sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

A genialidade de Millôr Fernandes (II)

Ver postagem anterior. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.

Para esta postagem me baseei no livro Millôr - Hai-Kais (Ed. L&PM Pocket, 2014 -- www.lpm.com.br), que recomendo fortemente.

Hai-Kus ou Hokkus

(pequena introdução para os não iniciados) -- Millôr Fernandes

O Haiku aparece em geral nos nossos dicionários com a grafia de Hai-Cai por dois motivos básicos: o primeiro, a guerra que os filólogos patrícios resolveram deflagrar à linda letra K, pelo simples fato dela ter aquele ar agressivamente germânico e só andar com passo de ganso. A batalha é, evidentemente, perdida, pois a letra teima em permanecer na língua, inclusive firmando-se na imagem, hoje quase mítica, de JK, também artificialmente banido da vida política brasileira.

O segundo motivo do não uso da grafia Haiku é a homofonia da segunda sílaba com outra palavra da língua portuguesa, designativa de certa parte do corpo de múltipla importância fisiológica. Essa palavra os filólogos só usam a medo. Quando a colocam no dicionário fazem sempre questão de acrescentar (chulo). Assim, entre parênteses.

Resolvi -- e não entro em detalhes para não alongar esta explicação -- usar a grafia (comprometida) Hai-Kai, para as composições deste livro. O Hai-Kai é um pequeno poema japonês composto de três versos, dois de cinco sílabas e um -- o segundo -- de sete. No original não tem rima, que geralmente lhe é acrescentada nas traduções ocidentais. A época do aparecimento do Hai-Kai é controversa, e sua popularização deu-se no século XVII, sobretudo através da produção de Jinskikiro Matsuo Bashô, simbolista inspirado profundamente em impressões naturais (sobretudo paisagísticas) e adepto do Zen: 

A nuvem atenua
O cansaço das pessoas
Olharem a lua.

Em cima da neve
O corvo esta manhã
Pousou bem de leve.

Contudo, há quem afirme que Bashô foi ultrapassado, tanto em popularidade quanto em inspiração, pelo poeta do século posterior (XVIII) Yataro Kobayashi (Issa):

Vem cá passarinho
E vamos brincar nós dois
Que não temos ninho.

Bem hospitaleiro
Na entrada principal
Está o salgueiro.

Apesar de sua forma frágil, quase volátil, dependendo da imagística mais do que qualquer outra poesia, uma implosão, não uma explicitação, o Hai-Kai é, contudo, uma forma fundamentalmente popular e, inúmeras vezes, humorística, no mais metafísico sentido da palavra:

Roubaram a carteira
Do imbecil que olhava
A cerejeira.

Eu vi meu retrato
Bem no fundo do lago
Diz o olhar do pato.

Meu interesse pelo Hai-Kai como forma de expressão direta e econômica começou em 1957, quando eu escrevia uma seção de humor (Pif-Paf) na revista O Cruzeiro.

Passei a compor alguns quase semanalmente usando, porém, apenas os três versos da forma original, não me preocupando com o número de sílabas. Os Hai-Kais deste livro foram compostos entre 1959 e 1986. 

Hai-Kais de Millôr Fernandes

Prometer
E não cumprir
Taí viver.


Morta, no chão
A sombra
É uma comparação.


No aeroporto, puxa-sacos
Se despedem
De velhacos.


Nunca tive medo, gente,
Se, onde há perigo,
Alguém vai na frente.


Esnobar
É exigir café fervendo
E deixar esfriar.


Eu vim com pão, azeite e aço;
Me deram vinho, apreço, abraço:
O sal eu faço.


Na poça da rua
O vira-lata
Lambe a Lua.


À nossa vida
A morte alheia
Dá outra partida.


Envelhecido, cheio de saudade
Ando na multidão
Sempre da mesma idade.


É tudo natural:
A galinha -- poedeira
O galo -- teatral.


Fiquei bom da vista!
Depressa,
Um oculista!


É meu conforto
Da vida só me tiram
Morto.


O umbigo
Devia ser
Só pro amigo.


A caveira é bem rara
Pois não pensa nem fala:
Só encara.


A girafa, calada,
Lá de cima vê tudo
E não diz nada.


Eis o meu mal
A vida pra mim
Já não é vital.


Com que grandeza
Ele se elevou
Às maiores baixezas!


Probleminhas terrenos:
Quem vive mais
Morre menos?


O cético sábio
Sorri
Só com um lábio.


Não esmaguem a barata
Sua nojeira
É inata.


Por fim se descobriu;
O soldado desconhecido
É um civil.


Pensa o outro lado:
Só quem tem fama
É difamado.


Lá está o magistrado
Com seu ar
De injustiçado.


O inacreditável é crível
Mas o impossível
Não é possível.


Goze.
Quem sabe essa
É a última dose?


Há colcha mais dura
Que a lousa
Da sepultura?


Maravilha sem par
A televisão
Só falta não falar.


Com pó e mistério
A mulher no espelho
Retoca o adultério.


O irmão siamês
É um invento
Chinês.


O pato, menina,
É um animal
Com buzina.


Nada tem nexo.
Tudo é apenas 
Um reflexo.


Coisa rara:
Teu espelho
Tem a minha cara.


Nos dias quotidianos
É que se passam
Os anos.


Na vida, o gozado
É que nem o palhaço
É engraçado.


Diz pensar livre pensar.
Livre-pensar
É só pensar.


Vê-se, pelo trajar,
Que seu estado civil
É militar.


É impudico
Só ter fortuna
O rico.


Mulatas na pista,
Perco a vontade
De ser racista.


Santo de verdade:
Um egoísta
Da generosidade.


Pra ser feliz de verdade
É preciso encarar
A realidade.


Será que o doutor
Cobra pela cura
Ou cobra a dor?


Na penumbra, a sós.
Quando a luz se acende
Já não somos nós.


Democracia é um espeto!
Pra mim, é preto no branco
Pra ele, é branco no preto.


Se só ouvir
Eu nunca vou
Me repetir.


Por que lutam os bravos?
Querer liberdade
É coisa de escravos.


Meu protesto
É só andar com pessoas 
Que detesto.


Nunca esqueça:
A vida
Também perde a cabeça.



Um comentário:

  1. Recebido por email de Luiz Bissoli em 07/12:

    Rimando, Millôr Fernandes
    compôs hai-kais ​
    melhor que muitos grandes...

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