sábado, 18 de janeiro de 2014

A Máfia e o crescente escândalo do lixo tóxico na Itália

[O texto traduzido parcialmente abaixo (por ser muito longo) foi publicado no site inglês (Spiegel Online) da revista alemã Der Spiegel (O Espelho) em 16 deste mês de janeiro, e denuncia o crime de despejo de lixo tóxico no sul da Itália praticado há décadas pela Máfia. Em 2006 li o livro "Gomorra", de Roberto Saviano (Editora Bertrand Brasil), que narra a história real de um jornalista infiltrado na Camorra, a violenta máfia napolitana. No livro, Saviano -- que vive desde então sob a proteção e a vigilância cerradas do Estado italiano -- já narra em detalhes escabrosos do descarte criminoso de lixo tóxico na Itália. Os relatos do livro e da Spiegel são impressionantes. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade. ] 

Há décadas a Máfia tem despejado ilegalmente lixo tóxico na região ao norte de Nápoles. Testemunho antes secreto, revelado recentemente, mostra que líderes políticos há anos sabem do problema e no entanto nada fizeram a respeito -- mesmo com o aumento do índice de mortes por causa disso.

Carmine Schiavone foi batizado duas vezes. A primeira, por um padre, quando recém-nascido. A segunda, pelo próprio chefão Luciano Liggio, uma figura de destaque da máfia siciliana.

"O batismo foi feito assim", conta Schiavone. "O ícone de um santo foi colocado em minha mão e uma gota de sangue foi pingada sobre ele. Em seguida, o ícone foi queimado e foi recitado o seguinte: "você queimará como este santo se trair os irmãos ou os aliados da Cosa Nostra".  Schiavone fez seu voto, e comprometeu-se com a causa -- e, no entanto, acabou cometendo a traição. Depois de anos como chefe do notório clã Casalesi, parte da rede da Máfia ao redor de Nápoles, ele mudou de lado em 1993 e tornou-se uma testemunha chave nos processos legais contra seus associados. Ele testemunhou contra pesos-pesados dos Casalesi, que tinham apelidos como "Sandokan" [um herói de aventuras, criado pelo escritor Emilio Salgari entre 1883 e 1884], "Midnight Fatty" ["Gordo da Meia-Noite"], Baby, e outros.

Quando o denominado "Julgamento Espártaco" terminou finalmente em 2010, membros do clã Casalesi receberam até 16 sentenças de prisão perpétua consecutivas, graças especialmente ao testemunho dado por Schiavone. A recompensa de Schiavone foi uma nova vida, sob proteção policial, em que ele tem que constantemente mudar de endereço. "Participei em cerca de 50 assassinatos, alguns deles que eu mesmo ordenei, e sabia de uns 400 ou 500 outros", disse ele.

O ex-mafioso passou cerca de metade de seus 70 anos na cadeia ou em prisão domiciliar. Do ponto de vista legal, pagou por seus crimes. Apesar disso, Schiavone é novamente o centro das atenções devido a um testemunho que prestou em 7 de outubro de 1997 a uma comissão parlamentar de inquérito em Roma. Seu depoimento foi tão vasto e abrangente, que foi mantido em segredo -- até o parlamento italiano ceder à pressão popular e liberar sua divulgação no final de outubro do ano passado.

"Milhões de toneladas"

A audiência de 1997 não focou o tipo de matança em que Schiavone se envolveu durante a guerra de quadrilhas no interior napolitano. Em vez disso, foi centrada em homicídio negligente -- o resultado de solo e água subterrânea contaminados por lixo altamente tóxico que, sabe-se agora, durante anos foi depositado ilegal e lucrativamente pela Máfia, principalmente pelo clã Casalesi.

"Estamos falando de milhões de toneladas", disse Schiavone aos parlamentares (ele foi anteriormente chefe da administração da Máfia). "Sei também que vieram caminhões da Alemanha transportando lixo nuclear". As operações se realizaram à noite, sob a guarda de mafiosos vestindo uniformes da polícia militar, disse ele. Schiavone mostrou aos agentes da justiça italiana os locais de muitos desses despejos porque, disse ele em 1997, "as pessoas nessas áreas estão sob risco de morrer de câncer em 20 anos".

Mais de 16 anos se passaram desde que Schiavone fez essa profecia à comissão de inquérito -- e nada foi feito. O choque e a revolta são extremos hoje. Não apenas porque pesquisadores de câncer encontraram indicadores significativos de que Schiavone possa ter dito a verdade, mas também porque várias autoridades em todos os níveis têm que ter estado cientes dos alertas de Schiavone desde meados dos anos 1990, e os ignoraram.

A pressão é particularmente grande sobre os seguintes atores dessa história:

  • Giorgio Napolitano era o ministro do Interior à época e, portanto, responsável em última análise pelas investigações. Hoje, é presidente da Itália.
  • Gennaro Capuolongo, de acordo com Schiavone, estava em um helicóptero que sobrevoou alguns dos locais de despejo de lixo tóxico. Hoje, é chefe da Interpol italiana.
  • Alessandro Pansa chefiava à época as unidades móveis da força policial italiana. Hoje, chefia a Polícia Estatal italiana.
  • Nicola Cavaliere estava na polícia criminal na época e se envolveu no caso, diz Schiavone. Hoje, é vice-diretor do serviço de inteligência doméstica da Itália.
Mas, mesmo com toda a pressão da mídia italiana, as autoridades italianas estão agindo como sempre, especialmente o presidente Napolitano [que é de Nápoles]. Ele diz que a Camorra é o "ator principal" do desastre ambiental  e evita falar do papel dele mesmo. Cavaliere diz que "nunca lidou diretamente" com o assunto. Outros implicados pelo depoimento de Schiavone permanecem em silêncio, ou tentam minimizar as preocupações.

Nomes, datas e locais

O jornalista Roberto Saviano já não descreveu em seu livro Gomorra como a Máfia transformou o sul da Itália em depósito de lixo para o rico norte italiano? Por que o súbito alarme? É possível que um ex-mafioso enlouquecido esteja semeando pânico para que o Estado gaste milhões para sanear os locais contaminados com tóxicos -- operação com a qual a Máfia pode mais uma vez lucrar?

É possível. Mas, mesmo isso faria pouco para amenizar a severidade das acusações de Schiavone. Ninguém antes dele falou de transporte de lixo nuclear. Ninguém antes dele descreveu com tantos detalhes como o lixo industrial de fábricas ilegais do norte chega até o sul. Ele contou como o lixo -- não importa se contendo dioxina, amianto ou tetracloroetileno -- foi depositado em valas abertas para a construção de rodovias.

Estima-se que 11,6 milhões de toneladas de lixo são despejadas ilegalmente na Itália, por ano. A organização ambiental Legambiente coloca o negócio do "lixo negro" movimentando acima de € 16 bilhões [cerca de R$ 50 bi] em 2012. Parece tratar-se de uma atividade imune a crises, já que os clãs da Máfia oferecem seus serviços por preços bem menores que os das empresas especializadas em descarte de lixo.

A Máfia é uma parte do Estado, diz Schiavone, acrescentando que os Casalesi eram um "clã estatal" e que o estado também lucrava com o negócio do lixo -- uma acusação séria, que ele diz poder provar. O ex-mafioso abre a porta de um quarto onde guarda caixas de documentos, mexe nos papéis e começa a declinar nomes, datas e locais.

Toda a informação que possui foi fornecida às autoridades nacionais anti-Máfia nos anos 1990, diz Schiavone. O nome de uma empresa baseada em Milão que, como intermediária, desempenhou um papel chave na transferência de lixo do norte para o sul, foi incluído também nos documentos. "Mas, parte do meu testemunho foi classificada como confidencial pelo Rei Giorgio", diz ele.

Rei Giorgio? "Napolitano, que era então ministro do Interior". E quem estava por trás da empresa em Milão?  "Um dos sócios", diz Schiavone, "era PB -- Paolo Berlusconi". PB é o vice-presidente do time de futebol AC Milan e é irmão de Silvio Berlusconi, que por quatro vezes foi primeiro-ministro da Itália. Ele foi realmente um participante do comércio de lixo tóxico e nuclear da Máfia? Schiavone disse isso em público, mas PB classifica suas alegações de "conto de fadas".

"Terra de veneno"

Quem viajar para o sul pela Autoestrada do Sol e tomar a saída para Casserta, pertinho de Nápoles, chegará ao local onde milhares de caminhões nas décadas passadas despejaram suas cargas de lixo industrial, à sombra do Vesúvio. Está bem no centro da região onde Goethe passou algum tempo durante suas viagens ao sul, e descrita de maneira encantada por ele como a "planície mais fértil do mundo". 

Os tempos mudaram. Já em 2004, a publicação médica britânica The Lancet Oncology descreveu a área ao redor de Acerra como um "triângulo da morte", onde nasceram ovelhas com duas cabeças. Depois, toda a região ao norte de Nápoles foi apelidada de "terra dei fuochi" ou "terra dos fogos". Circulavam imagens de crianças maltrapilhas em frente a colunas de fumaça negra que saíam de despejos de lixo não autorizados. Agora que ficou claro que o perigo maior vem do que restou sob o solo, a região é citada como a "terra do veneno". 

A área por onde Goethe viajou certa vez é hoje uma sequência de assentamentos desinteressantes, separados por campos de couve-flor e shopping centers. Vêem-se prostitutas nigerianas, imagens de santos em pequenos altares à beira da estrada e montanhas de lixo, onde se pode encontrar de tudo -- de garrafas de cerveja a barris de dioxina. 

A base naval americana em Gricignano, de paisagismo muito agradável, situa-se entre duas faixas de terra envenenada. Isto significa que todos na base, incluindo o almirante Bruce Clingan -- que comanda as forças americanas e aliadas na Europa e na Ásia, e mora na "Villa Capri" com vista para o Vesúvio -- têm que seguir regras rígidas. Água da torneira não pode mais ser usada na base, nem mesmo para escovar os dentes. Até o gato do comandante toma água engarrafada. As razões para isso estão cuidadosamente listadas em um estudo de US$ 30 milhões, comissionado pela Marinha americana em 2011 -- um trabalho que só chegou à atenção dos italianos através de um artigo na revista L'Espresso. Seu título: "Beba Nápoles e morra". O estudo concluiu que 92% da água coletada de poços privados fora da base apresentavam um "risco inaceitável à saúde". 

(...) Apesar disso, muito da produção local é considerado como não contaminado e há várias colheitas por ano. No entanto, ainda há dias em que mesmo homens honrados como o general Sergio Costa, do serviço florestal nacional, têm a sensação de estarem olhando através das "portas do inferno". Como no dia em novembro, por exemplo, em que ele e seus homens desenterraram barris de lixo tóxico de debaixo de campos de couve-flor em Caivano. As luvas de plástico que alguns dos homens usavam para manusear o lixo dissolveram-se no contato com ele.

"O aterro sanitário mais repugnante da Europa"

Mais ao oeste, em Giugliano, 500 ciganos vivem em choças e trailers aos pés do que provavelmente é o aterro sanitário mais repugnante da Europa, saturado de, entre outras coisas, lama tóxica e dioxina. De acordo com o comissário do governo responsável pela área, "seria necessário um sarcófago como o de Chernobyl para proteger o público".

(...) Antonio Marfella, do Instituto Italiano de Pesquisas de Câncer em Nápoles, apresenta outras descobertas: tumores aumentaram em 47% entre os homens na província de Nápoles nas últimas duas décadas. Sobretudo, a ocorrência de carcinoma de pulmão está crescendo mesmo entre não fumantes -- um fato raro na Europa. A região de Campânia tem hoje a taxa de infertilidade mais alta da Itália, e lidera também no número de casos de autismo severo -- tudo isso deflagrado, os especialistas suspeitam, pela exposição aumentada ao mercúrio.

"O desespero está se espalhando"

(...) As comunidades estão se organizando em protesto, sob a liderança do padre Maurizio Patricello, pároco de Caivano. Defensores de direitos civis que trabalham com ele enviaram 150.000 cartões postais ao Papa e ao presidente Napolitano, com fotos de mulheres com seus filhos mortos em seus colos. Entre elas estava Anna, cujo filho de 20 meses morreu de leucemia em 2009. (...)

Lixo radioativo da Alemanha Oriental

Obviamente, a influência do clã Casalesi não terminava -- nem termina ainda hoje -- na fronteira norte da Itália, diz Schiavone, acrescentando que dissera a mesma coisa à polícia federal alemã que o interrogou em Munique e em Roma. "Tínhamos um de nossos homens na Alemanha, que tinha contatos com políticos de lá", disse ele. "por intermédio dele veio, entre outras coisas, o lixo tóxico -- inclusive o nuclear -- para a empresa em Milão".  

O gabinete da Polícia Criminal Federal da Alemanha confirma que houve uma reunião com Schiavone em 1994, e que ela tratou das atividades do clã Casalesi em território alemão. Mas, as autoridades alemãs disseram não ter lembrança de discussões sobre lixo tóxico ou nuclear. 

Schiavone, entretanto, insiste em que o material radioativo "presumivelmente da Alemanha Oriental" foi entregue em recipientes de chumbo de cerca de 50 cm de comprimento. "Esses recipientes foram então enterrados "a até 20 m de profundidade -- mas a sonda, usada posteriormente para medições, foi apenas até 6 m de profundidade".

De acordo com o responsável pela região de Campânia, a informação fornecida por Schiavone está sendo investigada. Mas, quanto às pequenas quantidades de material radioativo, isso demandará algum tempo.


Um local de descarte ilegal de lixo tóxico, com a silhueta do Vesúvio ao fundo - (Foto: Mauro Pagnano/Der Spiegel).


Carmine Schiavone, o ex-mafioso que denunciou as atividades da Máfia do descarte ilegal de lixo tóxico na Itália - (Foto: Mauro Pagnano/Der Spiegel).


O oncologista Antonio Marfella, do Instituto Italiano de Pesquisas de Câncer de Nápoles, que verificou que a incidência de tumores entre os homens na província de Nápoles aumentou em 47% nas últimas duas décadas, potencialmente em consequência das grandes quantidades de lixo tóxico enterradas no solo da região - (Foto: Mauro Pagnano/Der Spiegel).


Mais de 100.000 manifestantes participaram de um protesto em novembro passado em Nápoles para demonstrar sua indignação com o enorme problema do lixo na região que circunda a cidade. Muitas mães portavam fotos de crianças que morreram de doenças que podem ter sido causadas pela poluição - (Foto: Mauro Pagnano/Der Spiegel). 


Em Giugliano, próximo a Nápoles, 500 ciganos vivem em trailers e choças junto ao que é provavelmente o aterro sanitário mais repugnante da Europa - (Foto: Mauro Pagnano/Der Spiegel).

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