domingo, 2 de novembro de 2014

Jerusalém, a capital do apartheid, à espera da insurreição

[A reportagem abaixo, de Gideon Levy, foi publicada no jornal esquerdista israelense Haaretz em 23/10. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]

Prisões em massa, colonos violentos, expulsões e despejos: com isso ocorrendo como acontece com muitos palestinos de Jerusalém, ninguém deveria ter ficado surpreso com o ataque terrorista de quarta-feira (22/10).



Policiais detêm um manifestante palestino durante confrontos no Monte do Templo em 16/10/2014 -- (Foto: Reuters/Fonte: Haaretz)

O ataque terrorista em Jerusalém na noite de quarta-feira [22/10] não deveria ter surpreendido ninguém. Afinal, duas nações vivem na Pretória do Estado de Israel. Diferentemente de outras áreas ocupadas, ali se supõe que haja um certa igualdade entre as pessoas: carteiras de identidade azuis disponíveis para todo mundo, liberdade de ir e vir, imposto de propriedade pago à municipalidade, seguro nacional -- todos são israelenses. Mas, Jerusalém está coberta de mentiras. Tornou-se a capital israelense do apartheid.

Excetuando Hebron, nenhum outro lugar possui um regime separatista espalhafatoso e descarado como esse. E agora a bota de Israel está pressionando cada vez mais fortemente na capital, de modo que a resistência dos participantes do gueto em formação está se intensificando: espancados e oprimidos, desprezados e pobres, cheios de um sentimento de ódio e de um desejo de vingança.

A revolta está a caminho. Quando a próxima onda de terrorismo emergir dos becos de Jerusalém Oriental, os israelenses fingirão estar surpresos e furiosos. Mas, a verdade precisa ser dita: apesar do chocante incidente de quarta-feira, os palestinos estão se mostrando uma das nações mais tolerantes da história. Prisões em massa, colonos violentos, privações, expulsões, abandono, despejo -- e eles permanecem silenciosos, exceto pelo recente protesto com pedras.

Não há auto-engano de que a cidade não sofra [o conceito de auto-engano -- 'self-deception' -- é controvertido, como assinala a Enciclopédia Stanford de Filosofia não só em sua definição como na conceituação de paradigmas. No entanto, pode-se dizer em geral que auto-engano é a aquisição e manutenção de uma crença (ou, pelo menos, a confissão dessa crença) diante de forte evidência do oposto, motivada por desejos ou emoções a favor da aquisição e manutenção dessa crença]. A capital é uma capital vista apenas por seus próprios olhos -- a cidade unificada é uma das cidades mais divididas do universo. A alegada igualdade [entre seus habitantes] é uma piada, e a justiça é pisoteada. Livre acesso a lugares sagrados existe apenas para os judeus -- e para muçulmanos idosos. E o direito de retornar a eles é reservado a judeus.

Um palestino residente em Jerusalém corre hoje muito mais risco de ser linchado do que um judeu em Paris. Mas, não há ninguém para protestar de maneira forte e irritada. Diferentemente do judeu francês, o palestino pode ser expulso de Jerusalém. Ele pode também ser preso com uma terrível facilidade. Depois que Mohammed Abu Khdeir, de 16 anos, foi queimado vivo, gerando uma onda de protestos, Israel prendeu 760 palestinos na cidade, 260 deles crianças.

Como sempre, a resposta a cada problema é uma mão mais pesada. O primeiro-ministro sempre ordenou que as forças de segurança fossem reforçadas, usando a única linguagem que sua equipe de governo conhece. E quando, naturalmente, a resistência se torna mais violenta eles levantam suas mãos e dizem: "Vejam como estão destruindo o sistema de transporte (light-rail system) que fizemos para eles".

Jerusalém poderia ter sido diferente. Se Israel tivesse praticado justiça e equidade ali, ela poderia ter se tornado uma cidade modelo -- as pessoas que a anexaram deveriam ter lutado e se empenhado por isso. Nos piores dias da intifada, relativamente pouco terror teve origem na cidade, mesmo com seus residentes podendo viajar livremente.

Os palestinos são os mesmos, mas o bloqueio, o toque de recolher e o cerco [estado de sítio] são diferentes. O resultado é que houve menos terror em Jerusalém, desmentindo a teoria de que cerco evita o terrorismo. Por que? Porque, na realidade, muitos dos residentes na capital desejam tornar-se israelenses , mas Israel está impedindo que consigam isso. Unidos, unidos -- mas sem árabes. 

As prisões em massa em Jerusalém que não despertaram interesse em Israel, a invasão de bairros árabes por colonos apoiados pelo governo e pelas cortes, a negligência criminosa pela qual a cidade é responsável -- tudo isso cobrará um preço.

Por quanto eles verão suas crianças com medo de deixar suas casas com receio de serem atacadas por hooligans nas ruas? Por quanto tempo verão suas crianças serem presas por cada pedra arremessada? Por quanto terão que ver a negligência em seus bairros?

Por quanto  tempo aceitarão sua tácita expulsão da cidade? Entre 1967 e 2013, Israel revogou o status de residentes de 14.309 palestinos em Jerusalém, com alegações estranhas que não se aplicam a nenhum de seus residentes judeus. Não é isso apartheid?

E então o terror irromperá. Em resposta, drones encherão o céu do campo de refugiados de Shoafat, haverá assassinatos nas ruas de Azariyhe e assassinatos direcionados em Beit Hanina, e outra barreira de separação será construída entre as duas partes da cidade, apenas para se estar do lado seguro. Com um prefeito nacionalista, uma polícia violenta e um governo chefiado por Benjamin Netanyahu, nada é mais certo do que isso.
__________
[PS - O relato pessimista (e realista) acima ocorre no momento em que Israel sofre as consequências de sua sistemática política agressiva de estímulo a assentamentos em terras palestinas: a Suécia acaba de se tornar a primeira nação da UE (União Europeia) a reconhecer a Palestina como Estado independente, o Parlamento britânico votou em 13/10 uma moção não vinculante de mesmo teor, e as relações difíceis entre Netanyahu e Obama estão no auge de seu antagonismo, com uma fonte da Casa Branca citada como tendo chamado o primeiro-ministro israelense de 'covarde'.  

Na semana de 30/10, houve novamente cenas de violência em Jerusalém OrientalA Esplanada das Mesquitas, para os muçulmanos, ou o Monte do Templo, para os israelenses, esteve nesta quinta-feira no cerne da violência que tomou parte de Jerusalém Oriental, após a morte de um palestino suspeito de ter atirado contra o ativista de extrema-direita israelense Yehuda Glick — que continua internado em estado grave. A decisão do governo israelense de fechar o local foi classificada de “declaração de guerra” aos palestinos e aos muçulmanos pelo presidente da Autoridade Nacional Palestina (ANP), Mahmoud Abbas. O premier israelense, Benjamin Netanyahu, por sua vez, condenou o ataque ao ativista judeu como “um ato de terrorismo”, e acusou Abbas de incitar a violência.]



Palestinos entram em confronto com a polícia israelense após o assassinato de Moatez Higazi, suspeito de ter atirado algumas horas antes contra o ativista israelense Yehuda Glick em Jerusalém - (Foto: Mahmoud Illean/AP - Fonte: O Globo)





Mulher palestina gesticula com soldado israelense em Jerusalém - (Foto: Finbarr O'Reilly/Reuters - Fonte: O Globo) 


Nenhum comentário:

Postar um comentário