quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Justiça alemã ainda abriga e aplica legislação nazista para assassinatos, desfavorável às mulheres

[A reportagem traduzida abaixo foi publicada no site BBC Mundo do dia 9 deste mês, e nos dá a surpreendente informação de que ainda vigora e é aplicada na Alemanha uma legislação relativa a homicídios, ainda da era nazista, que é desfavorável às mulheres. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]



Desde a época nazista até agora, a lei tem sido mais dura com elas do que com eles - (Foto: Getty/BBC Mundo).

O longo braço da lei nazista chega até nossos dias. O Terceiro Reich foi destruído, mas sua legislação relativa a assassinatos [ou assassínios, como preferem alguns] permanece vigente e alguns dos advogados alemães mais eminentes alegam que ela perpetua a injustiça e deve ser tornada nula. 


Um estatuto legal que sobrevive na Alemanha desde 1941 faz com que as mulheres que matam seus maridos abusadores provavelmente passem mais tempo na prisão, condenadas por assassinato, do que os milhares de homens que matam suas esposas com violência.

Segundo a Associação Alemã de Advogados (AAA), os nazistas decidiram que um assassino era alguém que matava "à traição" ou "insidiosamente" -- heimtückisch é a palavra em alemão -- e esse conceito se mantém até agora. Isso significa que, se um homem agride sua mulher durante muitos anos e acaba por matá-la tem menos probabilidade de ser condenado por assassinato [no Brasil: homicídio voluntário, geralmente cometido com premeditação - Dic. Anonio Houaiss] do que por homicídio [ver aqui o conceito de homicídio no nosso CP - Código Penal].

Uma condenação por assassinato implica a imposição obrigatória da pena de prisão perpétua, enquanto no julgamento por homicídio a pena é de cinco anos de prisão. O argumento é que neste último caso não há nada "furtivo" ou "traiçoeiro" no ato de matar: é frontal, direto e poderia ter sido previsto.

Essa lógica ou conceito origina-se da crença dos nazistas de que certas pessoas tinham inerentemente um caráter fraco, segundo explica à BBC o advogado Stefan Koenig, que dirige o comitê penal da AAA. Tratava-se de definir um assassino como alguém traiçoeiro, em vez de examinar as circunstâncias em que cada crime ocorria, agrega ele.

A Alemanha Oriental possuía uma legislação diferente, em que o assassinato era julgado pela intenção de matar ou causar danos sérios. Mas, com a reunificação da Alemanha em 1990 a lei da parte ocidental prevaleceu.

Lei do mais forte

A lei favorecia -- e ainda favorece -- os mais fortes contra os mais fracos. " No código penal, no tocante a assassinato, uma pessoa é considerada culpada de assassinato e não de homicídio se abusa da impotência da vítima para defender-se, prevalecendo-se do fato de que a vítima não prevê ou antecipa nenhum ataque", diz Koenig.  Essa é, entretanto, precisamente a maneira pela qual as mulheres que vivem sob condições de abuso acabam matando seus companheiros, assinala ele. "Se a esposa, que é mais fraca que o agressor, não tem outra opção senão a de aproveitar um momento em que ele não espera nenhum ataque e o mata -- por exemplo, com uma facada pelas costas ou envenenando sua comida --  será condenada como assassina, com sentença de prisão perpétua". 

Os estudos estatísticos realizados confirmam o padrão observado por Koenig por experiência própria.

"Verifiquei que mulheres abusadas por seus companheiros são consideradas culpadas por assassinato mais frequentemente que os homens violentos", escreve o Prof. Dagmar Oberlies, autor de um desses estudos. "As mulheres que sofriam de violência por muitos anos premeditavam a morte de seus parceiros, enquanto os homens violentos -- que nada tinham a temer -- simplesmente maltratavam suas mulheres até elas serem encontradas mortas", acrescenta. 

"Eu também teria atirado nele"



"Tomara que esteja morto", disse Marianne Bachmeier - (Foto: AP).

Advogados que, como Koenig, querem mudar a lei, citam o caso de Marianne Bachmeier. Em 6 de março de 1981, ela entrou com uma pistola no tribunal em que no banco dos réus estava quem matara sua filha de 7 anos e atirou contra ele. Depois do gesto, disse: "Tomara que esteja morto". E foi o que aconteceu. Ela baixou a arma e não fez nenhuma tentativa de escapar.

A justiça alemã decidiu que isso não podia ser qualificado como homicídio, apesar do trauma que atormentava Marianne pelo abuso e pela morte de sua filha. Tinha que ser julgado como assassinato, porque a vítima não poderia ter previsto o ataque -- afinal, ela estava em um tribunal.

O caso desencadeou uma onda de críticas por todo o país. Se transmitiram programas com o título "Eu também teria atirado contra ele". Ao fim, foi retirada a acusação de assassinato, mas só depois de quatro semanas de debates legais inflamados.  Mas, o princípio se manteve: matar uma pessoa que não espera por isso tem que ser assassinato.

Canibalismo = assassinato?


Armin Meiwes acabou sendo condenado por assassinato, mas não por ter sido traiçoeiro mas sim por depravado - (Foto: Getty Images).

Quem defende a mudança da lei cita também outro caso. Em 2001, Armin Meiwes publicou um anúncio no site do Café Canibal em que dizia que "procurava uma pessoa com idade entre 18 e 30 anos de boa constituição, para ser sacrificada e em seguida consumida". Muitas pessoas responderam, mas apenas uma não foi mais vista: Bernd Jürgen Armando Brandes, um engenheiro de Berlim.

Os dois homens se conheceram em 21 de março e, como havia prometido, Armin matou Bernd e comeu partes dele. Nada disso é questionado, há um vídeo: Armin fritou o pênis da vítima e o condimentou com sal, pimenta, vinho e alho.

Armin se defendeu dizendo que sua vítima havia consentido em ser morto. A lei aceitou que não poderia ser configurado um assassinato pois, como houve um consentimento, não havia nada de "traiçoeiro" ou "furtivo" em relação ao delito. Armin foi condenado a oito anos de prisão por homicídio.

Novamente houve insatisfação, acompanhada de muitas discussões entre advogados sobre o caso e se decidiu por um novo julgamento, quando então se concluiu que se tratava efetivamente de assassinato. Isto ocorreu por conta de uma outra cláusula da lei nazista, usada na distinção entre assassinato e homicídio: certamente não havia nenhum elemento de traição no caso, mas Armin havia agido para satisfazer sua depravação sexual. Ele continua preso.






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