quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Malha rodoviária americana pelas tabelas -- dá p'ra acreditar?!

[A reportagem traduzida abaixo foi publicada no dia 4/11 no blogue Babbage -- Science and Technology da revista The Economist. A história abaixo, surpreendente, soa extremamente familiar para nós brasileiros em inúmeros aspectos negativos, razão pela qual resolvi traduzir o texto integralmente. A grande novidade desse artigo é revelar uma bagunça até então inimaginável na construção, manutenção e gestão das estradas americanas. Cai mais um mitoO que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]


Uma autoestrada mericana - (Foto: AFP/Fonte: The Economist).
Para um país tão rico como os EUA, a situação precária ["dilapidada", no original em inglês] de sua infraestrutura é certamente um quadro triste. Três semanas ao volante através da Espanha -- uma comparação extremamente desfavorável em termos econômicos, com os espanhóis apresentando em relação aos americanos uma taxa de desemprego acima de duas vezes maior e uma renda per capita inferior a dois terços da americana -- foram uma surpresa espantosamente positiva  para o Babbage. Rodovias amplas e bem construídas cruzam o país, com trevos de acesso por toda parte e pontes modernas de concreto vencendo desfiladeiros e gargantas. Babbage retornou às decadentes autoestradas e estradas [o texto original usa "surface streets", um termo tipicamente californiano para designar as estradas que não são autoestradas (freeways)] da Califórnia mais desanimado do que nunca.

Antes a inveja do mundo, os 75.000 km de rodovias interestaduais e os 192.000 km de autoestradas e de outras estradas de duas pistas de sentidos contrários [separadas por um canteiro, as "dual-carriageways"] dos EUA foram construídos em um furioso surto de construção de estradas durante os anos 1950 e 1960. Meio século de uso pesado mais tarde, com pouca manutenção nesse intervalo, as artérias da América ficaram congestionadas e estragadas. "Temos cerca de US$ 2 trilhões de manutenção postergada", alertou o presidente Obama recentemente. Esse dado veio de um estudo detalhado realizado pela Sociedade Americana de Engenheiros Civis. Até agora, entretanto, os pedidos de Obama a um Congresso dividido solicitando US$ 50 bilhões para começar a consertar a envelhecida infraestrutura do país, caíram em ouvidos determinadamente surdos.

Estradas esburacadas causam danos aos veículos das pessoas, aumentando os custos de manutenção, fazendo o ato de dirigir mais perigoso do que deveria ser e provocando atrasos incalculáveis. Quanto mais tempo as pessoas passam sentadas no trânsito, maior o seu gasto em combustível e maior a poluição que causam nesse processo. Tais fatos impõem custos aos cidadãos individualmente e à sociedade como um todo.

Pontes defeituosas geram custos ainda maiores. Quando a ponte I-35W desmoronou sobre o rio Mississipi em 2007, a catástrofe ceifou 13 vidas, feriu outras 145 pessoas e custou aos contribuintes US$ 234 milhões -- sem contar os meses de atrasos e desvios do tráfego. Falhas entre as quase 600.000 pontes do país estão crescendo de maneira alarmante. Dois terços delas ultrapassaram suas expectativas de vida útil.

Não contando as 84.000 pontes que conectam artérias importantes e estão classificadas como "funcionalmente obsoletas" (o que significa que podem permanecer abertas ao tráfego, desde que lhes sejam aplicadas restrições adequadas de peso e velocidade dos veículos), há ainda mais 66.500 pontes importantes que têm defeitos estruturais já conhecidos. A previsão de gastos apenas para o programa de reparos e substituições foi estimada em US$ 32 bilhões em 2004. Hoje, a conta é consideravelmente mais elevada. 

Infelizmente, o Fundo para Autoestradas definido em 1956 para pagamento da construção e manutenção da infraestrutura do país está à beira da falência. Quando o dinheiro acabar em setembro vindouro, o governo federal será incapaz de reembolsar os estados por boa parte dos trabalhos de construção e manutenção já em andamento. O Fundo é financiado através de uma taxa de 4,9 centavos por litro de gasolina e 6,45 centavos por litro de diesel. Sobre esses valores são acrescentados os impostos estaduais e os municipais. A Califórnia tem o sistema mais pesado, com um valor combinado de 18,99 centavos por litro de gasolina e 19,79 centavos por litro de diesel. A média nacional gira em torno de 13,2 centavos por litro de gasolina e 14,5 centavos por litro de diesel.

A taxação de combustível é uma das maneiras mais eficientes de fazer com que os motoristas paguem pela infraestrutura pública. Coletado na bomba, o imposto tem custo de administração baixo, é difícil de ser evitado e incide apenas sobre o que o consumidor usa. Mas, nem todos os impostos coletados na bomba são reinvestidos na infraestrutura.  Os impostos estaduais e municipais sobre combustível, diferentemente dos federais, podem ser usados para outros propósitos e frequentemente o são.

Para complicar a história, o imposto federal sobre combustíveis não sofre aumento desde 1993 nem é indexado à inflação. E, além disso, não estão comprando tanto combustível como faziam antigamente -- a receita resultante desses impostos tem decrescido, pois os carros se tornaram mais eficientes. Na média, os carros hoje gastam 25% menos combustível do que há 20 anos atrás, apesar de terem ficado mais pesados e mais potentes. 

Foram feitas sérias tentativas para, ao longo dos anos, aumentar o imposto [federal] sobre combustível para cerca de 10,57 centavos por litro. Com o Congresso hoje implacavelmente dividido, isso é mais do que nunca um azarão politicamente falando. Em vez dessa aprovação, o melhor que se pode esperar é que o Congresso adie a questão com uma medida paliativa para socorrer o Fundo de Autoestradas por mais um ano ou algo assim. Desde 2008, o Tesouro americano teve que transferir US$ 41 bilhões para esse Fundo para evitar que ele se tornasse insolvente. Até o final do ano que vem, esse número terá subido para US$ 54 bilhões.

A resposta efetiva, obviamente, é indexar à inflação o imposto sobre combustível, enquanto se incorporam ajustes para a crescente eficiência dos combustíveis.  Como isso é improvável que aconteça (pela mesma razão é impossível subir os impostos sobre combustíveis), uma alternativa é reabastecer o Fundo de Autoestradas com a receita gerada pela imposição aos motoristas de uma "taxa de usuário" (user fee) pelos quilômetros que viajar. E, se o Congresso empacar com isso, então os estados precisam ser encorajados -- e recompensados -- a implementar suas fontes de receitas calcadas no usuário para construção e manutenção de rodovias. 

Confrontados com a possibilidade de não serem pagos pelos trabalhos em andamento, vários governos estaduais e municipais começaram a testar meios de monitorar a milhagem dos motoristas. O equipamento sob teste é similar aos dispositivos telemáticos de rastreamento usados pelas companhias de seguros para oferecer prêmios mais baixos para os motoristas desejosos de provar que dirigem cuidadosamente, dentro da lei, e apenas durante as horas diurnas.  

A "caixa preta" usada para rastrear os hábitos de um cliente ao volante contém acelerômetros, um receptor de GPS, um processador e um módulo de memória, e um modem de celular para enviar para a seguradora os dados registrados. O dispositivo mantém o acompanhamento da localização do veículo, da velocidade e da aceleração, assim como as forças de frenagem e as forças laterais [quando da ação de abordagem de ângulos ou esquinas no trajeto] atuantes no veículo, juntamente com a hora do dia. Saber onde e quando o veículo esteve, e quão cuidadosamente foi dirigido, permite à seguradora determinar o prêmio correspondente adequadamente. Motoristas cuidadosos podem conseguir até 50% de redução em prêmios. O seguro telemático é útil para motoristas jovens, que não são penalizados pela idade, trabalho e tipo de veículo.

Uma coisa de que motoristas universalmente não gostam quanto a ter um dispositivo de rastreamento em seus carros -- mesmo que eles sirvam para reduzir significativamente os prêmios dos seguros -- é que, bem, eles são dispositivos de monitoramento. Com a coleta clandestina de dados pela Agência de Segurança Nacional [NSA, em inglês] ocupando as manchetes diariamente, as pessoas receiam que os dados de localização via GPS possam ser usados para monitorar cada movimento que façam e, de algum modo, ser utilizados contra eles.  Não surpreende, então, que receios relativos ao Big Brother tenham incomodado também os motoristas que participaram de testes para a taxa de usuário.

Tais testes estão planejados ou em andamento nos estados de Oregon, Califórnia, Nevada, Minnesota, Illinois and New York, assim como em Pennsylvania, Maryland, Virginia, Florida e outros estados da "Coalizão I-95" do litoral leste. Na Califórnia, os planejadores de transportes têm a expectativa de adotar taxas de usuários de rodovias que variam também com a hora do dia, para reduzir os congestionamentos e ajudar também o estado a cumprir suas metas relativas ao aquecimento global [ver postagem sobre um sistema de controle de tráfego em rodovias nos EUA]. Motoristas dissuadidos de dirigir durante as horas de pico, por causa das taxas de usuário mais elevadas na hora do rush, deverão usar menos combustível e causar menos poluição. 

O teste do Oregon -- o mais abrangente do país -- envolve cerca de 5.000 motoristas. Para minimizar o problema da privacidade, os responsáveis por ele estão experimentando a ideia de dar aos motoristas a opção de utilizar um equipamento de medição de quilometragem com ou sem GPS -- eles podem ainda decidir por simplesmente não tê-lo em hipótese alguma, e pagar uma taxa constante baseada na quilometragem média de todo o grupo.

Enquanto isso, Nevada e outros estados estão analisando maneiras de dispensar completamente o GPS. Querem verificar se é possível registrar a quilometragem ao longo qual um carro foi dirigido, sem coletar dados sobre seu destino e sobre quando isso ocorreu. Assim fazendo, eles deixam o motorista mais confortável. "As pessoas ficarão mais dispostas a fazer isso (aceitar taxas de usuário baseadas na quilometragem), se você não rastrear sua velocidade nem sua localização", disse recentemente ao Los Angeles Times o presidente da True Milage, Ryan Morrison. 

True Milage, uma empresa start-up baseada em Oakland, Califórnia, desenvolveu um dispositivo para registro baseado em milhagem para serviços de táxi e companhias de seguros. A tecnologia não usa nem rádio GPS para fazer a triangulação para localização do veículo, nem um modem de celular para transmitir séries de dados sobre o comportamento do motorista ao volante. As únicas informações registradas dentro do veículo são sua quilometragem, junto com a hora do dia, e o número de vezes em que o motorista aciona os freios. Algoritmos analíticos extraem informações adicionais a partir dos dados acumulados.

Uma ou duas vezes ao ano é feito o upload do sumário da quilometragem do usuário para os servidores companhia, simplesmente aproximando-se do dispositivo de monitoramento um smartphone equipado com "comunicação de campo próximo" ("near-field communication" ou NFC).  Empresas de seguros usam esses dados para determinar os descontos que podem oferecer aos clientes quando chegar a época de renovação de suas apólices. 

A tecnologia da True Mileage parece ser bastante mais barata e menos invasiva do que qualquer sistema de rastreamento via GPS hoje existente. Se os testes provarem que ela é precisa e confiável o suficiente para que possa ser usada de maneira disseminada, então os departamentos de transporte estaduais e municipais poderão dispor de uma solução para implementar taxas de usuários baseadas em quilometragem, sem causar alarme indevido na comunidade dos motoristas. Se isso ajudar a encher os cofres para reconstruir a decadente infraestrutura dos EUA, maravilha. Talvez então o Fundo de Autoestradas não seja mais necessário. Agora tem-se uma boa ideia.

[Se a situação americana no quesito rodovias é a bagunça vista acima, a nossa então é muito mais esculhambada e caótica -- basta dar uma olhada no item "Transporte" na aba lateral do blogue. Estudo feito pela consultora global Bain & Company e divulgado em agosto deste ano escancara as enormes mazelas dos nossos sistemas de transportes. Para começo de conversa, para um território de dimensões praticamente iguais (7,8 x 10⁶ km² dos EUA contra 8,0 x 10⁶ km² do Brasil) a malha rodoviária americana é humilhantemente superior à nossa. Segundo o estudo citado, temos apenas a merreca de cerca de 11.000 km de autoestradas e, mesmo assim, somos incapazes de fazê-las, torná-las e mantê-las decentes. Em 2009, segundo ainda a Bain, o Brasil investiu 0,35% do PIB em rodovias -- em 2008, os EUA investiram 0,8% do PIB em suas estradas. Esse é o retrato de corpo inteiro de quase 11 anos de governo petista e da incompetência executiva da gerentona do PAC.]




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