terça-feira, 7 de outubro de 2014

O "Big Bang" frente a Deus

[A reportagem traduzida abaixo, de autoria de Pablo Jáuregui, foi publicada no jornal espanhol El Mundo de 25/9. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]


O astrofísico e cosmólogo britânico Stephen Hawking - (Foto: Google)

Stephen Hawking desfiou ontem sua visão ateia da origem do Universo, diante de um auditório superlotado em Tenerife. Comprovando uma vez mais que é a estrela mais deslumbrante da ciência mundial, o astrofísico britânico expôs suas ideias sobre o Big Bang que deu o tiro de partida ao Cosmos e detalhou porque, como declarou na semana passada em uma entrevista exclusiva ao El Mundo, está convencido de que Deus não é necessário para explicar o nascimento do Universo.

Durante o ato central do Festival Starmus, um congresso concebido para aproximar de todos os públicos os achados da astronomia, Hawking apareceu em sua cadeira de rodas no Auditório Magma da ilha canária e provocou uma gigantesca ovação entre as centenas de colegas, estudantes e amantes do Cosmos que o aclamaram como se fosse um astro de rock. 

"Se necessita de um Criador para determinar como começou o Universo? Ou o estado inicial do Universo está determinado por uma lei da Ciência?". Essas, proclamou Hawking através da legendária voz robótica de seu sintetizador, são as perguntas chaves sobre a origem do Cosmos que queria abordar em sua conferência.

O astrofísico britânico recordou como uma vez participou de um congresso de cosmologia no Vaticano, no qual o Papa disse aos participantes que "era satisfatório estudar o Universo uma vez iniciado, mas que não deviam indagar sobre seu próprio início porque esse foi o momento da Criação e obra de Deus". Em seguida, Hawking soltou uma das inúmeras pérolas características de seu sarcástico senso de humor que salpicaram toda a sua fala: "considerei afortunado que o Papa não havia dado conta de que eu havia apresentado um artigo durante o congresso com uma proposição de como o Universo se havia iniciado. Não me agradava a ideia de que me pudessem entregar à Inquisição, como fizeram com Galileu". 

A origem do Universo e o Papa

O astrofísico britânico explicou que por volta do início dos anos 60 houve um intenso debate científico sobre se o Universo teve início há um tempo finito. No caso de que se assim fosse, a pergunta óbvia era: "o que ocorreu antes do início do Universo?". E, de novo, o astrofísico recorreu a outro comentário jocoso, provocando gargalhadas em toda a plateia: "Santo Agostinho, brincando, disse: "o que Deus estava fazendo antes de criar o Universo? Estava preparando o inferno para o que fazem perguntas desse tipo".

A teoria alternativa para um início do Cosmos no espaço temporal era de que o Universo havia existido eternamente, como defendia Aristóteles, como recordou Hawking, "algo eterno era mais perfeito e isso evitava questões incômodas sobre a Criação". Segundo essa hipótese, conhecida como a Teoria do Estado Estacionário, "o Universo havia existido sempre, com a criação contínua e matéria nova enquanto o Universo se expandia para manter a densidade constante".

Entretanto, observou Hawking, essa teoria nunca coincidiu muito bem com as observações  e que "o prego final em seu caixão" veio com a descoberta do fundo tênue de microondas, os sinais considerados como o eco do Big Bang. E para explicar em que consiste esse fenômeno, Hawking lançou mão uma vez mais dessa gozação cósmica que é típica desse ambiente: "Essas microondas são do mesmo tipo que as do nosso forno de microondas, mas muito menos potentes. Esquentaria nossa pizza até uma temperatura de no máximo -271,3 graus centígrados, não muito útil inclusive para descongelá-la e muito menos para cozinhá-la". Hawking mostrou inclusive seu talento como divulgador, dando esta informação às centenas de fãs fissurados que o assistiam em Tenerife: "Vocês mesmos podem observar essas microondas. Coloquem seu televisor analógico em um canal "vazio"(sem imagem). Uma porcentagem ainda que baixa da "neve" que aparece no monitor é causada por esse fundo de microondas".  

Hawking considera que "muitos cosmólogos modernos são como João Paulo II", no sentido de que "são felizes aplicando as leis da física ao Universo depois de seu início, mas têm uma atitude vaga, indefinida, sobre esse próprio início". Entretanto, o astrofísico está convencido de que a primeira evidência direta do Big Bang, obtida este ano mesmo no coração da Antártida, na Estação Polar Amundsen-Scott, demonstrou que o Universo nasceu com esse estalo cósmico.  
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O dever de divulgar

"Por que estamos aqui? De onde viemos? Por que há algo em vez de nada?" Antes de proferir sua apaixonante conferência à tarde, Hawing explicou a um grupo de jornalistas que essas são "as perguntas fundamentais sobre nós mesmos" que sempre o fascinaram, e o impeliram a dedicar-se à física teórica. A ciência, argumentou o astrofísico, "é a base de toda a tecnologia de que dependemos hoje no mundo moderno".  Mas, por isso mesmo, Hawking considera absolutamente imprescindível que "todo mundo tenha um conhecimento básico da ciência, para que possam tomar decisões bem fundamentadas por si mesmos, em vez de deixá-las unicamente nas mãos de especialistas".  Nesse sentido, o autor de livros de divulgação tão importantes como "História do Tempo" e "O Grande Projeto" assinalou que "o ensino da ciência nas salas de aula é fundamental para que o conhecimento científico chegue a toda a sociedade, mas creio que nós cientistas temos o dever de divulgar e explicar as ideias contemporâneas da ciência a toda a sociedade". 
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[Stephen Hawking (Oxford, 8 de janeiro de 1942) nasceu exatamente no aniversário de 300 anos da morte de Galileu. Físico teórico e cosmólogo britânico, é um dos mais consagrados cientistas da atualidade. Entrou em 1959 no University College, Oxford, formando-se em física três anos depois (1962). Obteve o doutorado na Trinity Hall, Cambridge, em 1966. Casou-se em julho de 1965 com Jane Wilde, de quem se separou em 1991. Casou-se depois com sua enfermeira Elaine Mason em 1995, com quem teve três filhos; tem um neto.

Por volta de 1966, foi diagnosticado como portador da doença degenerativa ELA - Esclerose Lateral Amiotrófica. Esta doença devastadora nem sequer lhe permite manejar mais o mouse que usava antes para selecionar palavras em seu computador e transmití-las através de um sintetizador de voz.] 

Os músculos do seu rosto se converteram nas últimas ferramentas corporais que lhe restam para comunicar-se, ativando com a bochecha direita um sensor acoplado a seus óculos.

Graças a essa tecnologia impressionante projetada especialmente para ele, Hawking consegue mover um cursor sobre uma tela e ativar assim a lendária voz robótica que fala por ele com sotaque americano. Como os médicos não lhe permitem mais voar, Hawking viajou para Tenerife em um cruzeiro de seis dias. Mesmo com todos os problemas que o afligem, Hawking recebeu com sorrisos sinceros a equipe de jornalistas que o entrevistou, a quem sua enfermeira Nikky O' Brien informou que ele estava desfrutando da viagem e aproveitando-a também como o gourmet que é.


Perguntada se na equipe de Hawking há algum especialista para resolver eventuais problemas que possam surgir no sofisticado sistema informático que ele utiliza para comunicar-se, sua enfermeira disse que não mas que há em Cambridge um especialista que pode resolver remotamente qualquer problema no computador de Hawking.

Com o  sofisticado sistema que aciona com o movimento de suas bochechas, Hawking consegue escrever uma média de três palavras por minuto. Por isso, para ser entrevistado, ele precisa receber as perguntas com bastante antecedência para evitar que a entrevista se estenda por muitas horas.

Na primeira pergunta da entrevista Hawking é indagado se continua acreditando que, como disse no livro "História do Tempo" que o fez mundialmente famoso, algum dia teremos uma "Teoria do Todo" para compreender as leis que governam o Universo, ou se há aspectos da realidade nos quais a mente humana nunca poderá penetrar.  Sua resposta reflete sua fé inquebrantável no poder da ciência para deslindar os mistérios do Cosmos: "Creio que sim conseguiremos entender a origem e a estrutura do Universo. Na realidade, agora mesmo já estamos próximos de conseguir esse objetivo. Na minha opinião, não há nenhum aspecto da realidade fora do alcance da mente humana". 

Ciência 'versus' religião 

Na segunda pergunta, Hawking é solicitado a esclarecer sua postura sobre Deus e a religião, que gerou um intenso debate entre seus leitores. Por um lado, no final do livro História do Tempo escreveu que se um dia lográssemos chegar a essa Teoria do Todo conheceríamos "a mente de Deus". Mas, posteriormente em seu polêmico O Grande Projeto escreveu que o Universo "pode criar-se do nada, por geração expontânea" e que a ideia de Deus "não é necessária" para explicar sua origem. O entrevistador lhe perguntou, ante essa aparente contradição, se mudou de opinião nesse terreno e se se considera agnóstico ou ateu. 

Sua resposta inequívoca deixa muito claro que, ainda que muitos tenham chegado a qualificar como um "milagre" o fato de que ele ainda esteja vivo meio século depois de ter sido diagnosticado com uma doença para a qual a expectativa de vida costuma ser de um par de anos, o astrofísico rechaça por completo todas as crenças religiosas: "No passado, antes que entendêssemos a ciência, era lógico crer que Deus criou o Universo. Mas, agora a ciência oferece uma explicação mais convincente. O que quis dizer quando mencionei que conheceríamos "a mente de Deus" é que compreenderíamos tudo o que Deus seria capaz de compreender se acaso existisse. Mas, não há nenhum Deus. Sou ateu. A religião acredita nos milagres, mas eles não são compatíveis com a ciência". 

Antes de poder responder cada pergunta, Hawking vai selecionando frases do arquivo onde deixou preparadas suas respostas e as coloca em um programa chamado 'Speaker', que converte textos escritos em frases emitidas por seu sintetizador. O software que produz a famosa voz de Hawking é dos anos 80, época da traqueostomia a que teve de se submeter e que o deixou definitivamente sem voz. Na realidade, existem hoje programas mais avançados que soam muito menos robóticos, mas Hawking já leva tantos anos utilizando essa voz que se identifica plenamente com ela e não tem nenhuma intenção de trocá-la.

Em uma ocasião perguntaram-lhe inclusive se não preferia que o equipassem com um sintetizador com sotaque britânico, que se pareceria muito mais com a voz de um nativo de Oxford como ele. Mas, com seu inconfundível senso de humor, Hawking respondeu que isso sem dúvida o ajudou a suportar durante tantos anos uma doença tão cruel: "com o sotaque americano tenho muito mais sucesso com as mulheres".

A conquista de outros planetas

Após o dialogo sobre religião passou-se do divino ao humano, e perguntou-se a Hawking se acredita que continua valendo a pena investir bilhões com o envio de missões com astronautas ao espaço ou se isso lhe parece um desperdício, como é a opinião de muitos de seus colegas cientistas. O astrofísico tem muito claro que a conquista do espaço deve continuar, não apenas porque "a exploração espacial impulsionou e continuará estimulando grandes avanços científicos e tecnológicos" como também porque pode representar um seguro de vida para a futura sobrevivência da nossa espécie: "poderia evitar o desaparecimento da Humanidade graças à colonização de outros planetas".  

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O tempo da entrevista termina, e a enfermeira O' Brien começa a fazer o sinal da guilhotina para os entrevistadores, mas o repórter do El Mundo percebe na tela de Hawking que ele tem ainda uma resposta a mais para uma pergunta que esse repórter lhe fizera  sobre como ele Hawking gostaria de ser lembrado pelas gerações futuras. "Espero que se lembrem de mim por meu trabalho no campo da cosmologia e dos buracos negros", responde o astrofísico antes que suas enfermeiras comecem a levá-lo.

Chama a atenção o fato dele não dizer absolutamente nada sobre o extraordinário exemplo que deu com sua vida, ao demonstrar até onde pode chegar a capacidade de superação do ser humano diante da adversidade mais cruel. E, enquanto Hawking desaparece pelos corredores do hotel, o repórter do El Mundo se lembra de uma de suas frases mais inesquecíveis: "A Humanidade é tão insignificante se a compararmos com o Universo, que o fato de ser um deficiente físico não tem muita importância cósmica".







2 comentários:

  1. Mas acima da ciência está Deus....

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  2. O que os homens chamam de "deus" (com minúsculas, por favor) é que é explicável pela ciência.

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