domingo, 23 de novembro de 2014

Fisicamente a Suíça é um país lindo, mas fora isso ...

[A Suíça é um país incrivelmente lindo e, na aparência, tem uma sociedade extremamente organizada, mas moralmente é um país com manchas deploráveis -- neste ponto, tem muito em comum com o Brasil. Já abordei vários exemplos do passado e do presente sujos dos suíços: sua atuação como paraíso fiscal de contas sujas (contas do "petrolão" da Petrobras, por exemplo), deixou de ser um país seguro com aumento significativo e constante da taxa de criminalidade desde 2004 (aproximando-a do conjunto da Europa), se apresenta como um país "neutro" mas é armado até os dentes, dá abrigo a um inacreditável "turismo do suicídio", durante a Segunda Grande Guerra apresentava-se como "neutra" mas foi importantíssima fornecedora do exército nazista com seus reputados e avançados canhões Oerlikon e, muito recentemente, veio à tona a história de que a Suíça se enriqueceu com o tráfico de escravos africanos. Para arrematar, a mulher suíça só ganhou o direito de votar em 1971, quando no Brasil isso ocorreu em 1932.

Agora, através da conceituada jornalista Dorrit Harazim, surge a tenebrosa história das "crianças arrendadas" (mais de 300 mil) distribuídas compulsoriamente pelo governo suíço a famílias de agricultores, como mão de obra barata. Reproduzo a seguir a coluna de Dorrit Harazim. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]

Uma infâmia no passado da Suíça

Dorrit Harazim -- O Globo, 16/11/2014

Entre meados do século XIX e 1981, mais de 300 mil crianças pobres, órfãs ou consideradas fardo econômico foram distribuídas compulsoriamente pelo Estado a famílias de agricultores, como mão-de-obra barata

Invejada pelo alto padrão de vida, baixíssimo índice de criminalidade, estabilidade política e carga tributária mais do que amigável, a Suíça tem um acerto de contas a fazer com o seu passado.

É um acerto tão urgente quanto indigesto, pois expõe ao mundo a prática de uma “engenharia social" que os atuais 8 milhões de suíços prefeririam esquecer ou desconhecer.

Trata-se da reparação devida às verdingkinder (algo como “crianças arrendadas”) [(sic) -- a grafia certa é com "v" maiúsculo]. A designação se refere às mais de 300 mil crianças pobres, órfãs ou consideradas fardo econômico, distribuídas compulsoriamente pelo Estado a famílias de agricultores, como mão-de-obra barata.


Essa prática começou em meados do século 19 e estendeu-se, pasme o leitor, até 1981. Historiadores estimam que ao longo desse período 5% de todas as crianças suíças foram assim retiradas de suas famílias. Dessas, cerca de 10 mil ainda são vivas -- adultos em sua maioria reclusos, envergonhados, estigmatizados, com cicatrizes psicológicas e físicas da infância roubada. 

Uma petição lançada em abril deste ano ultrapassou as 100 mil assinaturas necessárias para um referendo sobre reparação financeira aos sobreviventes. Falta agora a aprovação do Parlamento.

Ela é incerta. O Sindicato dos Agricultores e o majoritário Partido Democrata Liberal, por exemplo, sinalizaram que não vão contribuir para a instituição do fundo de 500 milhões de francos suíços (R$ 1,3 bilhão) recomendado por um comitê de sociólogos, historiadores e juristas.

Para os padrões suíços do século 19, quando uma criança nascia em família pobre ou desestruturada, ou se tornava órfã, a comunidade devia interferir. A solução encontrada para elas não onerarem os cofres públicos foi retirá-las de casa e repassá-las a agricultores necessitados de ajuda braçal.

Em tese, as crianças aprenderiam a trabalhar em horários fora da escola e quando adultos conseguiriam sobreviver sozinhos.

De início essas verdingkinder [sic] eram leiloadas em pregões públicos e arrematadas por quem cobrasse do governo local a menor compensação pela adicional boca a alimentar. Numa segunda fase, que perdurou até os anos 1930, a negociação passou a ser feita a portas fechadas.

O mapeamento completo desse capítulo da história exige o cruzamento de registros federais, cantonais e locais nem sempre existentes ou confiáveis.

"Enquanto aqui todo mundo sabe exatamente quantas vacas existem no país, já que cada uma está fichada, até hoje ninguém sabe ao certo quantas crianças foram retiradas à força de suas famílias", declarou à BBC o guia de uma impactante exposição itinerante sobre o tema.

A mostra inaugurada em 2009 e que rodou por 12 cidades da federação assombrou quem a viu. A contundência dos depoimentos registrados e do registro fotográfico de época acordou a Suíça.

Não foi um despertar alegre para um país que se considera e é considerado civilizadíssimo, que tem um Roger Federer e abriga, entre tantas outras agências internacionais, justamente a Organização Internacional do Trabalho.

Em artigo publicado esta semana no "New York Times" o historiador e escritor Tony Wild narra a saga de sua avó Ida, baseado em documentos aos quais teve acesso recentemente. Ida e seu irmão caçula ficaram órfãos. Ela tinha 9 anos, ele 7. Foram separados e alocados a famílias de vilarejos próximos. Ali trabalharam durante oito anos. 

Wild descobriu que a herança dos irmãos foi confiscada pelo Estado para pagar as famílias que os exploraram. Como diz o autor, ao colocar crianças vulneráveis à mercê de agricultores pobres e brutos, as autoridades criaram uma situação propícia ao abuso. Surras, desnutrição, abandono, doenças e abuso sexual foram corriqueiros.

Houve crianças puxando sacos de trigo de cem quilos; outras só conseguiram aprender a ler depois de adultas. Por socialmente isolados na infância e na adolescência, muitos sobreviventes se auto-isolaram para o resto da vida. Os registros de suicídio ainda são incompletos. Há mulheres casadas, com filhos e netos, que escondem até mesmo o passado dos familiares por medo de também eles se tornarem socialmente discriminados. Foram a paulatina mecanização da agricultura e a conquista feminina do direito ao voto em 1971 que fizeram definhar essa engenharia social perversa.

Talvez uma das últimas vítimas a ser arrebanhada foi o hoje artista plástico Christian M., de 42 anos. No ano não tão arcaico de 1979 a mãe de Chistian se divorciara, o Estado interveio e confiscou seus dois filhos para trabalhar na lavoura. Cinco anos depois, em 1985, ele foi internado numa instituição. Estava com 14 anos de idade, exaurido física e psicologicamente, e com poliartrite.

Ao pesquisar seu fichário de 700 páginas descobriu que também seus pais haviam pago 900 francos suíços mensais à família postiça para garantir sua educação e conforto. Uma década atrás o parlamento de Berna vetou a primeira tentativa de compensação para vítimas de esterilização adotada paralelamente. (O Estado também prendeu ou despachou para centros de reeducação mães solteiras e jovens considerados degenerados. Abortos forçados, esterilizações e castrações químicas fizeram parte da política social).

Mas o silêncio oficial sobre os verdinkinder [sic] só foi rompido em 2013, através do tão aguardado pedido de desculpas públicas. "Não poderíamos continuar a desviar o olhar, uma vez que foi exatamente isso que fizemos por tempo demais", discursou a ministra da Justiça, Simonetta Sommaruga. Proclamou aquela data de "o dia da confissão e um chamamento contra a supressão e o esquecimento". Uma lei que prevê a "reabilitação" de internados à força também foi aprovada.

Ainda falta muito, a começar pela compensação material. "Não foram apenas as autoridades e agricultores individuais que falharam. Foi uma atitude de toda a sociedade suíça, e ela precisa ser reexaminada". Palavras sábias da advogada Jacqueline Fehr, do Partido Social Democrata.




 

Um comentário:

  1. Recebido por email de Ercilia Pollice, em 23/11:

    Meu filho morou na Suiça e tenho amigos suiços.
    E, realmente lá é a casa do politicamente correto.
    Um texto como este, me causou espanto e indignação.
    Não porque erraram no passado.
    Qual nação, não fez suas coisas horríveis, no passado, quando nem se tinha a dimensão correta dos Direitos Iguais para toda humanidade?
    O que me indignou é saber que até hoje, a imprensa não toca neste assunto, e mesmo eu que leio muito, sou bem informada, nunca imaginei uma coisa destas em passado tão recente.
    Eles devem sim,uma satisfação ao mundo pelas barbaridades feita com crianças pobres ou órfãs,
    mesmo porque são muito orgulhosos da igualdade e qualidade de vida de seus cidadãos.
    Estou pasma!
    Ninguém realmente, pode atirar pedras, pois, TODOS TEMOS TELHADOS DE VIDRO!
    Obrigada,
    Um abraço,
    Ercília Pollice

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