terça-feira, 19 de julho de 2016

Após Nice, não dêem ao Estado Islâmico o que ele está pedindo

[Traduzo a seguir artigo de Mutaza Hussain, publicado no site The Intercept. Um detalhe interessante é o autor ser de origem árabe. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]

Não se sabe ainda muito sobre Mohamed Lahouaiej Bouhlel, o francês de 31 anos que a polícia diz ser o responsável por um ato horrendo de assassinato em massa na noite passada [o artigo foi publicado em 15/7] na cidade de Nice, sul da França. Após a matança, o presidente francês François Hollande classificou o ataque de "terrorismo islâmico", ligado ao grupo militante do Estado Islâmico (EI).  Partidários do EI online deram eco a essa afirmação, reivindicando a responsabilidade pelo ataque como outro golpe contra seus inimigos na Europa ocidental. 

Enquanto o motivo do ataque ainda está sob investigação, vale examinar porquê o EI está tão ansioso para reivindicar tal incidente como de sua autoria. Superficialmente, jogar um caminhão contra uma multidão reunida para assistir a uma queima de fogos na data da queda da Bastilha parece um ato de puro niilismo. Nenhum objetivo militar foi atingido. Relatórios iniciais sugerem que a matança pode levar aos ataques franceses aos territórios do EI já em diminuição no Iraque e na Síria. E muçulmanos franceses, muitos deles supostamente mortos no ataque, provavelmente enfrentarão represálias de segurança e reação popular de um público irritado e receoso na esteira de outro incompreensível ato de assassinato em massa.

Mas, os comunicados do EI e a história mostram que um resultado como esse é exatamente o que o EI busca. Na edição de fevereiro de 2015 de sua revista online Dabiq, o grupo pediu por atos de violência no ocidente que "eliminariam a zona cinzenta" por via de semear a divisão e criar um conflito insolúvel nas sociedades ocidentais nentre muçulmanos e não-muçulmanos. Um tal conflito forçariam os muçulmanos que vivem no ocidente a "ou abandonar a religião ... ou migrar para o Estado Islâmico, escapando assim da perseguição dos governos e cidadãos que a eles se opõem".  

Essa estratégia de usar a violência para forçar divisões na sociedade imita a tática do grupo no Iraque, onde usou ataques provocativos contra a população xiita para, deliberadamente, deflagrar um conflito sectário, que continua enfurecido até hoje.

Pode ser que o EI não tivesse linha de comunicação direta com Bouhlel. Diferentemente de muitos outros agressores, ele não havia estado no radar dos serviços de segurança franceses. Não há indícios de que tenha recebido treinamento ou viajado para território do EI. Informações iniciais de quem o conhecia mostram o retrato de um homem deprimido e irritado, que "passou muito de seu tempo em um bar, onde jogava e bebia". Tinha um histórico de crimes triviais, incluindo uma prisão em maio deste ano após um incidente de violência no trânsito. 

Mas, de certo modo, esses detalhes não importam. O modelo de terrorismo do EI reside em armar indivíduos tais como Bouhlel; o grupo convoca os jovens, os revoltados e os sem rumo mundo afora para atacar em seu nome os que estão à sua volta. Deste modo, o oder de insurgentes desesperados é amplificado através de uma combinação de mídia social e propaganda do feito. Um texto de  catequese usado elo grupo, intitulado "A Administração/Gestão da Selvageria" (The Management of Savagery), prescreve ataques terroristas como um meio de "inflamar a oposição", de arrastar pessoas comuns para o conflito "querendo ou não, de modo que cada pessoa irá para o lado que apoia". 

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No ocidente, ataques mortais em Paris, Bruxelas, Orlando e alhures trazem para mais próximo da realização o objetivo do Estado Islâmico de um mundo dividido.
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Partidos de extrema-direita hostis às minorias estão ganhando popularidade na Europa, enquanto nos EUA pesquisas mostram um significativo apoio popular a medidas até então impensáveis, como a de banir do país pessoas muçulmanas que não sejam cidadãos americanos. Como um furacão em câmara lenta, cada e todo ato de violência parece fazer um dano incremental à possibilidade de se ter uma sociedade tolerante e liberal.

Após o ataque em Nice, o ex-presidente da câmara de deputados americana Newt Gingrich botou lenha na fogueira demandando por "examinar toda pessoa aqui que tenha background muçulmano", acrescentando: "quem acreditar na sharia [direito islâmico] deve ser deportado". Essa foi uma declaração um tanto irônica de Gingrich, que em anos passados ajudou a providenciar espaço para que funcionários muçulmanos pudessem rezar no Congresso americano, e participou no planejamento de sessões para o Instituto Islâmico de Livre Mercado, um grupo de defesa do mercado livre e apoia produtos financiados segundo a sharia. 

A explosão de Gingrich, por mais que seja impraticável, reflete efetivamente um endurecimento dos sentimentos da população. À medida que o tempo passa e continuam os ataques de lobos solitários e de outros em nome do EI, não é inimaginável que propostas como a dele ganhem impulso.

Mas, de uma perspectiva tanto estratégica quanto moral, a pior coisa que se pode fazer em resposta ao horror de ocorrências como a de Nice seria dar ao EI o que ele diz que quer: polarização e ódio comunitário. Propostas para limpeza étnica ou "guerra civilizatória" podem satisfazer um desejo de dar ideia de força, mas na realidade elas alimentam a narrativa do grupo quanto a um mundo irrevogavelmente dividido por linhas religiosas. 

A Europa ocidental enfrentou ondas maiores de terrorismo no passado sem ceder à estratégia dos terroristas ou sacrificar seus valores intrínsecos. A crise do Estado Islâmico exigirá um nível semelhante de firmeza e lealdade. Mas, somente reconhecendo a armadilha que ela armou é que poderemos evitar infligir uma derrota em nós mesmos muito pior que a que um grupo insurgente desesperado e fanático jamais poderia esperar conseguir por si mesmo.

[O artigo nos dá mais uma dimensão da extrema dificuldade de combater o terrorismo e muito mais ainda de eliminá-lo. Trata-se de um inimigo sem rosto e sem uniforme, que mata impiedosamente quaisquer pessoas, inclusive compatriotas. Os chamados lobos solitários, como o de Nice, ampliaram de maneira assustadora  a imprevisibilidade de ataques terroristas. O ocidente está simplesmente desnorteado com esse inimigo que foge a todos os padrões até então estabelecidos. Geradores da onda de refugiados que invadem a Europa, entre os quais se infiltram terroristas, os países europeus estão colhendo hoje os frutos amargos de seus atos na África e no Oriente Médio. 

Ver também:
O Islã na Europa e no mundo
Ataques reabrem debate sobre integração de imigrantes na França
☛ A crise dos imigrantes ilegais e refugiados na Europa -- europeus colhem hoje o que semearam ontem]

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