domingo, 28 de fevereiro de 2016

Como um mosquito minúsculo se tornou um dos assassinos mais eficientes do planeta

[Traduzo a seguir uma reportagem de Brad Dennis, do The Washington Post sobre o Aedes Aegypti. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]

Fêmeas de mosquitos Aedes Aegypti pousadas no braço de um técnico de saúde em um laboratório que realiza pesquisa sobre como evitar a disseminação do vírus zika na cidade de Guatemala - (Foto: Josué Decavele/Reuters)

É um dos mais incansáveis perseguidores na Terra, que utiliza uma tromba minúscula, semelhante a uma agulha, para picar suas vítimas e sugar seu sangue. Se alimenta quase exclusivamente de sangue humano e nunca se aventura para longe de onde vivem suas vítimas, depositando ovos em tampas de garrafas, pneus usados e vasos de plantas. Cabe facilmente em uma única unha de dedo, mesmo assim tem atormentado exércitos e eliminado o equivalente à população de cidades inteiras. 

Milhares de espécies de mosquitos habitam o planeta, mas poucos têm mostrado maior capacidade de adaptação e recuperação -- ou se mostrado mais mortíferos aos seres humanos -- do que o Aedes aegypti. Tem alimentado uma longa série de epidemias mundo afora: dengue, febre amarela, chikungunya e, agora, zika. 

"É um dos assassinos mais eficientes no mundo", disse Peter Hotez, decano da Escola Nacional de Medicina Tropical na Escola de Medicina Baylor [Houston, Texas, EUA].  

O Aedes aegypti provocou um surto extremamente severo de febre amarela nos anos 1890, o que apressou a decisão dos franceses de abandonar a construção do Canal do Panamá. Fez com que milhares de soldados adoecessem durante a Guerra Hispano-Americana. Esteve por trás de surtos mortais de febre amarela durante o século 19 em Nova Orleans, em Hampton Roads na Virgínia e em Memphis. Ainda hoje, provoca dengue em cerca de 20 milhões de pessoas por ano ao redor do mundo.

Como um sugador de sangue transmite o vírus zika

O mosquito Aedes aegypti é o vetor perfeito para disseminar o vírus. Ele coleta o vírus de uma pessoa e então pode infectar outra pessoa ao injetar nela saliva de sua tromba semelhante a uma seringa.

Figura 1                                                          Figura 2                                        Figura 3

[Os termos em inglês referem-se às legendas em inglês na figura do texto em inglês, que infelizmente não apareceram na reprodução acima.] 

Figura 1  (capillaries = vasos capilares) 

Mosquitos são medidos pelo comprimento de suas asas. O mosquito da febre amarela, Aedes aegypti, possui asas que têm no máximo 3,17 mm de comprimento.

Buscando uma refeição de sangue. Enquanto procura um vaso sanguíneo, a fêmea do mosquito movimenta sua tromba como uma serra, para a frente e para trás, sob a pele da vítima. Ela injeta ali saliva, que atua como um anestésico e evita que o sangue coagule quando ela atinge um vaso capilar. 

Figura 2  - (midgut = intestino médio)

Infectando o vetor. Após perfurar um vaso, o mosquito bombeia sangue para o seu intestino-médio. Se seu anfitrião estiver infectado com o vírus zika, seu sangue conterá minúsculas partículas do vírus, cada uma com menos de um centésimo de um glóbulo vermelho (diâmetro da partícula do zika: 50 nanômetros = 5,0 x 10(-8) m). 

Figura 3  - (edge of red blood cell = limite de um glóbulo vermelho = 7 x 1o(-6) mm); - hemolymph = hemolinfa [em zoologia, fluido que tem as mesmas funções do sangue dos vertebrados, mas como uma composição química diferente]; - (salivary glands = glândulas salivares; - heart = coração)

Passando o vírus adiante. O vírus sai do intestino do inseto e vai para a cavidade de seu corpo, que está cheio de hemolinfa (seu sangue), que é bombeado através da cavidade do corpo por um coração longo e tubular. O vírus finalmente penetra nas glândulas salivares, onde é preparado para ser injetado em outra pessoa.

(Fonte: ViralZone, Journal of Experimental Biology, Journal of Medical Entomology, staff reports. GRAPHIC: Patterson Clark - The Washington Post. Published Feb. 20, 2016.)

O que faz do Aedes aegypti um inimigo tão formidável e um veículo tão eficiente para transmitir doenças? Parte se deve à biologia, parte se deve a uma incomum e misteriosa capacidade para se adaptar.

Essa espécie de mosquito, que é encontrada em regiões que abrigam mais da metade da população do planeta, evoluiu para desenvolver-se em lugares onde os seres humanos se agrupam -- particularmente em ambientes urbanos densos, com abundância de lixo e recipientes abertos. O mosquito pode crescer em lugares minúsculos, dentro e fora das casas. Suas larvas não precisam necessariamente de água para sobreviver, e seus ovos podem permanecer inativos e latentes por um ano ou mais, para eclodir apenas quando submersos em água. Os ovos pegajosos grudam-se a recipientes tão comuns e variados como os interiores de pneus velhos e pequenos recipientes de água para pássaros.

"É uma dessas pestes, como as baratas, que evoluiu nos últimos 15.000 anos para explorar as mudanças no comportamento e nas habitações dos seres humanos", disse em uma conferência Ronald Rosenberg, diretor em exercício da Divisão de Doenças Transmitidas por Vetores, nos Centros para Controle e Prevenção de Doenças [Georgia, EUA]. "Ele se desenvolve onde as pessoas convivem muito próximas umas às outras".

A OMS - Organização Mundial da Saúde descreveu recentemente o Aedes aegypti como "oportunista", com uma capacidade incomum para se adaptar a ambientes mutáveis, explorar oportunidades oferecidas por crescentes viagens internacionais e por uma rápida urbanização, e florescer "com impressionante eficiência" em áreas pobres.

As fêmeas -- as únicas que picam [os machos se alimentam de frutas ou outros vegetais adocicados] -- caracteristicamente podem botar de 100 a 200 ovos após cada refeição (picada)  e podem produzir numerosos lotes de ovos ao longo de sua vida.

"Foram encontradas larvas numa multidão de recipientes artificiais, como copos de plástico e tampas de garrafas descartados, pratos sob vasos de plantas, recipientes com água para pássaros, vasos em cemitérios e vasilhas de água para animais domésticos", disse a OMS. "Os mosquitos podem desenvolver-se também em culturas microbianas encontradas em fossas sépticas, vasos sanitários e em boxes para banhos de chuveiro. Canteiros de obra e calhas obstruídas oferecem oportunidades adicionais para a produção de mosquitos em grandes quantidades".

A constituição genética e os hábitos alimentares do Aedes aegypti fazem dele um vetor ideal para disseminar doenças como a zika entre os seres humanos. As fêmeas dos mosquitos, que se banqueteiam com sangue para suprir proteínas para seus ovos, tomam uma "refeição de sangue" de uma pessoa já infectada. Esse sangue é levado então para a região do intestino médio do mosquito. Em muitas espécies de mosquitos, o vírus permaneceria restrito ao intestino médio e a cadeia de transmissão acabaria.

Mas, o Aedes aegypti possui o que os entomologistas chamam de "competência vetorial". Neste caso, isto  significa que o vírus se replica dentro do mosquito e encontra seu caminho de volta para as glândulas salivares do inseto -- um processo que pode durar dias. Quando o mosquito pica outra pessoa, transmite o vírus para o novo hospedeiro.

"Não leva muito tempo", disse Rebekah Kading, uma entomologista e professora assistente na Universidade do Estado do Colorado. "Biologicamente ele é um vetor muito competente". Infelizmente, é também muito faminto.

Os mosquitos Aedes aegypti são picadores agressivos durante o dia, especialmente no amanhecer e no anoitecer. Podem se esconder debaixo de camas, em armários ou em outros ambientes com sombra. Se "alimentam por goles", significando que se alimentam frequentemente e de múltiplos hospedeiros -- uma prática que permite espalhar a doença muito rapidamente. Especialistas dizem que são adeptos também dos ataques sorrateiros, nos quais se aproximam das pessoas por trás, picando-as nos tornozelos e nos cotovelos para assim evitar serem detetados e esmagados/afugentados.

"Sua picada não é muito forte", disse Joseph Conlon, assessor técnico da Associação Americana de Controle de Mosquitos, um grupo científico sem fins lucrativos baseado em Nova Jersey. "Pode começar se alimentando em sua perna enquanto você toma seu café da manhã, e você pode até nem perceber. Ele pode então voar rapidamente para outra pessoa e se alimentar dela. Ele tem toda a capacidade de transmitir o vírus para muitas pessoas".

Não foi senão até o início dos anos 1900 que os cientistas confirmaram que flagelos como a febre amarela estavam sendo disseminados grandemente por mosquitos. Nas décadas que se seguiram, a humanidade declarou guerra contra o Aedes aegypti mais de uma vez, com algum êxito. No final dos anos 1940 e 1950, por exemplo, uma campanha levou à erradicação desse mosquito em pelo menos 18 países latino-americanos e em algumas ilhas do Caribe [a febre amarela foi erradicada no Brasil em 1907, graças à atuação de Osvaldo Cruz, pioneiro aqui no diagnóstico de que a doença era transmitida pelo Aedes aegypti].

Mas o esforço acabou por se enfraquecer, quando a vigilância diminuiu e a vontade política reduziu-se. Os mosquitos desenvolveram resistência aos inseticidas, e o ritmo da urbanização superou os esforços de erradicação. O Aedes aegypti fez um dramático retorno, o mesmo acontecendo com doenças como a dengue.

"Temos lutado contra esse mosquito por um século, ou mais", disse Kading. "É um mosquito duro de se lidar".

O Aedes aegypti é um dos muitos mosquitos que atormentam os seres humanos. Algumas espécies do mosquito Anopheles podem transmitir a malária, que anualmente provoca centenas de milhares de mortes ao redor do mundo. Mosquitos da espécie Culex são considerados o principal vetor do vírus do Nilo Ocidental, que provoca uma doença neurológica potencialmente fatal encontrada em partes da África, Europa, Oriente Médio, América do Norte e Ásia. Outras espécies de mosquitos carregam uma porção de agentes patogênicos, que são responsáveis por doenças que incluem a encefalite e a febre do Vale do Rift [esta febre, transmitida pela picada de um mosquito, foi detetada pela primeira vez em 1915 no Vale do Rift, na  África, mas o vírus só foi isolado em 1931 -- esse vale é um complexo de falhas tectônicas que se estende do norte da Síria até o centro de Moçambique].

Mas o vírus zika continua com sua rápida disseminação através das Américas, e com os pesquisadores cada vez mais convencidos com seus vínculos com danos cerebrais em bebês e com uma síndrome rara [a síndrome de Guillain-Barré] que pode levar à paralisia em adultos, autoridades da área de saúde estão repetindo a pergunta que seus antecessores fizeram durante gerações: como podemos combater o Aedes aegypti? A resposta: é possível, mas não é barato nem fácil.

"Há uma tremenda parcela da história humana que tem sido influenciada por esse mosquito", disse Conlon. "É uma das menores das criaturas de Deus, mas pode causar uma tremenda quantidade de problemas e danos à humanidade. E ele tem feito isso".

  




2 comentários:

  1. Excelente matéria, como sempre aliás
    José Manuel

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  2. Muito bom o post. Situa o problema no espaço e tempo. Em meio a tanta besteira que temos ouvido e lido por aí ...

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