecer em detalhe sua opinião antes de tomar uma decisão". Aparentemente, redes de nazistas veteranos e ex-nazistas exerciam ainda uma influência considerável durante os anos 1950.
Em 1951 ficou também claro que se passariam anos antes que a Bundeswehr pudesse ser estabelecida. Pela visão de Adenauer, isso significava para aquele então que se deveria garantir a lealdade de Schnez e seus camaradas na eventualidade de ocorrência de um cenário pior. Provavelmente, foi por causa disso que Gehlen foi encarregado pela Chancelaria para "cuidar do grupo e monitorá-lo". Parece que Adenauer, na época, deu ciência de seu plano aos aliados e à sua oposição política. Os documentos parecem indicar também que Carlo Schmid, na época um membro do comitê executivo nacional do SPD, estava "no circuito".
Pouco se sabe sobre a dissolução do exército
A partir daquele momento, o staff de Gehlen teve contatos frequentes com Schnez. Gehlen e Schnez firmaram também um acordo para compartilhar informações de inteligência decorrentes de atos de espionagem. Schnez se gabava de ter um esquema de inteligência "particularmente bem organizado".
A partir dali, a Organização Gehlen tornou-se destinatária de listas de alerta que continham os nomes de soldados alemães que supostamente se comportaram de maneira "indigna" enquanto prisioneiros de guerra dos soviéticos, insinuando-se que haviam desertado para apoiar a União Soviética. Em outras ocasiões, havia registros de "pessoas suspeitas de serem comunistas" na região de Stuttgart.
Mas, Schnez nunca recebeu o dinheiro pelo qual esperava. Gehlen permitiu-lhe apenas receber pequenas somas, que se esgotaram no outono de 1953. Dois anosmais tarde, a Bindeswehr incorporou seus 100 primeiros voluntários. Com o rearmamento da Alemanha Ocidental, o exército de Schnez tornou-se redundante.
Hoje, não se sabe exatamente quando o exército secreto foi dissolvido pois não se fez nenhum estardalhaço a respeito na época. Schnez morreu em 2007, sem jamais se manifestar publicamente sobre esses acontecimentos. Seus registros sobre a "Companhia de Seguros" desapareceram. O que hoje se sabe se origina em grande parte de documentos relacionados com a Organização Gehlen que foram direcionados para os arquivos classificados de seu sucessor, o BND. Parece que foram deliberadamente arquivados sob o nome enganoso de "seguros", na esperança de que jamais alguém tivesse porque se interessar por eles.