Fracassos no Iraque e no Afeganistão aumentaram a separação entre a maioria dos americanos e as forças armadas do país
[O artigo da The Economist reproduz inicialmente um dia rotineiro do sargento Russell Haney como recrutador do exército dos EUA. Após uma jornada frustrante, ele diz que apoiar as forças armadas da boca p'ra fora é o que fazem todos os americanos.]
Numa sociedade dada a uma ostensiva reverência às forças armadas -- durante o Mês do Apreço Nacional aos Militares, no Dia do Cônjuge Militar e em inúmeros outros feriados e ocasiões públicos dessa natureza -- os números que dão suporte à afirmação do Sargento Haney são surpreendentes. No ano fiscal que terminou em 30 de setembro, as quatro forças armadas dos EUA -- exército, marinha, força aérea e fuzileiros navais -- visavam recrutar 177.000 pessoas, especialmente entre os 21 milhões de americanos com idade entre 17 e 21 anos. Todos se esforçaram e o exército, que responde por quase metade daquela meta de recrutamento, conseguiu seu objetivo a um alto custo e no último momento, apenas através da canibalização de seu estoque de recrutas para este ano. Faltaram-lhe 2.000 pessoas para preencher sua quota de 17.300 recrutas para sua reserva armada, que está se tornando mais importante para a segurança nacional no momento em que o exército de tempo integral encolhe de um pico recente de 566.000 membros para um valor projetado de 440.000 para 2019, o valor mais baixo desde a segunda guerra mundial. "Acho impressionante", diz o comandante do serviço de recrutamento do exército Major-General Jeffrey Snow, "que tenhamos estado em duas prolongadas campanhas terrestres e temos um público americano que tem o exército em alta conta, e ainda assim a grande maioria [desse público] perdeu contato com ele. Menos de 1% dos americanos tem intenção de, e está capacitado para, ingressar no exército".
Inelegibilidade para o serviço militar (*) entre americanos com idade de 17 a 24 anos, em 2014, em % -- (*) As principais causas incluem sobrepeso, educação inadequada, histórico criminal ou uso de drogas - (Mapa: Economist.com)
Isso é parte de uma tendência de longa data: uma crescente desconexão entre a sociedade americana e as forças armadas que alegam representá-la, o que tem muitas causas, começando com o fim do serviço militar obrigatório em 1973. Desde então, a passagem pelo serviço militar vem consistentemente reduzindo-se na vida dos americanos. Em 1990, quarenta por cento (40%) dos jovens americanos tinha pelo menos um progenitor que havia servido nas forças armadas; em 2014 esse número foi de apenas 16% e ele continua a cair. O declínio é analogamente pronunciado entre as lideranças americanas: 64% dos congressistas em 1981 eram veteranos, hoje cerca de 18% o são.
Fatores sazonais, incluindo um fortalecimento do mercado de trabalho e uma cobertura negativa pela mídia das guerras no Iraque e no Afeganistão, ampliaram esse gape. Contribuíram também para isso os péssimos padrões de educação e de preparo físico que prevalecem na sociedade americana moderna.
Numa época de introspecção pós-guerra, esses fatores levantam duas grandes questões. A primeira refere-se à capacidade dos EUA de responsabilizar/punir um setor militar que suas lideranças se sentem obrigadas a aplaudir, mas não se sentem mais competentes para criticar. Andrew Bacevich, um ex-oficial do exército, acadêmico e um crítico de longa data do que ele chama de militarismo da sociedade americana, ridiculariza esse apoio chamando-o de "superficial e fraudulento". Santificados pelos políticos e pelo público, argumenta ele, os figurões do exército têm recebido demasiado poder e muito pouca supervisão, o que tornou um resultado quase inevitável as recentes campanhas militares desastrosas e, analogamente, extremamente extravagantes verbas públicas para isso. A segunda questão levantada pela desconexão entre civis e militares é semelhantemente fundamental: a futura capacidade dos EUA de se mobilizar para uma guerra. [O entranhado belicismo americano leva inevitavelmente a um cenário bizarro em que os EUA estão permanentemente preocupados e focados na perspectiva do país envolver-se em conflito(s). Entre outras razões adicionais para isso inclui-se inequivocamente o enorme peso da indústria bélica americana no PIB do país.]
Durante a guerra da Coréia, cerca de 70% dos americanos em idade para recrutamento serviram nas forças armadas; durante a guerra do Vietnam, a impopularidade do conflito e a facilidade de se evadir o serviço militar fizeram com que essa participação caísse para apenas 43%. Nos dias de hoje, mesmo que cada jovem americano quisesse ingressar no exército menos de 30% estariam capacitados para isso. Dos 21 milhões iniciais de jovens em idade militar cerca de 9,5 milhões não preencheriam uma qualificação acadêmica rudimentar, seja porque abandonaram o curso secundário seja porque, tipicamente, a maioria dos jovens americanos não consegue fazer somas complicadas sem uma calculadora. Dos restantes 11,5 milhões de jovens em idade militar, 7 milhões seriam desqualificados porque são muito gordos, ou porque têm histórico criminal ou porque têm tatuagens em suas mãos ou rostos. De acordo com o Sargento Haney, cerca de metade dos estudantes secundaristas do Condado de Clayton, na Geórgia, são tatuados em um ou outro desses locais; de acordo com seu chefe, o tenente-coronel Tony Parilli, o maior dos problemas é que, simplesmente, "a América está obesa".
Rejeitado com desdém pela elite
Isso deixa 4,5 milhões de jovens americanos elegíveis para o serviço militar, dos quais 390.000 estão inclinados ou dispostos a isso desde que não sejam absorvidos por uma universidade ou uma empresa privada, o que tende a acontecer com os melhores deles. Na realidade, o mantra favorito dos recrutadores do exército de que estão competindo com a Microsoft e o Google [para atrair jovens] não é de fato verdadeiro. Com a exceção anual de umas poucas centenas de filhos e filhas de oficiais da reserva, a elite americana tem rejeitado há tempo o serviço militar. Bem menos de 10% dos recrutas do exército têm grau universitário; quase a metade pertence a uma minoria étnica.
O grupo de recrutas potenciais é demasiado pequeno para satisfazer as necessidades militares dos EUA, mesmo tendo estas encolhido, especialmente, como agora, quando a taxa de desemprego cai para menos de 6%. Isso deixa o exército, a menos favorecida das quatro forças militares, com o dilema de baixar seus padrões de recrutamento ou então atrair com benefícios generosos aqueles que não estão inclinados a prestar serviço militar. Depois de não conseguir atingir sua meta de recrutamento em 2005, um ano de alto nível de empregos e más notícias de Bagdá, o exército adotou zelosamente as duas estratégias.
Para sustentar o que, por padrões históricos, era apenas um modesto surto no Iraque, cerca de 2% dos recrutas do exército foram aceitos apesar de não terem preenchido os requisitos acadêmicos e outros tipos de critérios. "Aceitamos um risco na qualidade", diz com uma careta o general Snow, um veterano do Iraque. Enquanto isso, o custo dos bônus de adesão do exército [para incorporação de recrutas] inchou rapidamente de maneira insustentável para US$ 860 milhões somente em 2008.
Essa cifra decresceu desde então, como parte de um esforço mais amplo de controlar os custos de pessoal, que consomem cerca de um quarto do orçamento de defesa dos EUA. Ainda assim, os restantes "adoçantes" usados pelo exército são ainda generosos: os pagamentos e concessões/compensações feitos pelo exército aumentaram em 90% desde o ano 2000. Fazendo uma mis-en-scène no posto de recrutamento do sargento Haney, o autor deste artigo se apresentou como alguém sem objetivos que deixou a escola e perguntou o que o exército poderia lhe oferecer. Além do usual cama, comida e seguro médico, foi-lhe dito que receberia US$ 78.000 em taxas universitárias, algumas das quais poderiam sr transferidas para um parente próximo; treinamento profissional, incluindo 46 tipos de empregos/atividades que ainda oferecem um gordo bônus de adesão; e aconselhamento sobre carreiras pós serviço militar. O exército poderia talvez ignorar também a contravenção com drogas na juventude que o autor, em sua encenação, admitiu ter cometido? O sargento Fred Pedro achou que sim.
É uma boa oferta, especialmente quando contraposta aos empregos ruins e à estagnação salarial que prevalecem entre os americanos a quem ela é basicamente dirigida. O fato de que o exército esteja enfrentando esse tipo de problema para se vender à população é em parte uma prova dos efeitos sobre a opinião pública de suas guerras recentes. Em três décadas após a retirada dos EUA do Vietnam em 1973, o exército lutou uma dezena de pequenas guerras e um grande conflito, a primeira guerra do Golfo, no qual sofreu apenas uma poucas centenas de perdas humanas no total. Mesmo quando os americanos cresceram separados de seus soldados, portanto, eles foram também encorajados a esquecer que uma guerra geralmente acarreta matança em ambos os lados.
Nesse contexto alegre e despreocupado, os 5.366 americanos mortos em combate e as dezenas de milhares de feridos no Iraque e no Afeganistão surgiram como um choque terrível. A maioria dos jovens americanos associam o exército com "voltar para casa em pedaços, física, mental e emocionalmente", diz James Ortiz, diretor de marketing do exército. Quase cada participante da classe de jornalismo da escola secundária D.M. Therrell High School em Atlanta concorda com isso: "Eu poderia ingressar [no exército] se não houver outra opção, mas eu simplesmente não gosto da violência [lá]", disse nervosamente Mayowa, de 16 anos.
Décadas de propaganda do exército com foco no dinheiro para universidade e outros benefícios do serviço militar provavelmente contribuíram para o mal-entendido em relação a essa força militar. "Os americanos não entendem o que é o exército, por isso não o valorizam", diz Ortiz. Uma campanha de marketing lançada no ano passado, Empreendimento Exército, muda o foco, enfatizando os altos valores e os bons trabalho que o exército busca disseminar. Entretanto, será preciso mais do que isso para fazer com que americanos voltem para uma vida que muitos consideram incompatível com uma vida moderna fragmentada, cética e irreverente. Além disso, é também provável que na próxima vez em que o exército precisar atuar isso se dê numa guerra muito mais sangrenta do que as guerras mais recentes. A maior vantagem dos EUA no campo de batalha nas últimas décadas, seu domínio de armas teleguiadas de precisão, está minguando na medida em que tais armas se tornam amplamente disponíveis até para grupos militantes maiores, como o Hamas e o Hezbollah.
O resultado é que os EUA podem tornar-se incapazes, dentro de limites de custos razoáveis e sem restabelecer o serviço militar obrigatório, de mobilizar o exército (muito maior) de que poderá necessitar para tais guerras. "Poderíamos colocar em campo a força de que necessitamos?", pergunta Andrew Krepinevich, do Centro de Avaliações Estratégicas e Orçamentárias. Provavelmente, não: "O risco é que nosso desejo de convocar apenas aqueles que estejam dispostos a ingressar no exército está nos alijando de certos tipos de operações militares".
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[A projeção de gastos militares dos EUA nas despesas discricionárias (despesas que permitem ao gestor público flexibilidade, tanto no momento de elaboração do orçamento quanto na sua execução) de 2015 foi de US$ 598,5 bilhões de dólares, equivalentes a 54% de todas as despesas discricionárias do governo federal (US$ 1,11 trilhão).]
O grupo de recrutas potenciais é demasiado pequeno para satisfazer as necessidades militares dos EUA, mesmo tendo estas encolhido, especialmente, como agora, quando a taxa de desemprego cai para menos de 6%. Isso deixa o exército, a menos favorecida das quatro forças militares, com o dilema de baixar seus padrões de recrutamento ou então atrair com benefícios generosos aqueles que não estão inclinados a prestar serviço militar. Depois de não conseguir atingir sua meta de recrutamento em 2005, um ano de alto nível de empregos e más notícias de Bagdá, o exército adotou zelosamente as duas estratégias.
Para sustentar o que, por padrões históricos, era apenas um modesto surto no Iraque, cerca de 2% dos recrutas do exército foram aceitos apesar de não terem preenchido os requisitos acadêmicos e outros tipos de critérios. "Aceitamos um risco na qualidade", diz com uma careta o general Snow, um veterano do Iraque. Enquanto isso, o custo dos bônus de adesão do exército [para incorporação de recrutas] inchou rapidamente de maneira insustentável para US$ 860 milhões somente em 2008.
Essa cifra decresceu desde então, como parte de um esforço mais amplo de controlar os custos de pessoal, que consomem cerca de um quarto do orçamento de defesa dos EUA. Ainda assim, os restantes "adoçantes" usados pelo exército são ainda generosos: os pagamentos e concessões/compensações feitos pelo exército aumentaram em 90% desde o ano 2000. Fazendo uma mis-en-scène no posto de recrutamento do sargento Haney, o autor deste artigo se apresentou como alguém sem objetivos que deixou a escola e perguntou o que o exército poderia lhe oferecer. Além do usual cama, comida e seguro médico, foi-lhe dito que receberia US$ 78.000 em taxas universitárias, algumas das quais poderiam sr transferidas para um parente próximo; treinamento profissional, incluindo 46 tipos de empregos/atividades que ainda oferecem um gordo bônus de adesão; e aconselhamento sobre carreiras pós serviço militar. O exército poderia talvez ignorar também a contravenção com drogas na juventude que o autor, em sua encenação, admitiu ter cometido? O sargento Fred Pedro achou que sim.
É uma boa oferta, especialmente quando contraposta aos empregos ruins e à estagnação salarial que prevalecem entre os americanos a quem ela é basicamente dirigida. O fato de que o exército esteja enfrentando esse tipo de problema para se vender à população é em parte uma prova dos efeitos sobre a opinião pública de suas guerras recentes. Em três décadas após a retirada dos EUA do Vietnam em 1973, o exército lutou uma dezena de pequenas guerras e um grande conflito, a primeira guerra do Golfo, no qual sofreu apenas uma poucas centenas de perdas humanas no total. Mesmo quando os americanos cresceram separados de seus soldados, portanto, eles foram também encorajados a esquecer que uma guerra geralmente acarreta matança em ambos os lados.
Nesse contexto alegre e despreocupado, os 5.366 americanos mortos em combate e as dezenas de milhares de feridos no Iraque e no Afeganistão surgiram como um choque terrível. A maioria dos jovens americanos associam o exército com "voltar para casa em pedaços, física, mental e emocionalmente", diz James Ortiz, diretor de marketing do exército. Quase cada participante da classe de jornalismo da escola secundária D.M. Therrell High School em Atlanta concorda com isso: "Eu poderia ingressar [no exército] se não houver outra opção, mas eu simplesmente não gosto da violência [lá]", disse nervosamente Mayowa, de 16 anos.
Décadas de propaganda do exército com foco no dinheiro para universidade e outros benefícios do serviço militar provavelmente contribuíram para o mal-entendido em relação a essa força militar. "Os americanos não entendem o que é o exército, por isso não o valorizam", diz Ortiz. Uma campanha de marketing lançada no ano passado, Empreendimento Exército, muda o foco, enfatizando os altos valores e os bons trabalho que o exército busca disseminar. Entretanto, será preciso mais do que isso para fazer com que americanos voltem para uma vida que muitos consideram incompatível com uma vida moderna fragmentada, cética e irreverente. Além disso, é também provável que na próxima vez em que o exército precisar atuar isso se dê numa guerra muito mais sangrenta do que as guerras mais recentes. A maior vantagem dos EUA no campo de batalha nas últimas décadas, seu domínio de armas teleguiadas de precisão, está minguando na medida em que tais armas se tornam amplamente disponíveis até para grupos militantes maiores, como o Hamas e o Hezbollah.
O resultado é que os EUA podem tornar-se incapazes, dentro de limites de custos razoáveis e sem restabelecer o serviço militar obrigatório, de mobilizar o exército (muito maior) de que poderá necessitar para tais guerras. "Poderíamos colocar em campo a força de que necessitamos?", pergunta Andrew Krepinevich, do Centro de Avaliações Estratégicas e Orçamentárias. Provavelmente, não: "O risco é que nosso desejo de convocar apenas aqueles que estejam dispostos a ingressar no exército está nos alijando de certos tipos de operações militares".
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[A projeção de gastos militares dos EUA nas despesas discricionárias (despesas que permitem ao gestor público flexibilidade, tanto no momento de elaboração do orçamento quanto na sua execução) de 2015 foi de US$ 598,5 bilhões de dólares, equivalentes a 54% de todas as despesas discricionárias do governo federal (US$ 1,11 trilhão).]