No Vaticano, em 25 de dezembro - (Foto: Osservatore Romano/Reuters)
O jesuíta argentino mudou ao se tornar papa em 2013? Retrato de um prelado pragmático e político tomando como referência as sombras e luzes de seus anos argentinos.
Após suas posições quanto aos imigrantes ou a abertura que parecia demonstrar sobre os homossexuais, falou-se do papa Francisco progressista. Suas declarações no domingo, 2 de outubro, sobre a "hipócrita doutrinação da teoria do gênero" que seria propagada pelos manuais das escolas francesas contrastam com essa imagem de um soberano pontífice mais alinhado com a sociedade contemporânea que seu antecessor, Benedito XVI. Mas elas surpreendem menos aqueles que conheciam as posições, todas também conservadoras, do arcebispo de Buenos Aires, posição que tinha até sua eleição para o trono de São Pedro, em 13 de março de 2013.
Vendo-se o radiante papa Francisco, fica difícil imaginar o austero jesuíta argentino. O arcebispo de Buenos Aires tinha o semblante triste. O 266° soberano pontífice mostra hoje um sorriso radioso. "Lá eu sofria, aqui sou feliz", confiou ele em Roma a um velho conhecido, Julio Barbaro, personagem histórico do peronismo, formado também entre os jesuítas. "Se não tivesse sido eleito papa, teria se aposentado", lembra Barbaro -- em 2011, monsenhor Bergoglio apresentou a Benedito XVI sua demissão como arcebispo, devido à sua idade (75 anos) -- esclarecendo que "deixando de lado a aparência", é "sempre o mesmo homem, que busca o equilíbrio entre a doutrina católica e a ação social".
"Se sente feliz porque não há ninguém acima a quem prestar contas", declarou a escritora e intelectual de esquerda Beatriz Sarlo a José María Poirier, diretor da influente revista religiosa Criterio. "Exceto a Deus!", comentou não sem malícia este último, que conhece Jorge Bergoglio há várias décadas.
"Ele sempre quis o poder"
De Jorge a Francisco, as diferenças vão além da aparência. Sobre os homossexuais, por exemplo. Contra a legalização do casamento de pessoas do mesmo sexo em 2010, que ele classifica como "manobra do diabo", o arcebisbo escreveu uma carta convocando para se "fazer uma guerra de Deus". Três anos mais tarde, o papa declara: "Se uma pessoa é gay, busca o Senhor e é de boa vontade, quem sou eu para julgá-la?". Outro exemplo: em 30 de novembro de 2015, ele reconhece a "perplexidade" sobre o preservativo mas em 2004 ele havia, sem rodeios, chamado de "fascista" um projeto de lei argentino de educação sexual nas escolas.
"Ele sempre quis o poder"
De Jorge a Francisco, as diferenças vão além da aparência. Sobre os homossexuais, por exemplo. Contra a legalização do casamento de pessoas do mesmo sexo em 2010, que ele classifica como "manobra do diabo", o arcebisbo escreveu uma carta convocando para se "fazer uma guerra de Deus". Três anos mais tarde, o papa declara: "Se uma pessoa é gay, busca o Senhor e é de boa vontade, quem sou eu para julgá-la?". Outro exemplo: em 30 de novembro de 2015, ele reconhece a "perplexidade" sobre o preservativo mas em 2004 ele havia, sem rodeios, chamado de "fascista" um projeto de lei argentino de educação sexual nas escolas.
O arcebispo Jorge Mario Bergoglio em visita à favela "Villa 21-24" em Buenos Aires com o padre Pepe, em 1998 - (Foto: Paróquia Virgem de Caacupe/AP)
Em 6 de julho, Francisco denunciou a "cumplicidade" de uma parte da hierarquia da Igreja com os abusos sexuais de crianças. Entretanto, em 2009, quando o padre argentino Julio Grassi foi condenado a 15 anos de prisão por violações de menores, monsenhor Bergoglio, presidente da conferência episcopal, o manteve em suas funções. Quanto ao padre Christian Von Wernich, condenado à prisão perpétua em 2007 por ter participado de crimes contra a humanidade durante a ditadura militar (1976-1983), ele continuou a celebrar missas na prisão. O soberano pontífice não abriu sempre os arquivos da Igreja sobre os "anos de chumbo" da Argentina, como havia prometido às Avós da Praça de Maio quando chegou ao Vaticano.
José María Poirier pensa que as posições adotadas por Jorge Bergoglio eram devidas menos às suas convicções profundas e sim às pressões exercidas por um setor muito conservador da Igreja argentina conduzido pelo arcebispo de La Plata, monsenhor Héctor Aguer. Em 2004, buscando a que fosse interditada uma exposição em Buenos Aires do artista Leon Ferrari, um ativista ateu de obras heréticas morto em 2013, o futuro papa fala de "uma blasfêmia que envergonha nossa cidade", convocando os fiéis para "uma jornada de penitência". Com risco de se mostrar "como uma pessoa intolerante", lamenta o responsável pela revista Criterio. Quando do debate tumultuado sobre o casamento para todos, Cristina Kirchner, então presidente da Argentina, havia criticado monsenhor Bergoglio por querer voltar "aos tempos da Inquisição".
Durante o verão de 2015, após seus discursos no Equador, na Bolívia e no Paraguai, nos quais apoiou os movimentos populares contra o "modelo econômico idólatra", muitos, a exemplo de Sergio Rubin, diretor do suplemento religioso do diário argentino Clarín e coautor com Francesca Ambrogetti de uma biografia autorizada de Jorge Bergoglio em 2010 (El Jesuíta, sem tradução), consideraram que, se ele dava mostras de conservadorismo em matéria doutrinária -- ele se opõe especialmente à ordenação de mulheres e ao casamento de padres -- Francisco é, ao contrário, "claramente progressista em matéria social".
O teólogo e filósofo Rubén Dri, ex-pároco do Movimento dos Padres para o Terceiro Mundo, próximo da Teoria da Libertação (corrente de pensamento cristã que preconiza a libertação dos povos e é inspirada no marxismo), o vê antes de tudo como "um animal político": "Ele ama o poder, sempre o quis". Uma opinião compartilhada por Julio Barbaro: "Ele esteve sempre próximo do peronismo, com uma reivindicação de justiça social e identidade nacional. Ele é hoje um papa marcado por essas características de seu país". Poirier confirma isso: "Se não tivesse sido padre, teria sido um político brilhante, leitor agudo da realidade, dotado de uma memória infinita e escutando mais do que falando".
"Evitar toda ideologia"
Na Argentina, a política é uma paixão. Mas, para Rubén Dri, o apoio do papa aos movimentos populares ou sua vontade de mudança no terreno das práticas reveste-se de "pragmatismo", face ao declínio da Igreja após os pontificados de João Paulo II e Benedito XVI, marcados pelos escândalos pedófilos e outros ligados às finanças do Vaticano. "Se a Igreja não mudar radicalmente, não terá mais fiéis", define o filósofo. Na América Latina, a Igreja recuou de maneira impressionante, perdendo terreno para os cultos evangélicos. E é sobre esse continente que Francisco concentra seus esforços para "seu projeto político, que é o de retomar o terreno perdido", analisa José María Poirier.
"Seu discurso antiliberal está ligado a essa necessidade de controlar as massas, controlar os pobres, porque os pobres pertencem à Igreja", desfere Rubén Dri. Seu "progressismo social" -- seria antes portanto "uma tentativa de cooptação dos movimentos populares latino-americanos". Cooptação que explicaria o conflito que opôs o arcebispo Bergoglio ao presidente Néstor Kirchner (2003-2007) e depois à sua mulher Cristina Kirchner (2007-2015). "É o primeiro presidente a reduzir o poder da Igreja, ocupando um terreno que era seu seio habitual". O conflito foi longe. Poirier conta o dia em que, em um escritório estreito, o arcebispo colocou uma rádio de música clássica a pleno volume. Diante da cara de surpresa de seu visitante, Bergoglio lhe explicou que era por causa das escutas colocadas para espioná-lo ...
Discreto e pouco falante, o cardeal jesuíta podia em resposta mostrar-se veemente em suas homilias por ocasião do Te Deum anual, missa celebrada na festa nacional argentina de 25 de maio, denunciando a corrupção, o clientelismo político e a pobreza, e advertindo sobre "a dissolução nacional da Argentina". Ninguém é profeta em seu país ... o presidente o acusou de ser "líder da oposição".
Foi a pedido de Néstor Kirchner, afirma o diretor de Criterio, que o jornalista Horacio Verbitsky teria, em 2005, escrito o livro El Silencio (não traduzido), no qual ele acusa Jorge Bergoglio de ter mantido relações com a ditadura militar. O jornalista, ele mesmo suspeito hoje de laços com essa mesma ditadura, mantém que o prelado teria entregue aos militares dois jovens padres jesuítas que trabalhavam em favelas. Eles foram soltos seis meses mais tarde por pressão internacional.
Se "Bergoglio sempre lutou para conservar a unidade de um movimento jesuíta atormentado pela teologia da libertação", quer crer Poirier, "seu principal objetivo era evitar toda ideologia e defender uma teologia de acompanhamento graças aos padres das favelas", analisa o sociólogo de religiões Fortunato Mallimaci.
O chefe da arquidiocese de Buenos Aires sempre se mostrou próximo de seus padres, tecendo relações pessoais com cada um deles e ganhando sua admiração e seu reconhecimento, à parte das divergências possíveis. Dizia-se dele ser muito atento às necessidades de seus subordinados, que podiam a qualquer momento levá-lo a recorrer a uma ligação telefônica direta. Passava seus fins de semana percorrendo as paróquias mais pobres, conversando com os padres das favelas e das prisões.
"Foi o único bispo que veio ver meu marido no hospital, em 2000, quando ele estava morrendo", se lembrava em 2004 com emoção Clelia Luro, a viúva de monsenhor Jeronimo Podesta, apelidado "o padre vermelho" de Avellaneda, um subúrbio pobre de Buenos Aires. Monsenhor Podesta, que denunciava as injustiças sociais nos anos 1960, foi suspenso de suas funções episcopais por ter se casado com sua secretária.
Monselhor Bergoglio foi também o único representante do episcopado, em 9 de outubro de 1999, a assistir o translado dos restos mortais do padre Carlos Mugica até a Villa 31, a maior favela em pleno coração e Buenos Aires, onde trabalhava o mítico padre-operário morto por paramilitares em 1974. "É graças a ele que Carlos repousa entre aqueles que amava", diz Marta, irmã do padre Mugica.
"Impenetrável"
Para AdolfoPérez Esquivel, defensor dos direitos humanos agraciado com o prêmio Nobel da Paz em 1980, o futuro papa teve o "mérito de sair da sacristia para se ocupar do social". Mas Rubén Dri sublinha a diferença entre os padres das favelas e os padres do terceiro mundo partidários da teologia da libertação: "Os primeiros praticam o assistencialismo, lutam contra as drogas e dão de comer a quem tem fome. Os segundos são politizados, querem que o pobre seja protagonista de sua própria libertação".
Muitíssimo mais revolucionário para um homem envolvido, em sua juventude, com a Guarda de Ferro, uma organização peronista de direita inspirada no partido fascista romeno de mesmo nome. Em 1998, Jorge Bergoglio foi aliás escolhido como arcebispo de Buenos Aires por monsenhor Antonio Quarracino, seu antecessor, "que vinha", lembra Fortunato Mallimaci, "da ala da Igreja que tinha por objetivo aniquilar tudo o que dissesse respeito à teologia da libertação".
Quem é realmente Jorge Bergoglio? O arcebispo conservador de Buenos Aires ou o papa de quem todo o mundo espera uma abertura maior da Igreja? Além disso, Francisco é tão de mente aberta como se diz? Ao porta-voz da conferência episcopal chilena que lhe comunicava, em maio, a consternação da população de Osorno, no sul do Chile, pela designação como bispo de um homem acusado de dar cobertura a um padre pedófilo, ele respondeu: "São os esquerdistas que inventaram tudo isso", uma afirmação muito violenta num país no qual os opositores de esquerda foram perseguidos durante os anos da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).
"É muito difícil saber o que ele pensa realmente. Ele jamais dá a impressão de mentir, mas é impenetrável", considera José María Poirier, que lhe daria de bom grado a absolvição sem confissão: "Em quem você teria tendência de acreditar? Em um Bergoglio que fala sob censura, ou em um Francisco que não tem mais ninguém acima dele? . À parte Deus, claro.
Foi a pedido de Néstor Kirchner, afirma o diretor de Criterio, que o jornalista Horacio Verbitsky teria, em 2005, escrito o livro El Silencio (não traduzido), no qual ele acusa Jorge Bergoglio de ter mantido relações com a ditadura militar. O jornalista, ele mesmo suspeito hoje de laços com essa mesma ditadura, mantém que o prelado teria entregue aos militares dois jovens padres jesuítas que trabalhavam em favelas. Eles foram soltos seis meses mais tarde por pressão internacional.
Se "Bergoglio sempre lutou para conservar a unidade de um movimento jesuíta atormentado pela teologia da libertação", quer crer Poirier, "seu principal objetivo era evitar toda ideologia e defender uma teologia de acompanhamento graças aos padres das favelas", analisa o sociólogo de religiões Fortunato Mallimaci.
O chefe da arquidiocese de Buenos Aires sempre se mostrou próximo de seus padres, tecendo relações pessoais com cada um deles e ganhando sua admiração e seu reconhecimento, à parte das divergências possíveis. Dizia-se dele ser muito atento às necessidades de seus subordinados, que podiam a qualquer momento levá-lo a recorrer a uma ligação telefônica direta. Passava seus fins de semana percorrendo as paróquias mais pobres, conversando com os padres das favelas e das prisões.
"Foi o único bispo que veio ver meu marido no hospital, em 2000, quando ele estava morrendo", se lembrava em 2004 com emoção Clelia Luro, a viúva de monsenhor Jeronimo Podesta, apelidado "o padre vermelho" de Avellaneda, um subúrbio pobre de Buenos Aires. Monsenhor Podesta, que denunciava as injustiças sociais nos anos 1960, foi suspenso de suas funções episcopais por ter se casado com sua secretária.
Monselhor Bergoglio foi também o único representante do episcopado, em 9 de outubro de 1999, a assistir o translado dos restos mortais do padre Carlos Mugica até a Villa 31, a maior favela em pleno coração e Buenos Aires, onde trabalhava o mítico padre-operário morto por paramilitares em 1974. "É graças a ele que Carlos repousa entre aqueles que amava", diz Marta, irmã do padre Mugica.
"Impenetrável"
Para AdolfoPérez Esquivel, defensor dos direitos humanos agraciado com o prêmio Nobel da Paz em 1980, o futuro papa teve o "mérito de sair da sacristia para se ocupar do social". Mas Rubén Dri sublinha a diferença entre os padres das favelas e os padres do terceiro mundo partidários da teologia da libertação: "Os primeiros praticam o assistencialismo, lutam contra as drogas e dão de comer a quem tem fome. Os segundos são politizados, querem que o pobre seja protagonista de sua própria libertação".
Muitíssimo mais revolucionário para um homem envolvido, em sua juventude, com a Guarda de Ferro, uma organização peronista de direita inspirada no partido fascista romeno de mesmo nome. Em 1998, Jorge Bergoglio foi aliás escolhido como arcebispo de Buenos Aires por monsenhor Antonio Quarracino, seu antecessor, "que vinha", lembra Fortunato Mallimaci, "da ala da Igreja que tinha por objetivo aniquilar tudo o que dissesse respeito à teologia da libertação".
Quem é realmente Jorge Bergoglio? O arcebispo conservador de Buenos Aires ou o papa de quem todo o mundo espera uma abertura maior da Igreja? Além disso, Francisco é tão de mente aberta como se diz? Ao porta-voz da conferência episcopal chilena que lhe comunicava, em maio, a consternação da população de Osorno, no sul do Chile, pela designação como bispo de um homem acusado de dar cobertura a um padre pedófilo, ele respondeu: "São os esquerdistas que inventaram tudo isso", uma afirmação muito violenta num país no qual os opositores de esquerda foram perseguidos durante os anos da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).
"É muito difícil saber o que ele pensa realmente. Ele jamais dá a impressão de mentir, mas é impenetrável", considera José María Poirier, que lhe daria de bom grado a absolvição sem confissão: "Em quem você teria tendência de acreditar? Em um Bergoglio que fala sob censura, ou em um Francisco que não tem mais ninguém acima dele? . À parte Deus, claro.