quinta-feira, 29 de outubro de 2015

O dilema americano: a sociedade civil está se afastando da sociedade militar

[Sempre me impressionou e me confundiu a enorme facilidade com que os americanos mandam seus jovens para lutar e morrer em guerras que os EUA criam ou estimulam a três por quatro mundo afora, várias delas absolutamente insanas e criminosamente catastróficas. Sem falar nas verbas astronômicas que isso envolve. A guerra do Iraque, forjada e implementada sobre a absurda mentira das armas de destruição em massa iraquianas, é um exemplo pavorosamente emblemático do belicismo desenfreado e majoritariamente injustificado dos EUA, e dos altíssimos custos em vidas e equipamentos que isso custa ao contribuinte americano -- sem falar no caos político e social em que o Iraque mergulhou após a atabalhoada e ridícula intervenção militar liderada pelos EUA, com repercussões negativas de vários níveis e dimensões para os próprios americanos. Traduzo a seguir os principais trechos de um artigo da revista The Economist sobre a cada vez mais reticente reação do povo americano a um maior envolvimento com atividades militares, traduzida em uma queda visível no alistamento militar de jovens americanos. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]

Fracassos no Iraque e no Afeganistão aumentaram a separação entre a maioria dos americanos e as forças armadas do país

[O artigo da The Economist reproduz inicialmente um dia rotineiro do sargento Russell Haney como recrutador do exército dos EUA. Após uma jornada frustrante, ele diz que apoiar as forças armadas da boca p'ra fora é o que fazem todos os americanos.]

Numa sociedade dada a uma ostensiva reverência às forças armadas -- durante o Mês do Apreço Nacional aos Militares, no Dia do Cônjuge Militar e em inúmeros outros feriados e ocasiões públicos dessa natureza -- os números que dão suporte à afirmação do Sargento Haney são surpreendentes. No ano fiscal que terminou em 30 de setembro, as quatro forças armadas dos EUA -- exército, marinha, força aérea e fuzileiros navais -- visavam recrutar 177.000 pessoas, especialmente entre os 21 milhões de americanos com idade entre 17 e 21 anos. Todos se esforçaram e o exército, que responde por quase metade daquela meta de recrutamento, conseguiu seu objetivo a um alto custo e no último momento, apenas através da canibalização de seu estoque de recrutas para este ano. Faltaram-lhe 2.000 pessoas para preencher sua quota de 17.300 recrutas para sua reserva armada, que está se tornando mais importante para a segurança nacional no momento em que o exército de tempo integral encolhe de um pico recente de 566.000 membros para um valor projetado de 440.000 para 2019, o valor mais baixo desde a segunda guerra mundial. "Acho impressionante", diz o comandante do serviço de recrutamento do exército Major-General Jeffrey Snow, "que tenhamos estado em duas prolongadas campanhas terrestres e temos um público americano que tem o exército em alta conta, e ainda assim a grande maioria [desse público] perdeu contato com ele. Menos de 1% dos americanos tem intenção de, e está capacitado para, ingressar no exército". 


Inelegibilidade para o serviço militar (*) entre americanos com idade de 17 a 24 anos, em 2014, em % -- (*) As principais causas incluem sobrepeso, educação inadequada, histórico criminal ou uso de drogas - (Mapa: Economist.com) 


Isso é parte de uma tendência de longa data: uma crescente desconexão entre a sociedade americana e as forças armadas que alegam representá-la, o que tem muitas causas, começando com o fim do serviço militar obrigatório em 1973. Desde então, a passagem pelo serviço militar vem consistentemente reduzindo-se na vida dos americanos. Em 1990, quarenta por cento (40%) dos jovens americanos tinha pelo menos um progenitor que havia servido nas forças armadas; em 2014 esse número foi de apenas 16% e ele continua a cair. O declínio é analogamente pronunciado entre as lideranças americanas: 64% dos congressistas em 1981 eram veteranos, hoje cerca de 18% o são.

Fatores sazonais, incluindo um fortalecimento do mercado de trabalho e uma cobertura negativa pela mídia das guerras no Iraque e no Afeganistão, ampliaram esse gape. Contribuíram também para isso os péssimos padrões de educação e de preparo físico que prevalecem na sociedade americana moderna. 

Numa época de introspecção pós-guerra, esses fatores levantam duas grandes questões. A primeira refere-se à capacidade dos EUA de responsabilizar/punir um setor militar que suas lideranças se sentem obrigadas a aplaudir, mas não se sentem mais competentes para criticar. Andrew Bacevich, um ex-oficial do exército, acadêmico e um crítico de longa data do que ele chama de militarismo da sociedade americana, ridiculariza esse apoio chamando-o de "superficial e fraudulento". Santificados pelos políticos e pelo público, argumenta ele, os figurões do exército têm recebido demasiado poder e muito pouca supervisão, o que tornou um resultado quase inevitável as recentes campanhas militares desastrosas e, analogamente, extremamente extravagantes verbas públicas para isso. A segunda questão levantada pela desconexão entre civis e militares é semelhantemente fundamental: a futura capacidade dos EUA de se mobilizar para uma guerra. [O entranhado belicismo americano leva inevitavelmente a um cenário bizarro em que os EUA estão permanentemente preocupados e focados na perspectiva do país envolver-se em conflito(s). Entre outras razões adicionais para isso inclui-se inequivocamente o enorme peso da indústria bélica americana no PIB do país.]

Durante a guerra da Coréia, cerca de 70% dos americanos em idade para recrutamento serviram nas forças armadas; durante a guerra do Vietnam, a impopularidade do conflito e a facilidade de se evadir o serviço militar fizeram com que essa participação caísse para apenas 43%. Nos dias de hoje, mesmo que cada jovem americano quisesse ingressar no exército menos de 30% estariam capacitados para isso. Dos 21 milhões iniciais de jovens em idade militar cerca de 9,5 milhões não preencheriam uma qualificação acadêmica rudimentar, seja porque abandonaram o curso secundário seja porque, tipicamente, a maioria dos jovens americanos não consegue fazer somas complicadas sem uma calculadora. Dos restantes 11,5 milhões de jovens em idade militar, 7 milhões seriam desqualificados porque são muito gordos, ou porque têm histórico criminal ou porque têm tatuagens em suas mãos ou rostos. De acordo com o Sargento Haney, cerca de metade dos estudantes secundaristas do Condado de Clayton, na Geórgia, são tatuados em um ou outro desses locais; de acordo com seu chefe, o tenente-coronel Tony Parilli, o maior dos problemas é que, simplesmente, "a América está obesa". 

Rejeitado com desdém pela elite

Isso deixa 4,5 milhões de jovens americanos elegíveis para o  serviço militar, dos quais 390.000 estão inclinados ou dispostos a isso desde que não sejam absorvidos por uma universidade ou uma empresa privada, o que tende a acontecer com os melhores deles. Na realidade, o mantra favorito dos recrutadores do exército de que estão competindo com a Microsoft e o Google [para atrair jovens] não é de fato verdadeiro. Com a exceção anual de umas poucas centenas de filhos e filhas de oficiais da reserva, a elite americana tem rejeitado há tempo o serviço militar. Bem menos de 10% dos recrutas do exército têm grau universitário; quase a metade pertence a uma minoria étnica. 

O grupo de recrutas potenciais é demasiado pequeno para satisfazer as necessidades militares dos EUA, mesmo tendo estas encolhido, especialmente, como agora, quando a taxa de desemprego cai para menos de 6%. Isso deixa o exército, a menos favorecida das quatro forças militares, com o dilema de baixar seus padrões de recrutamento ou então atrair com benefícios generosos aqueles que não estão inclinados a prestar serviço militar. Depois de não conseguir atingir sua meta de recrutamento em 2005, um ano de alto nível de empregos e más notícias de Bagdá, o exército adotou zelosamente as duas estratégias. 

Para sustentar o que, por padrões históricos, era apenas um modesto surto no Iraque, cerca de 2% dos recrutas do exército foram aceitos apesar de não terem preenchido os requisitos acadêmicos e outros tipos de critérios. "Aceitamos um risco na qualidade", diz com uma careta o general  Snow, um veterano do Iraque. Enquanto isso, o custo dos bônus de adesão do exército [para incorporação de recrutas] inchou rapidamente de maneira insustentável para US$ 860 milhões somente em 2008. 

Essa cifra decresceu desde então, como parte de um esforço mais amplo de controlar os custos de pessoal, que consomem cerca de um quarto do orçamento de defesa dos EUA. Ainda assim, os restantes "adoçantes" usados pelo exército são ainda generosos: os pagamentos e concessões/compensações feitos pelo exército aumentaram em 90% desde o ano 2000. Fazendo uma mis-en-scène no posto de recrutamento do sargento Haney, o autor deste artigo se apresentou como alguém sem objetivos que deixou a escola e perguntou o que o exército poderia lhe oferecer. Além do usual cama, comida e seguro médico, foi-lhe dito que receberia US$ 78.000 em taxas universitárias, algumas das quais poderiam sr transferidas para um parente próximo; treinamento profissional, incluindo 46 tipos de empregos/atividades que ainda oferecem um gordo bônus de adesão; e aconselhamento sobre carreiras pós serviço militar. O exército poderia talvez ignorar também a contravenção com drogas na juventude que o autor, em sua encenação, admitiu ter cometido? O sargento Fred Pedro achou que sim. 

É uma boa oferta, especialmente quando contraposta aos empregos ruins e à estagnação salarial que prevalecem entre os americanos a quem ela é basicamente dirigida. O fato de que o exército esteja enfrentando esse tipo de problema para se vender à população é em parte uma prova dos efeitos sobre a opinião pública de suas guerras recentes. Em três décadas após a retirada dos EUA do Vietnam em 1973, o exército lutou uma dezena de pequenas guerras e um grande conflito, a primeira guerra do Golfo, no qual sofreu apenas uma poucas centenas de perdas humanas no total. Mesmo quando os americanos cresceram separados de seus soldados, portanto, eles foram também encorajados a esquecer que uma guerra geralmente acarreta matança em ambos os lados. 

Nesse contexto alegre e despreocupado, os 5.366 americanos mortos em combate e as dezenas de milhares de feridos no Iraque e no Afeganistão surgiram como um choque terrível. A maioria dos jovens americanos associam o exército com "voltar para casa em pedaços, física, mental e emocionalmente", diz James Ortiz, diretor de marketing do exército. Quase cada participante da classe de jornalismo da escola secundária D.M. Therrell High School em Atlanta concorda com isso: "Eu poderia ingressar [no exército] se não houver outra opção, mas eu simplesmente não gosto da violência [lá]", disse nervosamente Mayowa, de 16 anos. 

Décadas de propaganda do exército com foco no dinheiro para universidade e outros benefícios do serviço militar provavelmente contribuíram para o mal-entendido em relação a essa força militar. "Os americanos não entendem o que é o exército, por isso não o valorizam", diz Ortiz. Uma campanha de marketing lançada no ano passado, Empreendimento Exército, muda o foco, enfatizando os altos valores e os bons trabalho que o exército busca disseminar. Entretanto, será preciso mais do que isso para fazer com que americanos voltem para uma vida que muitos consideram incompatível com uma vida moderna fragmentada, cética e irreverente. Além disso, é também provável que na próxima vez em que o exército precisar atuar isso se dê numa guerra muito mais sangrenta do que as guerras mais recentes. A maior vantagem dos EUA no campo de batalha nas últimas décadas, seu domínio de armas teleguiadas de precisão, está minguando na medida em que tais armas se tornam amplamente disponíveis até para grupos militantes maiores, como o Hamas e o Hezbollah. 

O resultado é que os EUA podem tornar-se incapazes, dentro de limites de custos razoáveis e sem restabelecer o serviço militar obrigatório, de mobilizar o exército (muito maior) de que poderá necessitar para tais guerras. "Poderíamos colocar em campo a força de que necessitamos?", pergunta Andrew Krepinevich, do Centro de Avaliações Estratégicas e Orçamentárias. Provavelmente, não: "O risco é que nosso desejo de convocar apenas aqueles que estejam dispostos a ingressar no exército está nos alijando de certos tipos de operações militares".

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[A projeção de gastos militares dos EUA nas despesas discricionárias (despesas que permitem ao gestor público flexibilidade, tanto no momento de elaboração do orçamento quanto na sua execução) de 2015 foi de US$ 598,5 bilhões de dólares, equivalentes a 54% de todas as despesas discricionárias do governo federal (US$ 1,11 trilhão).]




terça-feira, 27 de outubro de 2015

Ao cumprimentar alguém, onde você pode tocá-lo(a)? A Universidade de Oxford criou um "mapa de aceitabilidade"

[O ato de cumprimentar alguém está longe de ser algo trivial e é preciso estar atento a certas regras de etiqueta, não só entre estranhos de um mesmo país mas principalmente quando se está em um país estrangeiro.  O artigo traduzido abaixo, de Sarah Knapton, Editora de Ciências do jornal britânico The Telegraph, aborda uma pesquisa interessante da Universidade de Oxford sobre esse tema. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade. Cabe registrar a enorme disposição e recursos financeiros que certas instituições em países desenvolvidos têm para fazer pesquisas que nos parecem inusitadas, e de importância secundária.]

Um estudo recente que mostra onde as pessoas se sentem confortáveis para serem tocadas (quando cumprimentadas) concluiu que desconhecidos devem se limitar a apertar as mãos


Michelle Obama quase provocou um incidente diplomático ao abraçar a Rainha - (Foto: EPA) 

É um dilema social familiar. Você encontra um desconhecido pela  primeira vez e em uma fração de segundo tem que decidir se lhe oferece um frio aperto de mão, ou  arrisca uma ofensa beijando-lhe o rosto.

Porém, uma pesquisa recente da Universidade de Oxford concluiu que errar pelo lado da precaução pode ser a melhor maneira para deixar as pessoas à vontade.

O maior estudo já realizado sobre contato físico sugere que a maioria das pessoas possui uma reticência latente quanto a ser tocada por um desconhecido em qualquer parte do corpo, exceto na mão. 

Ultimamente, virou moda quando se é apresentado a alguém beijá-lo(a) em um ou até em ambos os lados do rosto. Mas essa pesquisa recente indica que, na realidade, as pessoas se sentem desconfortáveis por um grau de intimidade tão alto como esse vindo de um desconhecido.

O psicólogo evolucionista Prof. Robin Dunbar, que chefiou o estudo, disse que embora o ato de beijar quando da apresentação  entre pessoas seja agora socialmente aceitável, pessoas frequentemente usam uma manobra de utilizar o braço para tornar essa prática menos perturbadora. "A maioria das pessoas colocará sua mão no braço da outra pessoa como um mecanismo de freio e para deixar que ela perceba que ele(a) não está a fim de mordê-lo(a)", disse ele. 

"Se você simplesmente se lança sobre alguém, acho que a maioria das pessoas ficará assustada. Nossa interpretação do contato depende do contexto do relacionamento. Podemos sentir um contato em determinado local [do corpo] vindo de um parente ou de um amigo como um gesto confortante, enquanto que o mesmo gesto feito por um companheiro(a) pode ser mais prazeroso e vindo de um desconhecido seja completamente indesejável". 

"Acho que beijar um desconhecido no rosto vai ainda fazer muita gente se sentir desconfortável. Mas, na vida moderna isso se tornou tão convencional quanto um aperto de mão e, assim, não é considerado como um excesso de intimidade, especialmente quando a apresentação for feita por um amigo". 

Tocar-se é criticamente importante no relacionamento humano, e é considerado como uma herança das técnicas de limpeza mútua utilizadas por primatas, que as usam para criar laços sociais. 

Para verificar que tipo de contato as pessoas consideram aceitável, pesquisadores da Universidade de Oxford e da Universidade Aalto, da Finlândia, entrevistaram mais de 1.300 homens e mulheres de cinco países para destacar as áreas do corpo humano que eles permitiriam alguém tocar, desde seu(ua) companheiro(a) até um desconhecido. As respostas foram combinadas para criar um mapa que mostra, pela primeira vez, onde estão as zonas do corpo passíveis de contato para determinados relacionamentos e revela as áreas que estão rigidamente fora de alcance. 

Mãos fora - Um guia social para o contato 



[Na primeira linha: Código -- Confortável -- Inadequado -- Mulher -- Homem -- Zona proibida
Figuras, da esquerda para a direita -- Mulher: Companheiro - Amiga(o) -- Mãe -- Pai -- Irmã -- Irmão -- Tia -- Tio -- Prima(o) -- Conhecida(o) -- Desconhecido --- A relação é a mesma para o Homem]

Alguns resultados não surpreenderam, como o fato de as mulheres se sentirem geralmente mais confortáveis do que os homens quanto a receber um contato físico. Entretanto, houve algumas conclusões inesperadas, como a de que os homens são mais acessíveis a contato em sua genitália feito por uma mulher que conheceu casualmente do que feito por sua própria mãe [não sei o que de "inesperado" há nesta conclusão!]. Para as mulheres, entretanto, é completamente inaceitável ser tocada intimamente por alguém que não seja seu(ua) companheiro(a) ou sua mãe.

Inesperadamente, os italianos mostraram-se menos confortáveis com o contato físico do que os russos, enquanto que no geral os finlandeses foram os que se mostraram mais confortáveis quanto a isso.

O Prof. Dunbar disse que o aumento do relacionamento via redes sociais significa que as pessoas estão fazendo contato físico entre si com menos frequência, o que pode prejudicar os relacionamentos no longo prazo. "Mesmo numa era de comunicações por celulares e mídias sociais, o contato físico ainda é importante para estabelecer e manter os vínculos entre as pessoas", disse ele."Sabemos que se as pessoas não se vêem, a qualidade desse relacionamento diminui e seu melhor amigo será substituído simplesmente por um conhecido".

"A mídia social efetivamente desacelera esse declínio, mas não impede que um relacionamento se rompa. Você realmente precisa vê-los olho no olho".


O contato físico é um remanescente do nosso passado evolucionista - (Foto: Barcroft Media Ltd)

Os especialistas em etiqueta da Debrett's alertaram que idade e local podem ser também um fator ao decidir entre dar beijo(s) e apertar a mão.

"Pessoas mais velhas podem não querer ser beijadas de jeito algum, e mesmo que não se importem eles frequentemente esperam por um beijo apenas", recomendam esses especialistas. "Alguns homens agora beijam socialmente, mas beijar-se é raro entre as gerações mais velhas, no âmbito de profissões mais tradicionais e em áreas muito rurais. Um beijo de longe, sem qualquer contato físico, pode parecer rude ou impessoal mas pelo menos não é invasivo. O melhor é um leve contato físico, sem nenhum ruído".

Lucy Hume, uma porta-voz da Debrett's, disse: "Ao saudar um desconhecido, oferecer-se para apertar mãos é o gesto mais normal e é apropriado tanto para reuniões/encontros sociais quanto profissionais. Um aperto de mão nunca é visto como rude, e apresenta pouco risco de fazer com alguém se sinta desconfortável".

"O hábito de beijar socialmente, embora cada vez mais esteja superando o de apertar mãos, não é adequado em todas as situações e na maioria dos casos deve ser usado apenas entre amigos, e não em um primeiro encontro".

A pesquisadora Julia Suvilehto, da Universidade de Aalto, disse: "Os resultados indicam que o contato físico é um meio importante de manter as relações sociais. O mapa espacial de contatos está estreitamente associado com o prazer provocado pelo contato. Quanto maior o prazer causado pelo contato com uma área específica do corpo, mais seletivos nos tornamos para permitir que outras pessoas a toquem". 

A pesquisa foi publicada nos Proceedings of the National Academy of Sciences

[Cumprimentar pessoas se insere num conjunto de etiquetas e protocolos que precisam ser respeitados, sob risco de prejudicar irremediavelmente qualquer relacionamento, principalmente quando se trata de estrangeiros. Na China, por exemplo, certos cuidados são indispensáveis. Nos encontros formais, só se aperta a mão de uma mulher se ela tomar a iniciativa para isso. Ao receber o cartão de visita de um chinês, deve-se tomá-lo com as duas mãos, curvar ligeiramente a cabeça olhando fixamente em quem o deu e, depois, guardá-lo no bolso alto do paletó e jamais num bolso lateral.

A troca de presentes é tradicional em reuniões iniciais com chineses e exige muitos cuidados. O presente para o chefe da delegação chinesa tem que ser ostensivamente diferente dos outros presentes, em tamanho e qualidade. Deve-se evitar dar relógio a um chinês, porque as palavras relógio e morte têm um som muito parecido em mandarim. Os presentes não devem ser embrulhados de branco, porque o branco é sinal de luto na China. 

Numa reunião com um chinês jamais vire para ele a sola de seu sapato, isto é considerado uma ofensa imperdoável. Tampouco arrume a meia numa conversa com um chinês, porque o pé é considerado uma parte suja do corpo.]


sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Paris no tempo do Rei Sol

Quando passei o feriadão do 7 de setembro na deliciosa Pousada Alcobaça em Correas (RJ), encontrei lá um livro interessantíssimo: Paris no Tempo do Rei Sol (Jacques Wilhelm, Companhia das Letras, 1988). O título original do livro em francês é muito mais ilustrativo de seu conteúdo: La vie quotidienne des parisiens au temps du Roi-Soleil (1660-1715) (A vida quotidiana dos parisienses no tempo do Rei Sol). Evidentemente, o livro está esgotado e só é encontrado em sebos -- comprei depois o meu exemplar no site Estante Virtual (www.estantevirtual.com.br). Reproduzirei a seguir alguns trechos do livro. O que estiver entre colchetes é de minha responsabilidade.

PARIS NO TEMPO DO REI SOL

"A partir de 1682, Luís XIV fez de Versalhes sua residência principal. Que o rei não gostava da capital, comprova-o sua decisão de deixá-la. Segundo Saint-Simon, o grande cronista da última fase de seu reinado, "ele nunca esqueceu as guerras da Paris de sua juventude, e ainda adotou a máxima de jamais morar na cidade e de só vir aqui, sem nunca pernoitar, para ocasiões muito raras e como uma espécie de graça". Assim, a vida cotidiana dos parisienses no tempo do Rei Sol é a vida cotidiana dos parisienses sem seu rei. 

No entanto, seu senso de grandeza o fará desejar que a capital não sofra com sua ausência. Sob o ministério de Colbert [Jean-Baptiste Colbert, político francês de grande influência no reinado de Luís XIV, de quem foi ministro das Finanças] e de seus sucessores, Paris foi sendo continuamente embelezada com esplêndidos monumentos conjuntos urbanos, formando como que uma coroa ao redor da cidade, sem que os antigos bairros do centro fossem tocados.

É nessa Paris, dividida entre o arcaico e o novo e sem a presença física do rei, que coabitam a grande e média burguesia, os artesãos e a arraia-miúda. É nela que o brilhante comediógrafo Molière casa-se, aos quarenta, com uma jovem de vinte anos, Armande Béjart, irmã de sua amante, Madeleine, provocando a ira de boa parte da Igreja, que o acusava de incesto: Armande seria, na verdade, sua própria filha. Sobre isso o rei vem pôr panos quentes, ao aceitar ser padrinho do pequeno Louis, primeiro filho do casal. 

É nessa mesma  Paris que surgem, em 1669, os primeiros cafés, postos em voga pela embaixada turca. Data dessa época o Café Procope, que existe até hoje transformado em restaurante, e que, instalado  em duas lojas contíguas, fascinava os passantes. A reputação dos cafés, porém, não era das melhores: neles os homens não só fumavam e jogavam, mas, o que era pior, a preciosa rubiácea, segundo os médicos, os tornava estéreis. 

É nessa Paris, enfim, que um nobre, quando enviado como prisioneiro à Bastilha, podia não só desfrutar de um quarto espaçoso e aquecido e de refeições abundantes e saborosas, com duas garrafas de vinho para o almoço, como, inclusive, encomendar mediante pagamento essas refeições de fora e até mesmo alojar os criados num segundo quarto. É o pitoresco desses costumes e histórias descritos no livro de Jacques Wilhelm que o torna um exemplo perfeito da máxima horacional do "ensinar  divertindo". 

(...) Sob Luís XIV, Versalhes, criação artificial, é aos olhos da Europa a brilhante vitrine da França. No entanto, feitas as contas, essa mudança da corte e do governo a dezesseis quilômetros de Paris arrastou pouca gente. Alguns milhares de cortesãos, homens e mulheres, os ministros e suas equipes, então pouco abundantes. Em torno deles, a multidão de servidores, oerários e soldados empregados no castelo, do qual tudo depende. 

(...) Com seus quatrocentos a quinhentos mil habitantes, Paris continua a ser a capital, e para ela Colbert teve durante muito tempo a esperança de reconduzir seu senhor. Em 1663, numa carta famosa, ele o censura por preferir Versalhes a Paris, onde, aliás, ministros e cortesãos mantiveram sua residência principal, ainda que os mais ricos entre eles em breve mandassem construir em Versalhes palacetes que praticamente desapareceram e sobre os quais não se sabe sabe quase nada, exceto que tinham muito pouca importância.

Distribuição da população

O aspecto geral de Paris durante a segunda metade do século XVIInos é bastante familiar, graças a vistas em perspectiva e plantas. Nas primeiras, dominando o amontoado anônimo das  casas, as fortalezas herdadas da Idade Média: o Grand e o Petit Châtelet, a Torre de Nestle, a Bastilha, que constituíam outrora os pontos fortes das defesas de Paris, e o Torreão do Templo, enfim destacam-se contra o céu. Os campanários das igrejas, as torres de Notre-Dame, os domos copiados da Itália, cada vez mais altos no decorrer do século, completam a silhueta da cidade, acima da massa horizontal dos castelos -- o Louvre, as Tulherias e o Luxembourg. Ali a colina de Montmartre ganha ares de montanha.

(...) Paris era também dividida em bairros, que, de dezessete na época de Henrique III [quarto filho do rei Henrique II e da rainha Catarina de Médici, Henrique III foi rei da Polônia e Grão-Duque da Lituânia entre 1573 e 1575 e também rei da França de 1574 até sua morte em 1589] chegarão a vinte em 1702. (...) Quando Louis Hauteccoeur escreve que em `661 "Paris ainda era uma cidade medieval", essa expressão aplica-se perfeitamente ao núcleo central. 

A divisão de Paris em três partes -- Cité, Universidade e Cidade -- ainda usada em 1652, no título do plano de Gomboust, e em 1690, no Dicionário de Furetière, comprova essas
sobrevivências.

A Cité

Podia-se dividir a ilha da Cité em três partes. A leste, a catedral, em cuja abside, do lado norte, o claustro de Notre-Dame, fechado por tês portas, agrupava em torno de cinco ruas as casas de cinquenta e um cônegos, sendo que as mais bonitas possuíam jardins com terraços voltados para o pequeno braço de rio; ao sul  elevava-se o antigo Palácio dos Bispos, com eu torreão, transformado em arcebispado em 1622.

(...) O antigo Palácio dos Reis continuava a ser a sede oficial da realeza. Todo o espaço ocupado pelo nosso Palácio da Justiça formava, tal como hoje, uma cidade fechada onde incontáveis prédios abrigavam os principais organismos judiciários e administrativos do reino (...).

(...) Depois do reinado de Henrique IV, a extremidade ocidental da ilha é ocupada pela Place Dauphine, de forma triangular, com casas idênticas que ofereciam a particularidade de possuírem duas fachadas, uma delas voltadas para um braço do rio. Elas  eram divididasem apartamentos de dimensões muito modestas, onde moravam detentores de ofícios de categoria e alguns ourives cujos luxuosos estabelecimentos alinhavam-se no "quai" [cais] a  que deixaram seu nome. (...)

A Universidade

A Universidade ainda era cercada pela muralha erguida por Filipe Augusto [Filipe II, também chamado de "Dádiva de Deus" ou Filipe Augusto, foi rei da França de 1180 até sua morte em 1223], onde determinadas partes e algumas torres e portas continuavam de pé, até a metade do século, antes de serem derrubadas para tapar os  antigos fossos de que diversas ruas guardarão lembrança: ruas des Fossés-Saint-Berbard, Saint-Victor, Saint-Marcel, Saint-Michel, des Fossés-Monsieur-le-Prince e Saint-Germain-des-Prés. O coração da margem esquerda era inteiramente constituído pelo Quartier Latin. (...)

Religiosos, professores das quatro faculdade, estudantes dos cinquenta colégios ali estabelecidos, que, à falta de acomodações, como era comum acontecer, moravam nas casas das vizinhanças, formavam uma grande população masculina, cercada evidentemente pelos moradores do bairro, que alugavam quartos aos "estudantes", e pelos membros dos ofícios necessários ao dia a dia. (...)

(...) Fora dos limites da  Universidade, o povoamento da margem esquerda prosseguira desde o início do século XVII em direção ao sul, para além da antiga muralha de Filipe Augusto, ao longo da Rue Mouffetard, do Faubourg-Saint-Jacques e das ruas vizinhas. (...)

(...) Tapeçarias, móveis de madeira dourada, mesas de marchetaria de pedras semipreciosas e peças de ourivesaria mobiliavam as residências reais ou eram oferecidos aos soberanos estrangeiros e a seus embaixadores. A maioria dos tapeceiros era flamenga; os marmoristas, italianos. Eles moravam na própria manufatura ou nos arredores, e os católicos eram paroquianos de Sainte-Hippolyte, uma igreja bastante modesta, onde se pregava em flamengo.

(...) A célebre Abadia de Saint-Germain-des-Prés ainda constituía, em pleno reinado de Luís XIV, uma pequena cidade dentro da cidade, com seus magníficos prédios medievais e o palácio abacial do fim do século XVI cercados por muros, centro de uma imensa propriedade sobre a qual ela manteve, até 1674, os direitos de alta e baixa justiça, chegando mesmo a  preservá-los após essa data no interior das muralhas. A feira  de Saint-Germain, ao lado da Igreja de Saint-Sulpice, era então uma das possessões mais rentáveis da abadia. (...)

A Cidade

Quando se ia da margem esquerda para a direita através da Île de la Cité, talvez passasse despercebido o fato de se se transpor os dois braços do rio, pois à exceção da Pont-Neuf, todas as outras pontes eram cobertas por duas fileiras de casas. 

Quem morava nessascasas idênticas de quatro ou cinco pavimentos? Segundo Sauval [Henri Sauval, advogado e historiador francês (1623-1676), autor de "Histoire et recherches des antiquités de la ville de Paris" (História e pesquisas das antiguidades da cidade de Paris), 1724], já na metade do século XVII não havia, desde há muito tempo, nenhuma loja de cambista na Pont au Change (Ponte do Câmbio): "Agora ela é habitada por todos os  tipos de comerciantes e artesãos". (...)

(...) A Rue Saint-Denis, que em 1716, segundo Saugrain, é a mais bonita da capital, margeada por muitas casas novas, agrupava diferentes atividades. (...)

(...) A Place des Halles e as ruas vizinhas formavam, com há alguns anos ainda, o grande mercado de produtos alimentícios de Paris. (...)

(...) O grande eixo leste-oeste era a Rue Saint-Honoré, onde se alinhavam as lojas dos mercadores que não fabricavam nada, mas vendiam os mais diversos produtos e, em particular, os mais belos móveis e objetos de arte, jóias, conchas e curiosidades exóticas. (...)

(...) Durante o reinado de Luís XIV, o Louvre e as  Tulherias são as duas residências reais, às margens do Sena; a segunda contribuiu para estender a expansão da Cidade na direção oeste. Mas, em 1666 o rei abandonou o Louvre. Durante  a construção da Cour Carrée e da colunata ele teve de se instalar nas Tulherias -- onde as temporadas anuais da corte serão, aliás, de curta duração, até sua transferência para Saint-Germain e Vincennes e depois o estabelecimento definitivo em Versalhes, em 1682. (...)

Os parisienses

(...) Entre as diferentes categorias que compunham a população parisiense, é preciso destacar primeiro os membros da Igreja, regulares ou seculares, que, embora pertençam aos mais diversos meios sociais, gozavam de uma autoridade e de um prestígio excepcionais enquanto representantes de Deus. Mesmo de origem modesta, os "colarinhos pequenos", desde que tivessem um mínimo de instrução, eram acolhidos de braços abertos nos salões; os curas das paróquias, não importa sua origem, eram personagens importantes; o arcebispo, ele mesmo duque e par, seguia imediatamente depois dos príncipes de sangue, do reitor da universidade, que figuravam no mesmo nível que ele. 

(...) A pequena nobreza era bem menos considerada em Paris do que a alta magistratura, que detinha a fortuna, e bem menos"recebida" nas grandes residências. (...)

(...) A baixa magistratura era constituída pelos que haviam adquirido ofícios secundários, colocados à venda para atenuar a penúria  do estado. Esses "oficiais", como eram chamados, formavam no final do século um grupo considerável. (...)

(...) São os"burgueses de Paris" -- embora muitas vezes esse termo pareça aplicar-se, nas escrituras, aos que auferiam pequenas rendas sem nenhuma outra profissão -- que Molière coloca em cena. (...)

(...) Lacaios e criadas (pois o termo "doméstico" também pode designar um duque e par, se ele serve ao rei ou à Mademoiselle) formam uma categoria particular quase apartada de suas origens, pois ela se mistura, com mais ou menos intimidade, à vida de seus senhores. Entretanto, não é o caso dos que trabalham nas casas demédicos ou pequenos burgueses, comerciantes e artesãos.

A arraia-miúda, a "canalha", como dizem os cortesãos, era constituída pelos pequenos vendedores ambulantes, carregadores e biscateiros,para quem a rua ou os portos representam o campo de atividade. (...)

O Sena e suas margens

(...) Sob o Ancien Régime, ao contrário, o rio era o cenário de uma intensa atividade, para o melhor e para o pior. (...) A vista tanto tanto para o grande como para o pequeno barco era obstruída pelas casas construídas sobre as setes pontes que uniam as margens através das duas ilhas. (...) O pequeno reservatório que abrigava a bomba Samaritaine ficava preso a uma das pilastras da Pont-Neuf; a bomba de Notre-Dama, presa à ponte homônima. Vários moinhos flutuantes permaneciam atracados no meio do Sena em frente ao Quai Mégisserie.

(...) Do rio nascera Lutécia [antigo nome de Paris, dado pelos romanos à cidade] e era ainda o rio que, no século XVII, constituía a principal fonte de vida da capital. Os portos, do Arsenal ao Louvre, asseguravam uma parte essencial do abastecimento. Ali se desembarcava tudo o que era pesado ou volumoso.

(...) Em vários locais, declives suaves permitiam que cavalos, cachorros e mesmo o gado fossem levados para se banhar e matar a sede no Sena. Um quadro conservado no Museu Carnavalet mostra um grupo de banhistas que nadam e mergulham em frente ao Louvre.

(...) Certamente o Sena era bastante sujo; ali desembocavam os esgotos que recolhiam os detritos das valetas das ruas. Mas, pelo menos, ali não se despejavam produtos químicos!

(...)

Ao longo das ruas

Em 1660 contavam-se seiscentas e cinquenta e cinco ruas em Paris, número que não significa grande coisa, já que se pode citar a título de exemplo a Rue du Temple, então dividida em quatro ruas sucessivas. À exceção da  Rue Saint-Antoine, cuja largura era excepcional e que, diante da Igreja de Saint-Louis dos jesuítas, formava uma espécie de grande adro, as mais importantes vias de circulação (ruas Saint-Denis, Saint-Martin e Saint-Honoré na margem direita e ruas Saint-Jacques e de la Harpe na margem esquerda) mediam de cinco a oito metros de largura. As outras eram mais estreitas. (...)

(...) Assim, a ilha da Cité, o centro da margem direita e toda a Universidade haviam conservado, no começo do reinado de Luís XIV, seu traçado medieval, ainda que alguns edifícios tivessem sido reconstruídos. 

(...) Felizmente as ruas não tinham calçadas, o que proporcionava às carruagens e carroças o espaço necessário para se cruzarem, mas as balizas impediam que passassem rente aos muros. Ainda em 1660, apenas as ruas principais e as praças eram pavimentadas.

(...) Em 1668, os comissários do Châtelet constatavam que os proprietários das casas haviam se isentado, apesar dos regulamentos, de fazer fossas e latrinas, ainda que alojassem de vinte a vinte e cinco famílias. Os ribeirinhos, com toda a tranquilidade, jogavam o lixo no escoadouro e o conteúdo de seus vasos pela janela, gritando entretanto: "Olha a água!" -- grito herdado da Idade Média. Multiplicaram-se as ordenações e, às custas dos proprietários, organizou-se com muita dificuldade um serviço de carroças que passava toda manhã de casa em casa. Seu conteúdo era levado para as fossas localizadas fora da cidade, enquanto as águas usadas iam para os esgotos, que em Paris, em 1663, chegavam a cinco mil cento e quarenta e oito toesas (cerca de dez quilômetros), sendo mil e vinte e sete cobertas. Os outros ficavam a céu aberto, como o "grande esgoto", antigo leito do riacho de Ménilmontant, que desde as Filles-du-Calvaire e Chaillot empestava as imediações da margem direita. Pesquisas feitas na época mostravam que quase todas as embocaduras estavam obstruídas por imundícies e que as águas estagnadas voltavam para as ruas. Todos os autores desse tempo descreveram o mau cheiro e aquela "lama de Paris", que quando manchava as roupas, "só desaparecia junto com a peça". 

(...)

A água

De fato, havia pouca água no quintal de muitas casas, e sua manutenção tornava-se ainda mais indispensável à medida que, com a lama da rua, ocorriam infiltrações que podiam tornar a água insalubre. Os que não dispunham de poço iam às fontes públicas, às quais La Reynie [Gabriel Nicolas de la Reynie (1625-1709) é considerado o fundador da primeira força policial moderna] deu toda a atenção, mandando colocar torneiras que limitavam um pouco a perda dessa água tão preciosa, que até então fluía ininterruptamente, e fazendo construir uma nova bomba na Pont Notre-Dame a fim de aumentar a vazão. Mas uma grande parte da água conduzida pelos aquedutos era confiscada em proveito das comunidades religiosas ou dos palácios dos grandes senhores, e a maioria dos parisienses devia se contentar com o que sobrava. 

Assim, havia aglomeração nas fontes, que em certos cruzamentos constituíam centros de animação e, supõe-se, de falatórios e mexericos. Fora preciso uma ordenação contra a corporação dos carregadores e carregadoras de água, que pretendiam impedir os burgueses de utilizar as fontes para forçá-los a recorrer a seus serviços. Na verdade, a vantagem das fontes era fornecer água corrente, rara naquela época. Delamare, em seu "Traité de la police" [Nicolas Delamare (1639-1723), magistrado que ficou célebre por esta obra, a primeira publicada sobre o assunto], conta que em 1703, na bica por onde escoava água das fontes de um jardim na Rue Garancière, em frente de uma das portas de Saint-Sulpice, mulheres e moças ensaboam e lavam no calçamento, "atrapalhando a via pública e correndo o risco de serem atropeladas pelos veículos; além do que, um grande número de criados se detém perto das ditas lavadeiras e mantém com elas conversas que ferem o pudor e o respeito à igreja, de cuja entrada podem inclusive ser ouvidas, para grande escândalo dos eclesiásticos e paroquianos".

(...)

Os pedestres

Os pedestres eram numerosos, pouca gente possuía uma montaria ou um veículo.  Quase todas as classes sociais estavam representadas entre os que andavam a pé. Mestre Claude Ferry, na obra "Les devoirs des maîtres e des domestiques" (Os deveres dos senhores e dos domésticos), publicada em 1668, revela que  o decoro, se não permite a um grande senhor andar sozinho e a pé pela cidade, a isso entretanto o autoriza se ele vai acompanhado por ajguns domésticos, sendo o tamanho da comitiva proporcional à sua classe. (...) Se uma mulher de alta posição social tivesse o capricho de andar apé pelas ruas, era preciso que fosse escoltada por uma dama de companhia ou por uma criada, em geral uma moça pobre de boa família, e, naturalmente, a uma distância conveniente, por pelo menos um criado.

(...)

A grande maioria da população parisiense se vestia com cores sóbrias ou pálidas, preto, marrom ou cinza. As pessoas luxuosamente vestidas circulavam quase sempre em carruagens, e não se podia distinguir entre elas o grande senhor do coletor de impostos.

(...)

As religiosas raramente andavam pelas ruas, à exceção das irmãs de São Vicente de Paulo, que usavam grandes coifas engomadas, e das irmãs de caridade, com coifas brancas simples e  hábitos cinza, que visitavam os doentes em suas casas e podiam ser encontradas sobretudo nos bairros mais pobres.

(...)

Viam-se também pelas ruas, e sobretudo nos mercados, camponeses e camponesas dos arredores de Paris, que vinham vender num carrinho os produtos que cultivavam nas hortas e nos campos. Entre eles, alguns usavam roupas rústicas; outros, ao contrário, a moda da cidade. Mas os costumes regionais ainda não existiam naquela época, pelo menos na Île-de-France.

Os uniformes militares, de cores vivas, sobressaíam-se na multidão. Em primeiro lugar, estavam geralmente os das tropas da Casa do Rei, mosqueteiros de duas companhias chamados de "cinzas" ou "pretos", conforme a cor de seus cavalos, mas que usavam todos a casaca azul com galões de  ouro e prata, segundo a companhia, e enfeitada na frente e atrás com uma grande cruz com flores-de-lis de veludo branco.

(...)

A imensa multidão dos lacaios usava libré, em geral marrom ou preta, que classificava seus amos como médios burgueses e grandes comerciantes. 

(...)

Animais e veículos

Mas ainda era preciso acrescentar os animais e os veículos. Atravessando as ruas para serem levados aos bebedouros do Sena ou aos matadouros, os rebanhos de bois e carneiros criavam uma grande confusão. Havia também alguns jumentos, entre os quais se destacavam os dos monges do convento [sic] dos trinitários, que por essa razão eram irreverentemente chamados de "irmãos burricos". Aos cavalos de sela e de tiro -- nas estrebarias parisienses havia então de dez a  quinze mil deles -- juntavam-se os que diariamente chegavam do campo trazendo os víveres. 

Por outro lado, uma ordenação de 1667 proibiu os parisienses de criar porcos, coelhos, galinhas e pombos em casa, não se podendo afirmar que ela tenha sido cumprida.

A cidade velha, concebida outrora para pedestres e cavaleiros,  já não era proporcional a um tráfego que aumentava constantemente. "Hoje há mais carruagens de seis cavalos em Paris do que mulas há cem anos", escreve Fénelon em seu "Examen de conscience sur les devoirs de la royauté" (Exame de consciência sobre os deveres da realeza) [François de Salignac de la Mothe-Fénelon, chamado de Fénelon, (1651-1715), era um homem da Igreja, teólogo e escritor].

De fato, as mulas estavam se tornando raras e já não se viam os circunspectos magistrados usando essas montarias para ir ao Palais de Justice. Em compensação, os cavalos eram utilizados por muita gente, militares sobretudo, e também civis, mas parece que nunca pelas mulheres. 

Para percorrer distâncias curtas, as mulheres podiam recorrer às cadeirinhas, utilizando as de sua propriedade e os serviços de seus lacaios ou alugando uma em qualquer cruzamento. Por volta de 1640, inventara-se a "vinaigrette" (assim chamada pela semelhança com o carrinho usado pelos fabricantes de vinagre), umacadeirasobre rodas puxada por um homem e, às vezes, empurrada por uma mulher ou uma criança. A liteira era usada para o transporte de doentes a quem se desejasse poupar dos solavancos do calçamento. 

(...)

As carroças de lixo instituídas em 1666, os carrinhos de transporte de lenha e provisões de todo gênero, as carroças que levavam burgueses e artesãos aos campos, as pesadas zorras puxadas por filas de cavalos, que transportavam pedras de cantaria, atravancavam as ruas, principalmente nas primeiras horas da manhã. (...)

Paris à noite

Evidentemente poucas pessoas cometiam a imprudência de se aventurar sozinhas, à noite, pelas ruas. Aliás, um regulamento policial exigia que as casas fossem fechadas à chave,no inverno às oito horas e às dez durante o verão. Essa recomendação se aplicava também aos cabarés e às tavernas. Os artesãos e os biscateiros, que se levantavam ao raiar  do dia, deitavam-se cedo para economizar velas. 

As únicas pessoas que adentravam em plena  noite eram praticamente as que dispunham de uma carruagem e de uma escolta. Em 1666, o padre Caraffa havia obtido um privilégio para instituir porta-lampiões, que eram encontrados em determinados pontos da cidade e acompanhavam as pessoas até seu domicílio. Não parece que essa iniciativa tenha alcançado grande sucesso. 

A ausência de luz sempre favorecera atentados de todos os gêneros. Por isso, em 1667 a iluminação pública foi uma extraordinária inovação.

No início, providenciou-se a fabricação de mil lampiões de um modelo que consumiu muito tempo de discussões. Os lampiões ficavam acesos desde o crepúsculo até depois da meia-noite (tempo de duração da vela), inicialmente de novembro a fevereiro, e depois, a partir de 1671, até o final de março (em Londres eles só eram acesos em noites sem lua). (...)

(...) Alguns jovens fidalgos, ligeiramente desencaminhados, também colocaram em moda o deplorável costume de insultar e espancar a ronda. O rei ordenou que fossem punidos, mas, no final das contas, sempre deu mostras de fraqueza em relação a eles.

Em Paris, a vida noturna se restringia às casas particulares e aos prostíbulos, como vinha acontecendo poucos anos atrás nas cidades do interior. Aliás, isso só devia ocorrer nas classes abastadas, pois não é muito fácil imaginar os médios burgueses daquela época acordados até altas horas. Os oficiais e os soldados, por outro lado, que circulavam em grupos sempre armados, corriam menos perigo do que ofereciam aos outros. (...)

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PS - O que está resumido acima mal cobre 65 das 262 páginas do livro, cuja leitura recomendo fortemente.






segunda-feira, 19 de outubro de 2015

20 anos sem Tom Jobim (VI)

Ver postagem anterior.

Frevo de Orfeu (1959)

Tom Jobim & Vinicius de Moraes -- Intérprete: Elis Regina



Vem 
Vamos dançar ao sol 
Vem 
Que a banda vai passar 
Vem 
Ouvir o toque dos clarins 
Anunciando o carnaval 
E vão brilhando os seus metais 
Por entre cores mil 
Verde mar, céu de anil 
Nunca se viu tanta beleza 
Ai, meu Deus 
Que lindo o meu Brasil 


Garoto (1959)

Tom Jobim (música instrumental) -- Intérprete: Raphael Rabello




Meditação (1959)

Tom Jobim & Newton Mendonça -- Intérpretes: João Gilberto & Caetano Veloso




Quem acreditou
No amor, no sorriso, na flor
Então sonhou, sonhou...
E perdeu a paz
O amor, o sorriso e a flor
Se transformam depressa demais

Quem, no coração
Abrigou a tristeza de ver
Tudo isto se perder
E, na solidão
Procurou um caminho e seguiu
Já descrente de um dia feliz

Quem chorou, chorou
E tanto que seu pranto já secou

Quem depois voltou
Ao amor, ao sorriso e à flor
Então tudo encontrou
Pois, a própria dor
Revelou o caminho do amor
E a tristeza acabou 



O nosso amor (1959)

Tom Jobim & Vinicius de Moraes -- Intérpretes: Celso Moreira (guitarrista mineiro) com Milton Ramos no contrabaixo elétrico e "Neném" Esdra Ferreira na bateria (só instrumental)




Samba de uma nota só (1959)

Tom Jobim & Newton Mendonça -- Intérpretes: Tom Jobim & coro (festival de Jazz em Montreal, 1986)



Eis aqui este sambinha
Feito numa nota só
Outras notas vão entrar
Mas a base é uma só
Esta outra é consequência
Do que acabo de dizer
Como eu sou a consequência
Inevitável de você

Quanta gente existe por aí
Que fala tanto e não diz nada
Ou quase nada
Já me utilizei de toda a escala
E no final não sobrou nada
Não deu em nada

E voltei pra minha nota
Como eu volto pra você
Vou cantar em uma nota
Como eu gosto de você
E quem quer todas as notas
Ré, mi, fá, sol, lá, si, dó
Fica sempre sem nenhuma
Fique numa nota só