Se você vive em Los Angeles, Orlando, Cincinnati, Chicago, Milwaukee, Raleigh, ou em quaisquer outras cidades americanas, muito provavelmente leu uma notícia ou anúncio mais ou menos assim: "Imagine-se entrando em um trem em [sua cidade] e saindo dele em [outra cidade importante] apenas duas horas e meia mais tarde. Este sonho pode tornar-se realidade nos próximos [número irrealista] anos, graças aos planos para uma rede nacional de trens de alta velocidade".
Bem, pode parar de pensar nisso agora. Ferrovias de alta velocidade não acontecerão nos EUA. Não em qualquer época próxima. Provavelmente, nunca. As perguntas agora são: 1) o que as matou, e 2) deveríamos chorar seu falecimento?
Houve uma pequena explosão de entusiasmo em torno do trem-bala em janeiro de 2010, quando o presidente Obama anunciou 8 bilhões de dólares de verba federal como estímulo ao início da construção "do primeiro programa de âmbito nacional dos EUA para um serviço ferroviário interurbano de alta velocidade". Desde então, entretanto, as chances de êxito do projeto têm tomado uma direção: ladeira abaixo. Primeiro, conservadores do Tea Party na Flórida e ricos moradores dos subúrbios de Bay Area começaram a questionar os planos de seus Estados [para isso]. Depois, justo quando [o vice-presidente] Joe Bidden estava pedindo 53 bilhões de dólares para gastos com o trem-bala para os próximos seis anos, um grupo de recém-eleitos governadores republicanos recusou bilhões em dinheiro federal para ferrovias [desse tipo] em Wisconsin, Ohio e Flórida. Finalmente, republicanos no Congresso zeraram o orçamento federal do trem-bala no mês passado.
Embora a completa rejeição do trem-bala pelos republicanos seja míope, muitos dos próprios planos para isso sofriam do mesmo mal. Em vez de centrar o foco nos poucos corredores que mais necessitam desse transporte, o governo Obama distribuiu meio bilhão aqui e meio bilhão acolá, numa estratégia mais voltada a angariar apoio político do que para resolver problemas reais de infraestrutura. Espalhado por 100 corredores, cada um tendo de 100 milhas (ca. 160 km) a 600 milhas (ca. 960 km) de extensão, o sistema ferroviário [do trem-bala] de Obama seria, na melhor das hipóteses, uma desconjuntada colcha de retalhos. O corredor mais congestionado do país, ao longo da Costa Leste entre Washington (D.C.) e Boston, ficou totalmente excluído do plano. E o pior é que muito do dinheiro foi alocado a projetos que nada têm de trem-bala.
Os europeus definem como trens-balas aqueles que viajam a 155 mph (ca. 248 km/h) (ou a 125 mph -- ca. 200 km/h -- em vias aperfeiçoadas e não especificamente construídas para isso). A linha Milwaukee - Madison, em Wisconsin, de US$ 823 milhões, alcançaria no máximo 110mph (ca. 176 km/h) entre paradas em cidades como Brookfield e Oconomowoc. A versão de Ohio seria ainda mais lenta, com os trens atingindo no máximo 79 mph (ca. 126,5 km/h) em vias de carga adaptadas. Com as paradas, a viagem de Cincinnati a Cleveland seria muito mais lenta de trem do que de carro. [O trem-bala tupiniquim alcançaria 350 km/h.]
De todas as linhas previstas, a da Califórnia ligando São Francisco a Los Angeles ainda parecia ter uma chance. Diferentemente das outras do país, seria real e exclusivamente de alta velocidade, com trens viajando a 220 mph (ca. 352 km/h). Ligaria duas metrópoles de sete milhões ou mais de habitantes, que são distantes o suficiente para desencorajar uma viagem de carro (seis horas, sem tráfego), e uma ponte aérea incômoda. E os planos já estavam disponíveis -- o Estado vinha trabalhando um projeto de trem-bala há décadas e só faltava o dinheiro para executá-lo.
Esse parecia ser o cenário perfeito para o [dinheiro de] estímulo de Obama. Não apenas a rodovia Interstate 5 da Califórnia está congestionada e piorando, como o tráfego aéreo entre S. Francisco e Los Angeles está também começando a tornar-se um problema. Mas, o projeto foi supervalorizado desde o início, com projeções de 100 milhões de usuários por ano e sadios lucros operacionais -- sim, lucros numa ferrovia -- gerando ceticismo mesmo entre os dispostos a apoiá-lo. Junto com os usuais opositores conservadores, os liberais ricos que vivem ao longo do trajeto proposto para a ferrovia em Palo Alto e cidades vizinhas -- suficientemente motivados com a perspectiva de ter literalmente um trem rugindo em seus quintais -- começaram também a cavar buracos no esquema financeiro do projeto. Em vez de levá-los a sério, os cabeças de bagre que apoiam o projeto tentaram passar um rolo compressor na oposição, chamando-os de "NIMBYs" (abreviatura de "not in my backyard" -- "não no meu quintal" -- usado pejorativamente em inglês para designar pessoas interesseiras, que só defendem o que lhes favorece) e de maçãs podres.
Pressionados para apresentar projeções mais realistas, autoridades ferroviárias do Estado admitiram no mês passado que o projeto levaria o dobro do tempo originalmente previsto para ser construído, atrairia menos usuários, e custaria o dobro. A honestidade foi bem-vinda, mas veio muito tarde: uma pesquisa divulgada nesta semana mostra que o público tornou-se totalmente contrário ao trem-bala, com cerca de dois terços dos entrevistados dizendo que gostariam de reconsiderar a aprovação que haviam dado em 2008 para US$ 9 bilhões de bônus estaduais [da Califórnia] para o projeto.
Visão artística do trem-bala para Mission Beach, Califórnia - (Fonte: Estado da Califórnia).
Recebi do amigo Ednardo, por email, o oportuno comentário que transcrevo a seguir:
ResponderExcluirVasco:
O que "matou" o trem bala nos EUA é a absoluta convicção da população na "vantagem" do transporte por auto.Os EUA tinham a melhor rede de estradas de ferro no Mundo, basta dizer que nos anos 50 havia um trem transcontinental panorâmico que ia de NY a LA.
Conhecí brasileiros que fizeram esta viagem e a descreviam embevecidos. A rede de super rodovias planejadas (plano do governo federal) e construídas a partir do Governo Eisenhower (ele ficou impressionado com a rede viária da Alemanha derrotada!!!) e o lobby posterior dos fabricantes de automóveis e das irmãzinhas do O&G acabou desferindo um golpe mortal nas ferrovias.
É um processo similar ao da campanha anti-obesidade lá: "tudo da boca pra fora", pois a indústria alimentícia já moldou grande parte da população para os snacks etc. É claro que os mais esclarecidos( e mais ricos tb) vão se alimentar cuidadosamente, vão fazer seus regimes e exercícios etc., vão frequentar restaurantes bons. Mas serão sempre minoria.Eu morei lá em 69/70 e os gordos já existiam mas na ocasião eram poucos. Em viagens posteriores('84, '96, '03, '09) vi que a situação só se agravava.
Muitos americanos, quando vão à Europa, ficam espantados com estes dois aspectos: número menor de obesos e melhores sistemas públicos de transporte, não só o trem bala, mas metrôs, trens intercity, bondes etc. Portanto não acredito que o trem bala tenha morrido pelas razões certas, mas apenas pela condução dos estudos enviesada pelos interesses dos grupos que mencionei.
Forte abraço
Ednardo
É justamente tendo em conta a importância das ferrovias na conquista e consolidação do território americano, daí sua tradição de qualidade durante um bom período, como bem frisa o Ednardo, que se torna mais surpreendente e digna de admiração, a meu ver, a decisão americana de adiar "sine die" seu trem-bala. É bom observar que os vícios apontados para o TAV (Trem de Alta Velocidade, sigla tupiniquim do trem-bala) americano são exatamente os mesmos que afligem o projeto brasileiro: trajeto altamente questionável, fixado mais por razões políticas que exclusivamente técnicas, e custo simplesmente imprevisível, com o Estado obrigado a subsidiar a obra (sem o quê empresário privado nenhum embarcará nessa canoa) com um montante absolutamente desconhecido. Para não pairar dúvida quanto ao tamanho do absurdo que o governo quer nos impingir, basta atentar para o custo "mínimo" estimado para o projeto, que é de R$ 33,1 bilhões, o que corresponde a mais de 18 bilhões de dólares (a R$ 1,80/dólar) ou seja, mais do dobro que o governo se dispôs a gastar no agora defunto trem-bala americano!
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