terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Museu d'Orsay (Paris): Esplendores e misérias -- imagens da prostituição (1850-1910)

[O fantástico Museu d' Orsay, em Paris, está apresentando uma exposição imperdível, chamada "Esplendores e misérias -- imagens da prostituição (1850-1910)". Iniciada em 22 de setembro deste ano, ela permanecerá em cartaz até 17 de janeiro de 2016. Traduzo a seguir os catálogos resumidos (em francês e inglês, já que há diferenças interessantes entre eles) da exposição e apresento várias imagens nela incluídas. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]

Esplendores e misérias -- imagens da prostituição (1850-1910)

Museu d'Orsay, Paris (22/9/2015 - 17/01/2016)



Capa do catálogo da exposição, com imagens tiradas do quadro "No Moulin Rouge" de Henri de Toulouse Lautrec (1895, óleo sobre tela):

O homem pequeno e barbudo ao fundo, entre uma mulher e outro homem, ambos sentados, é o próprio Toulouse - (Foto: Google)

No século XIX, a prostituição se reveste de múltiplas visagens. Percebida como um "mal necessário" destinado a satisfazer "a brutalidade das paixões do homem", ela não é então considerada como um delito. Sob o Consulado [regime político francês resultante do golpe de estado de 9 de novembro de 1799, que derruba o regime do Diretório (1795-1799)] se organizam o enquadramento e o controle da sexualidade venal: as moças da devassidão são colocadas sob a tutela da polícia de costumes e submetidas a consultas médicas obrigatórias (1802), enquanto a existência das casas de tolerância é legalizada (1804). Apresentado como uma medida de saúde pública, esse sistema regulamentar deve permitir a luta contra a propagação das doenças venéreas. 

A prostituição de rua se reveste de formas mais mais mutantes: as "prostitutas registradas" são inscritas nos registros do departamento de polícia e sujeitas a exames médicos regulares, ao passo que as "insubmissas", na maioria das vezes dependentes de gigolôs, atraem seus clientes de maneira clandestina e tentam escapar das prisões em massa que as conduzem a Saint-Lazare (São Lázaro), que era ao mesmo tempo casa de detenção e hospital destinado a cuidar de sifilíticos.  

Esse caráter mutante não deixou de obcecar romancistas e poetas, dramaturgos e compositores, pintores e escultores. A maior parte dos artistas do século XIX e da primeira metade do século XX abordou os esplendores e as misérias da prostituição, que se tornaram também um tema favorito para as formas de arte emergentes como a fotografia e depois o cinema. 

É em Paris que a prostituição se afirma como tema nas obras relacionadas a correntes tão diversas como o Academismo, o Naturalismo, o Impressionismo, o Fauvismo ou o Expressionismo. Mas, por mais singulares que sejam, todos esses olhares são exclusivamente masculinos. Igualmente, por trás da evocação dos prazeres e das misérias, o que transparece é o peso de ser mulher na época moderna.


Mulher na varanda de um café, à noite - Edgar Degas (1877) - Museu d'Orsay, Paris - (Foto: Google)


"Boule de suif" ('Bola de sebo') - óleo sobre tela (1884) - Paul-Emile Boutigny (1854-1929) - Museu de Belas Artes, Carcassone, França - (Foto: Museu d'Orsay)


"La pierreuse" ('A prostituta') - óleo sobre tela (1905) - Théophile Alexandre Steinlen (1859-1923) - Museu d'Orsay, Paris - (Foto: do Museu) 


"Portrait de Monsieur Delaporte au jardin de Paris" ('Retrato do Sr. Delaporte no jardim de Paris') - guache sobre cartão (1893) - Henri de Toulouse-Lautrec - Ny Carlsber Glyptotek, Copenhague - (Foto: Museu d'Orsay)

Ambiguidade

Na segunda metade do século XIX, mulheres honestas, prostitutas ocasionais, clandestinas ou oficialmente registradas se misturam até não se distinguirem no espaço público. Durante o dia, quando toda forma de atração ostensiva é proibida, a ambiguidade prevalece. As "atraidoras" se identificam discretamente por palavras, gestos (um levantar de anágua ...), poses estudadas ou expressões eloquentes. A prostituição de rua se organiza em grande parte no entorno dos cafés. As varandas são espaços estratégicos para as aliciadoras, visíveis ao mesmo do interior do estabelecimento e da rua. Os cafés-concertos e os cabarés são também núcleos de prostituição. O Moulin Rouge e o Folies-Bergère atraem um público composto em grande parte de turistas, vindos para apreciar tanto os espetáculos nos salões quanto a possibilidade de encontros libertinos. 


 "La demoiselle de magasin" ('A senhorita de loja') - óleo sobre tela (1883-1885), James Tissot (1836-1902) - Galeria de Arte, Toronto, Canadá - (Foto: Museu d'Orsay)

"Traversant la rue" ('Atravessando a rua') - óleo sobre painel (1873-1875), Giovanni Boldini (1842-1931) - Instituto de Arte Sterling e Francine Clark, Williamston, Massachussetts, EUA - (Foto: Museu d'Orsay)

"La prune" ('A chance', no sentido aqui de oportunidade/possibilidade de conseguir um parceiro -- [o significado de chance/oportunidade para 'prune' data do século XVI] - Édouard Manet, Galeria Nacional de Arte, Washington, EUA - (Foto: Museu d'Orsay) 

"Agostina Segatori au Tambourin" ('Agostina Segatori no Tambourin') - óleo sobre tela, 1887 - Vincent van Gogh (1853-1890) - Museu Van Gogh, Amsterdã - (Foto: Museu d'Orsay)

"Femme à la voilette" ('Mulher com pequeno véu') - Louis Anquetin - Museu Van Gogh, Amsterdã -(Foto: Wikigallery)


"Femme sur les Champs-Elysées la nuit" ('Mulher nos Campos Elíseos à noite') - Louis Anquetin - Museu Van Gogh, Amsterdã - (Foto: Museu d'Orsay)



O aliciamento é permitido para as prostitutas autorizadas, no cair da noite. Se, durante o dia, as prostitutas ostentavam aparências equívocas, suas atitudes se transformam à medida que se altera a paisagem urbana, iluminada inicialmente a gás e depois pela energia elétrica.

Frequentada pela alta burguesia e pela aristocracia, a Ópera de Paris é o teatro de uma prostituição de alta estirpe. Alguns assinantes tinham o privilégio de ter acesso ao palco de dança, para aí encontrar-se com as jovens dançarinas da Ópera. Frequentemente oriundas de um meio humilde, elas esperam encontrar ali um "protetor" rico e influente.


"Bal masqué à l'Opéra"('Baile de máscaras na Ópera') - óleo sobre tela, 1873 - Édouard Manet - Galeria Nacional de Arte, Washington, EUA - (Foto: Museu d'Orsay)

"Le bal de l'Opéra, Paris" ('O baile da Ópera em Paris') - óleo sobre tela, 1886 - Henri Gervex - Galeria Jean-François Heim, Basel, Suíça - (Foto: da Galeria)


"Le bal de l'Opéra" ('O baile da Ópera') - óleo sobre tela (1866) - Eugène Giraud - Museu Carnavalet, Paris - (Foto: Google)


Os bordéis

Ambiente fechado por natureza, o bordel é uma espécie de laboratório para os artistas à procura de temas modernos e de uma renovação no tratamento do nu feminino. Para os pintores e desenhistas satíricos, ele é um meio de revelar o submundo da sexualidade burguesa.

"Femme nue se peignant" ('Mulher nua se penteando') - pintura feita com pastel [espécie de lápis de cor] sobre monotipo, com tinta preta sobre papel (entre 1877-1880) - Edgar Degas - Coleção particular, Chicago, EUA - (Foto: Museu d'Orsay)

"Femme tirant son bas" ('Mulher puxando sua meia')  - óleo sobre papelão (1894) -Henri de Toulouse Lautrec - Museu d'Orsay, Paris - (Foto do Museu)


"Hommes attablés en compagnie de femmes légèrement vêtues" ('Homens sentados à mesa na companhia de mulheres ligeiramente vestidas') - guache, tinta sépia, pena - Constantin Guys (1802-1892) - Museu d'Orsay, Paris, conservado no Departamento de Artes Gráficas do Museu do Louvre - (Foto: Museu d'Orsay)


"Femmes à leur toilette" ('Mulheres em seu banho') - óleo sobre cartão (1897) - Félix Valloton (1865-1925) - Museu d'Orsay, Paris - (Foto: do Museu)


"Les demoiselles d'Avignon" ('As donzelas de Avignon') - óleo sobre tela (1907) - Pablo Picasso - Museu de Arte Moderna, Nova Iorque - (Foto: Google)


Como nenhum outro artista, Toulouse-Lautrec dá uma imagem e um toque de humanidade às prostitutas de seu tempo. Nas pinturas que deixou documentando esses encontros ele transmite a impressão de uma vida sem violência, mas com uma forte carga de melancolia. O surgimento da fotografia em 1839 inaugura uma nova era de representação do corpo e de uso da sexualidade. A partir do momento em que podem captar a vida real, os fotógrafos exploram a representação de rostos e genitálias. 


"Études de nu, femme assise, bras croisés" ('Estudos de nu, mulher sentada de braços cruzados') - entre 1900 e 1910 - Anônimo - Museu d'Orsay - (Foto: do Museu)

"Groupe de quatre femmes nues" ('Grupo de quatro mulheres nuas') - François-Rupert Carabin - Museu d'Orsay - (Foto: do Museu)


"The beautiful Otéro" ('A bela Otéro') - Reutlinger (1875-1917) - Departamento de Estampas e da Fotografia, Biblioteca Nacional da França, Paris - (Foto: Google)

[O vídeo abaixo, feito pelo próprio Museu d'Orsay,  apresenta mais detalhes e exemplos da presença da fotografia na exposição do Museu:]


 


A aplicação de técnicas estereoscópicas ao meio fotográfico acrescentou o toque de acabamento à imagem perturbadora de um corpo que se pode desvendar em seu volume, graças à privacidade garantida por um estereoscópio. Mas, essas cenas montadas estão bem distantes das práticas reais de um bordel. Não é de se surpreender: por causa da proibição de tornar público o que acontece nos bordéis e também em consequência dos problemas técnicos envolvidos no processo (material de difícil manuseio, necessidade de iluminação forte), as fotos são feitas no estúdio do fotógrafo.

A vida íntima das prostitutas gera todos os tipos de fantasias. Obrigadas a fazerem exames médicos, elas dedicam um cuidado incessante a seus corpos, acreditando-se que uma higiene impecável tem virtudes profiláticas. 

A aristocracia do vício

No topo da pirâmide da prostituição, as meio-mundanas são objeto de um controle particular, como atesta o Livro das cortesãs, registro mantido pela polícia de costumes. Essas jovens, como a Nana de Zola, frequentemente debutaram em um teatro. Sua ascensão social, às vezes fulgurante, é assegurada por seu(s) protetor(es) da alta sociedade. Jogando habilmente com esse capital erótico e social, as cortesãs exibem seu sucesso através da difusão de suas imagens, principalmente com a fotografia.

Nos retratos grandes executados por pintores oficiais e expostos do salão, reencontram-se os códigos tradicionais do gênero sutilmente deturpados. Admiradas no teatro ou na Ópera, observadas pela imprensa, essas meio-mundanas exercem uma real fascinação e ditam o tom em matéria de moda e gosto. 


"Madame Valtesse de la Bigne" - óleo sobre tela (1879) - Henri Gervex (1852-1929) - Museu d'Orsay, Paris - (Foto: Google)

"Rolla" - óleo sobre tela, 1878 - Museu de Belas Artes, Bordeaux, França - (Foto: Google)

O imaginário e a prostituição

Figura inevitável do século XIX, a prostituta favorece a expressão das fantasias masculinas: através dela se exprimem as perturbações angustiosas e amplas considerações sobre as mulheres em geral. Enquanto o período romântico destaca as heroínas que tombaram, transfiguradas pelo amor sincero que lhes oferece um caminho para a redenção, no final do século se vê multiplicarem as figuras femininas que são ídolos poderosos, cruéis e hieráticos, de uma sexualidade voraz.


"The Alley" ('A aléia') - 1895 - Edvar Munch - Museu Munch, Oslo - (Foto: Museu d'Orsay)

"St Mary Magdalene in the House of Simon the Pharisee" ('Sta. Maria Madalena na casa de Simão, o fariseu" - 1891 [todas as pessoas presentes no quadro estão identificadas] - Jean Béraud - Museu Grand-Palais, Paris - (Foto: Museu d'Orsay)

Prostituição e modernidade

Apresentado no Salão de 1865, o quadro Olympia provocou um enorme escândalo tanto por seu tema -- uma prostituta nua representada em um formato monumental -- e pela liberdade do pincel de Manet. Ali ele buscava provavelmente tornar-se o "pintor da vida moderna" invocado por Baudelaire. 

"Olympia" - óleo sobre tela (1863) - Édouard Manet - Museu d'Orsay, Paris - (Foto: Google)


No final do século XIX, a prostituição se firma como um tema moderno e digno de ser pintado. Para os artistas que se encontram então em Paris, Toulouse-Lautrec torna-se um exemplo. Picasso, Kupka ou Van Dongen radicalizam o tratamento das formas e das cores através de motivos inspirados pela vida noturna parisiense (jogos de espelhos e de iluminação artificial, maquiagem extravagante, meias coloridas ...).

"Le Café d' Harcourt à Paris" ('O café Harcourt em Paris') - 1897 - Henri Evenepoel (belga, 1872-1899 - Museu Städel, Frankfurt am Main, Alemanha - (Foto: Museu d'Orsay)

"Scène de fête au Moulin Rouge" ('Cena de festa no Moulin Rouge', conhecido também como Celebração no Moulin Rouge') - óleo sobre tela (cerca de 1889) - Giovanni Boldini (1842-1931) - Museu d'Orsay, Paris - (Foto: do Museu)

"Noël au bordel" ('Natal no bordel') - óleo sobre tela - Edvar Munch (1863-1944) - Museu Munch, Oslo - (Foto: Museu d'Orsay)

"La femme en chemise ou danseuse" ('A mulher de blusa, ou dançarina') - óleo sobre tela (1906) - André Dérain (1880-1954) - Museu Estatal para a Arte, Copenhague - (Foto: Museu d'Orsay)

"La môme à Gallien" ('A moça no Gallien')  - (1909/1910) - František Kupka (1871-1957) - Národní Galerie, Praga - (Foto: Museu d'Orsay)

"Le Sofá" ('O sofá') - óleo sobre cartão (1894/95) - Henri de Toulouse-Lautrec - The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, EUA - (Foto: Google)

"Rue des Moulins: la visite médicale" ('Rua dos Moinhos: a consulta médica') - óleo sobre cartão (1894) - Henri de Toulouse-Lautrec  - Galeria Nacional de Arte, Washington, EUA - (Foto: Google)

Em um século em que o pudor estava em seu apogeu, as prostitutas, com seus modelos, são as únicas mulheres dispostas a mostrar suas genitálias e a permitir que seus corpos sejam usados para experiências físicas e narrativas visuais. Com o advento das emulsões gelatinosas de brometo de prata, do desenvolvimento de máquinas fotográficas de uso simplificado e da possibilidade de alguém imprimir suas próprias fotos, a fotografia se apresenta a inúmeros artistas como um novo meio de permitir a exploração da sexualidade feminina.  

A mulher transforma-se então em um objeto que se pode estudar, desvendar, deformar -- em resumo, ser controlado. A democratização desse meio favorece o surgimento de fotografia amadora liberta das restrições do estúdio, tornando enfim possível a representação dos interiores e dos quartos dessas casas de tolerância.

[Proibida para menores de 18 anos, há uma ala da exposição em que são apresentados um filme mudo e fotos da época, com imagens de sexo explícito. 

A exposição do Museu d' Orsay, um sucesso de público, parece ter gerado controvérsia e divergências entre os críticos de arte franceses segundo o prestigioso jornal britânico The Independent. Diz o jornal que, embora reconhecendo a quantidade de obras de arte na exposição, esses críticos não estão satisfeitos com ela. O crítico de arte e romancista Phillippe Dagen disse: "Todo mundo sabe que os orçamentos culturais estão sendo constantemente reduzidos, mas é realmente necessário atrair visitantes mostrando mulheres nuas em poses lascivas e homens nus exibindo suas genitálias?". 

O diretor do Museu d'Orsay, Guy Cogeval, rejeita as críticas. Seu objetivo, diz ele, é "rejuvenescer" a clientela do museu apresentando exposições temáticas que trazem grandes obras ao vivo. "As pessoas não querem mais exposições que não contam uma história", disse ele ao jornal Le Parisien. De qualquer maneira, disse, a prostituição é um tema inteiramente legítimo. "Manet e o escritor Guy de Maupassant morreram de sífilis por causa do tempo que passaram nos bordéis, que eram centrais para a literatura e a arte da época". 

É decepcionante, digo eu, ver na França do século 21 essa reação provinciana ridícula dos críticos de arte franceses. Se parte da elite cultural francesa reage com intolerância e discriminação contra alguns dos pilares da civilização ocidental como a liberdade de expressão e o acesso à arte lato sensu, dá para imaginar como ela responde às manifestações semelhantes de outras culturas, como a árabe e, principalmente, a muçulmana. E, aí, começam a surgir explicações e/ou justificativas parciais ou totais para a radicalização da juventude muçulmana de nacionalidade francesa.]




quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Bastidores da guerra contra o terrorismo

[Traduzo a seguir o artigo de Guy Rolnik publicado no jornal israelense Haaretz que se refere aos bastidores do grupo terrorista Estado Islâmico e das campanhas contra o terrorismo. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade. Na tradução, mesclei o texto do Haaretz com o do The New York Times (NYT) que lhe serviu de base. Recomendo fortemente a leitura também dessa reportagem do NYT. Vê-se que a indústria de armamentos é a principal protagonista das carnificinas que atormentam o mundo, protegida por lobistas (civis e militares reformados), por autoridades e governos corruptos.] 


Uma bandeira do Estado Islâmico tremula sobre os restos de um helicóptero sírio - (Foto: AP)


Os Estados Unidos (EUA) acordaram em Maio de 2005 sob uma saraivada de críticas relativas a Gitmo [Gitmo é o jargão  militar americano para a Base Naval da Baía de Guantánamo, em Cuba, porque o código da pista aérea da base é GTMO]. A Baía de Guantánamo é um "gulag da nossa era", disse a secretária-geral da Anistia Internacional Irene Khan, acusando os EUA  e o Reino Unido de aprovarem a tortura enquanto tentam manter suas consciências limpas [gulag era um sistema de campos de trabalhos forçados para criminosospresos políticos e qualquer cidadão em geral que se opusesse ao regime da União Soviética (todavia, a grande maioria era de presos políticos; no campo Gulag de Kengir, em junho de 1954, existiam 650 presos comuns e 5200 presos políticos)]. Especialistas em direitos humanos na ONU clamavam para que Gitmo fosse fechada. 

Washington reagiu rapidamente, colocando um grupo de generais aposentados num dos aviões usados pelo vice-presidente Dick Cheney numa sexta-feira de manhã e enviando-os para visitar o local, que fica em Cuba [o The New York Times (NYT) disse que essa foi uma visita "cuidadosamente orquestrada"]

O público americano conhecia bem esses generais ("analistas militares") por conta de suas incontáveis presenças na TV, no rádio e na imprensa. Seu conhecimento e sua experiência dão-lhes a credibilidade exigida pela imprensa americana, que estava sedenta por algo robusto em termos de análise militar desde setembro de 2011 [aqui o autor faz uma bagunça na cronologia dos fatos e da história, pulando de 2005 para 2011 num piscar de olhos, repetindo o dito pelo NYT]

Mas, três anos depois, no verão de 2008, o correspondente do NYT David Barstow expôs o sistema. Descobriu-se que muitos desses generais fazem parte de um amplo sistema montado pelo Pentágono para influenciar o público americano.

Aqueles caras que voaram para Cuba e os incontáveis outros "analistas militares" que enfeitam os monitores das TVs não estão apenas liberando informações costuradas pelo Pentágono. Há dinheiro grande envolvido nisso. Cerca de 150 eles atuavam como lobistas, empreiteiros, gerentes, diretores ou consultores de empresas de armamentos ou para o próprio Pentágono [o NYT disse: "os homens no avião e várias dezenas de outros analistas militares representam mais de 150 empreiteiros militares, ... Essa companhias incluem não só pesos-pesados da área de defesa, mas também inúmeras empresas menores, todos participantes de um vasto conjunto de empreiteiros disputando centenas de bilhões de dólares em negócios militares gerados pela guerra do governo contra o terrorismo. É uma competição furiosa, na qual informações privilegiadas e acesso a autoridade seniores têm um alto valor"] . Esses comentaristas, foi revelado, levam uma boa vida por conta da indústria de guerra. 

No início, o Pentágono negou esses vínculos entre dinheiro grande, grande segurança e a mídia. Mas, a reportagem mostrou-se exata, correta. As redes de TV americanas ficaram constrangidas com as revelações sobre os contatos subterrâneos de seus comentaristas e alegaram não ter conhecimento disso ou preferiram não abordar o assunto.

Uma semana depois da reportagem do NYT, o Pentágono engavetou seu programa "secreto" -- aquele que alegava que não existia. Uma investigação pelo Departamento de Defesa americano mostrou que haviam ocorrido impropriedades. 

Tudo isso veio à mente quando a mídia ocidental colocou seus holofotes sobre os atos terroristas em Paris e divagou sobre como abater o Estado Islâmico (ISIS, na sigla inglesa) antes que seu terrorismo se espalhe também sobre os EUA e o resto da Europa. 

Algo faltava: um lembrete sobre o ISIS surgiu, quem o financia, e como o gráfico do terrorismo global ficou depois que George W. Bush declarou guerra ao terrorismo e conquistou o Iraque. 

Comentaristas de assuntos árabes falavam com profundo conhecimento sobre as seitas, os cultos e as facções no Iraque, na Arábia Saudita, na Síria e alhures; quem está envolvido, quem está fora; e sobre quem ainda provocará uma surpresa. Algumas vezes, eles soavam como comentaristas esportivos.  

Há pouca discussão sobre a contribuição de dinheiro ocidental -- especialmente dinheiro americano -- para o crescimento desse terrorismo. Aquela história interessante sobre o Pentágono, Gitmo e os generais pode ajudar a entender porque isso ocorre. 

A indústria da guerra, do terrorismo e da paz é uma das maiores do mundo.  Isso começa com os enormes gastos dos EUA com segurança, forças armadas, armamentos e todas suas agências de espionagem -- US$ 1 trilhão por ano. Depois, há centenas de milhares de pessoas, de lobistas e jornalistas a organizações de ajuda. 

Fazer guerra e batalhar pela  paz não apenas envolve orçamentos enormes que poderiam ser usados de maneira mais benéfica, mas confere também legitimidade a políticos e generais corruptos. A mídia tende a desviar os olhos da corrupção e dos interesses econômicos de políticos e comentaristas se a paz estiver em jogo. O ex-primeiro-ministro israelense Ehud Olmert falou de novo recentemente sobre como ele teria negociado [como "corretor"] a paz se não tivesse sido preso a caminho de aceitar subornos, fraude e quebra de confiança. E o ex-chefe do Mossad [serviço secreto israelense] aceitou uma comissão de US$ 11 milhões por ter negociado um acordo de gás com o Egito, mas a imprensa prefere discutir seus comentários sobre o ISIS. 

A imprensa de fato publica ocasionalmente histórias sobre corrupção entre políticos, generais e fabricantes de armas, mas o que molda a opinião pública são a quantidade, a proeminência e o contexto das histórias. Quanto mais o terrorismo e as guerras ditarem as primeiras páginas, mais relegada fica a corrupção para as últimas páginas. Cada um [leitor] se torna parte do "mocinho" coletivo contra o "bandido".

[A reportagem do NYT prossegue: 

"Escondido entretanto por trás dessa aparência de objetividade [dos analistas militares] há um aparato de informação do Pentágono, que tem utilizado esses analistas para gerar uma cobertura de notícias favorável ao desempenho do governo em tempos de guerra, como descobriu uma análise feita pelo jornal. Esse esforço, que começou com a montagem da guerra do Iraque e continua até hoje, tem buscado explorar lealdades ideológicas e militares e também uma poderosa dinâmica financeira: a maioria dos analistas possui laços com empreiteiros militares legalmente envolvidos com as próprias políticas de guerra que os analistas são solicitados a avaliar ao vivo. Essas relações comerciais dificilmente são sequer divulgadas aos espectadores e, às vezes, nem mesmo para as próprias redes de TV. 


(...) Alguns desses analistas estavam na missão a Cuba em 24 de junho de 2005, a primeira das seis viagens dessa natureza a Guantánamo, que foi planejada para mobilizar os analistas militares contra a crescente percepção de que Guantánamo era um símbolo internacional de tratamento desumano. Durante o voo para Cuba, na maior parte do dia em Guantánamo e no voo de volta para casa, oficiais do Pentágono instruíram os cerca de 10 analistas sobre as mensagens chaves que deveriam divulgar: quanto foi gasto para melhorar as instalações, os abusos sofridos pelos guardas e a extensa lista de direitos garantidos aos detentos.  


Os resultados vieram rapidamente. Os analistas foram para a TV e o rádio condenando e denunciando a Anistia Internacional, criticando os apelos para fechar as instalações e asseverando que todos os detentos eram tratados humanamente. (...)


Planejando a campanha


No início de 2002, estava em progresso um planejamento detalhado para uma possível invasão do Iraque mas, entretanto, um obstáculo surgia ameaçadoramente. As pesquisas mostravam que muitos americanos estavam desconfortáveis e constrangidos quanto a invadir um país que não apresentava conexão clara com os ataques de 11 de setembro. Autoridades do Pentágono e da Casa Branca consideraram que os analistas militares poderiam desempenhar um papel crucial para ajudar a vencer essa resistência.


(...) O Pentágono notou que esses analistas geralmente ficavam mais tempo no ar do que os repórteres das redes de TV, e eles não estavam simplesmente explicando o poderio dos helicópteros Apache. Eles estavam estruturando como os espectadores deveriam interpretar os eventos. Além disso, embora estivessem na mídia de notícias os analistas não pertenciam a essa mídia. Eles eram militares, muitos deles ideologicamente em sintonia com o grupo neo-conservador de assessores do governo, muitos deles atores importantes de uma indústria bélica que antevia grandes aumentos de orçamento no governo para pagar por uma guerra no Iraque. (...)


Montando a equipe


Desde o início, a Casa Branca mostrou um vivo interesse em saber que analistas haviam sido identificados pelo Pentágono, requisitando listas e sugerindo nomes. Ao longo do tempo, o Pentágono recrutou mais de 75 oficiais da reserva, embora alguns só participassem rápida e esporadicamente. O maior contingente estava vinculado ao canal Fox News, seguido pela NBC e pela CNN, mas analistas dos canais CBS e ABC foram também incluídos. 


(...) O grupo era fortemente representado por homens envolvidos no negócio de ajudar empresas a ganhar contratos. Vários deles ocupavam cargos seniores com empreiteiros que lhes davam diretamente responsabilidade para conseguir novos contratos com o Pentágono. James Marks, um general reformado do exército e analista da CNN de 2004 a 2007, diligenciou contratos militares e de inteligência como um executivo sênior da McNeil Technologies. Outros analistas detinham posições em diretorias de empresas militares que lhes davam a responsabilidade por negócios com o governo. O general McInerney, analista da Fox, por exemplo, tem assento nas diretorias de vários contratantes militares, incluindo a Nortel Government Solutions, um fornecedor de redes de comunicação. (...)


Vendendo a guerra


(...) No outono e no inverno imediatamente anteriores à invasão do Iraque, o Pentágono equipou seus analistas com pontos de abordagem que configuravam aquele país como uma ameaça premente. O tema básico tornou-se um mantra familiar: o Iraque possuía armas químicas e biológicas, estava desenvolvendo armas nucleares e poderia, um dia, desviar algumas delas para a al-Qaeda -- uma invasão do país seria uma "guerra de libertação" relativamente rápida e barata. 


(...) Em 12 de abril de 2003, com os combates principais quase concluídos, Donald Rumsfeld [secretário de Defesa] minutou um memorando para o Pentágono: "Vamos pensar sobre termos na equipe, depois que isso terminar, algumas das figuras que fizeram um trabalho tão bom como comentaristas".  No verão, entretanto, surgiram os primeiros sinais de insurgência no Iraque. Reportagens de repórteres baseados em Bagdá estavam cada vez mais carregadas com a imagem de uma desordem local. 


(...) Um memorando estratégico interno do Pentágono gerou uma proposta para levar analistas militares a uma viagem ao Iraque em setembro de 2003, planejada para ajudar o governo a superar o persistente choque gerado pelo pedido feito por Rumsfeld para um financiamento de US$ 87 bilhões para uma guerra de emergência. (...) Dessa viagem resultou um relatório forjado, pintando um Iraque efervescente de energia política e econômica, com suas forças de segurança florescendo. 


(...) Além da mensagem de progresso [na guerra], a viagem representava também uma oportunidade comercial: acesso direto aos mais graduados líderes civis e militares no Iraque e no Kuwait, incluindo muitos com influência sobre como os US$ 87 bilhões do governo seriam gastos. Era também uma oportunidade de coletar informação privilegiada sobre as mais prementes necessidades da missão americana: a carência aguda de Humvees super-armados [Humvee: abreviação para High Mobility Multipurpose Wheeled Vehicle (HMMWV) (Veículo de Rodas de Múltiplos Objetivos de Alta Mobilidade)]; os bilhões a serem gastos na construção de bases militares, a necessidade urgente de intérpretes; e os planos ambiciosos para treinar as forças de segurança iraquianas.  Informações e acessos dessa natureza tinham inegável valor para participantes da viagem como William V. Cohan e Carlton A. Sherwood.


(...) Cowan, um coronel reformado da Marinha e analista da Fox, era o CEO de uma nova empresa militar, o Grupo wvc3. O jornalista Sherwood era seu vice-presidente executivo. Na época, a companhia buscava contratos no valor de dezenas de milhões de dólares para o fornecimento de blindagens corporais e serviços de contrainteligência no Iraque. Além disso, o Grupo wvc3 tinha um acordo escrito para usar sua influência e suas conexões para ajudar líderes tribais da província Al Anbar a ganhar da coalizão contratos de reconstrução. "Aqueles sheiks queriam acesso à CPA [sigla inglesa]", mencionou Cowan em uma entrevista, referindo-se à Autoridade Provisional da Coalizão. (...)


Acesso e Influência


Dentro do Pentágono e da Casa Branca a viagem foi considerada uma obra-prima no gerenciamento de percepções, em particular porque forneceu combustível às reclamações de que jornalistas "dominantes" estavam ignorando as boas notícias do Iraque.


(...) Os analistas se encontraram com Rumsfeld pelo menos 18 vezes, como mostram os registros, mas isso era apenas o começo. Eles tiveram dezenas de sessões mais com os mais top seniores de seu núcleo principal de assessores e tiveram acesso a pessoas responsáveis por gerenciar os bilhões de dólares que estavam sendo gastos no Iraque. Outros grupos de "influenciadores-chave" tinham reuniões, mas longe de ser com a mesma frequência que as dos analistas. 

Um memo interno do Pentágono em 2005 ajudou a explicar porque isso ocorria. A correspondência, escrita por uma funcionária graduada do Pentágono que havia acompanhado os analistas ao Iraque, dizia que com base em suas observações durante a viagem os analistas "estão alcançando um impacto maior" na cobertura das redes televisivas sobre os assuntos militares. "Eles se tornaram agora as pessoas a quem recorrer não apenas quanto às histórias de última hora, mas influenciam as visões sobre os temas abordados", disse ela. 

A reportagem do NYT menciona que os analistas sentiam que estavam sendo manipulados pelo Pentágono e pelo governo para dar suporte à história das armas dos iraquianos,  já que não havia nenhuma evidência concreta da existência desse armamento. Mas, nenhum deles deixou transparecer qualquer apreensão ou receio a esse respeito para o público americano. 

(...) Algumas mensagens por e-mails entre o Pentágono e os analistas revelam uma troca de acesso privilegiado por cobertura favorável. Robert H. Scales Jr., um general reformado do exército e analista para a Fox e a Rádio Pública Nacional cuja firma de consultoria assessora várias empresas militares quanto a armas e táticas usadas no Iraque, queria que o Pentágono aprovasse reuniões de instrução de alto nível para ele dentro do Iraque em 2006. 

Pentágono observa cuidadosamente

Na realidade, as aparições dos analistas na mídia de notícias estavam sendo monitoradas de perto. O Pentágono pagou centenas de milhares de dólares a uma empresa privada, a Omnitec Solutions, para esquadrinhar bases de dados sobre qualquer traço de participação dos analistas fosse onde fosse.  A Omnitec avaliou suas aparições utilizando as mesmas ferramentas empregadas por analistas de marcas de produtos. Um relatório, avaliando o impacto de várias viagens ao Iraque em 2005, mostrou exemplo após exemplo de analistas dando eco a temas do Pentágono em todas as redes. "No geral, os comentários resultantes das três viagens ao Iraque foram extremamente positivos", concluiu o relatório.

Em entrevistas, vários analistas reagiram com consternação quando souberam que eram descritos como "seguidores" confiáveis  em documentos do Pentágono. E alguns asseguraram que suas sessões no Pentágono foram, como colocou David L. Grange, um general reformado do exército e comentarista da CNN,  foram precisamente de informações honestas e diretas", enquanto outros frisaram, corretamente, que nem sempre concordavam com o governo ou entre si. "Nenhum de nós manteve uma posição sem expô-la a uma crítica" disse o general Scales. Analogamente, vários negaram também que tivessem usado sua condição de acesso especial para auferir ganhos comerciais. "Sem qualquer relação", disse o general Shepperd, frisando que muitos no Pentágono mantinham a CNN "na mais baixa estima". 

Em 3 de agosto de 2005, 14 fuzileiros americanos morreram no Iraque. Nesse dia, Cowan, que disse estar ficando cada vez mais desconfortável com a "versão distorcida da realidade" que estava sendo imposta aos analistas nas reuniões de instruções, chamou o Pentágono para avisá-lo antecipadamente de que alguns de seus comentários na Fox "poderiam não ser de todo amigáveis". Os registros do Pentágono mostram que os auxiliares seniores de Rumsfeld rapidamente providenciaram uma reunião de instruções com Cowan, entretanto as reações foram rápidas quando Cowan disse à Fox que os EUA "não estavam em boa rota de aterrissagem naquele momento". Cowan disse que foi "precipitadamente demitido do grupo de analistas" por essa aparição na Fox. (...)

A revolta dos generais

A dimensão real da compreensão mútua entre governo, Pentágono e analistas militares nunca talvez foi mais clara do que em abril de 2006, quando vários ex-generais de Rumsfeld -- nenhum deles da rede de analistas militares -- vieram a público com críticas devastadoras sobre seu desempenho em tempos de guerra. Alguns pediram sua renúncia. 

De acordo com os registros existentes, em 14 de abril, com o que foi chamado de "Revolta dos Generais" nas manchetes, Rumsfeld instruiu seus assistentes a convocar os analistas militares para uma reunião com ele no início da semana seguinte. (...) No mesmo dia, funcionários do Pentágono ajudaram dois analistas da Fox, o general McInerney e o general Vallely, a escreverem um artigo para o The Wall Street Journal defendendo Rumsfeld.

(...) Apesar do sigilo padrão, os planos para a reunião de Rumsfeld com os analistas vazaram, gerando uma reportagem de primeira página do NYT no domingo 16 de abril. Em clima de controle de danos, funcionários do Pentágono batalharam freneticamente para apresentar aquela reunião como rotineira e determinaram que as comunicações com os analistas fossem mantidas de modo "muito formal", dizem os registros existentes. "Isso agora é muito, muito sensível", alertou um funcionário do Pentágono a seus subordinados.

Em 18 de abril, cerca de 17 analistas reuniram-se com Rumsfeld e o general Pace, que então presidia a Junta de Chefes de Staff [um grupo de líderes militares do Departamento de Defesa americano que assessora em temas militares todos os principais órgãos de segurança americanos]. Uma transcrição da sessão, nunca antes divulgada, mostra um determinação compartilhada para marginalizar as críticas sobre a guerra e restabelecer o apoio popular à guerra.

(...) "Falando francamente", disse um participante da reunião, "do ponto de vista militar é relativa a dolorosa perda de 2.400 bravos americanos que tivemos, 3.000 em 1 hora e 15 minutos". Um analista disse em um outro momento: "Essa é uma guerra mais ampla. E tenhamos ou não democracia no Iraque, isso não tem a mínima importância se terminarmos com o resultado que queremos, que é um regime lá que não seja uma ameaça para nós". Tomando notas, Rumsfeld disse "exato". Mas, ganhando ou não, alertaram os analistas franca e abertamente, o governo estava em perigo político grave enquanto a maioria dos americanos visse o Iraque como uma causa perdida. "A América detesta um perdedor", disse um analista.

(...) Dias depois da reunião, Rumsfeld escreveu um memorando concentrando em pontos-chave a orientação coletiva do governo: "Focar na Guerra Global contra o Terror, não apenas no Iraque. A guerra mais ampla, a guerra longa". -- "Vincular o Iraque ao Irã. O Irã é a preocupação. Se falharmos no Iraque ou no Afeganistão, isso ajudará o Irã". 

Mas, se Rumsfeld considerou a reunião instrutiva, pelo menos um participante, o general Nash, analista da rede ABC, ficou indignado. "Saí daquela reunião com completo desrespeito por meus companheiros comentaristas, com talvez uma ou duas exceções", disse ele.

A visão das redes

(...) Por ora, entretanto, por causa da forte cobertura das eleições e um cansaço geral, os analistas militares estão longe de conseguir muito tempo na TV e as redes fizeram cortes em suas listas de analistas. Uma conference call recente do general Petraeus com analistas militares, numa folga de seu depoimento no Congresso sobre a guerra do Iraque, gerou por exemplo pouca cobertura imediata. 

Ainda assim, o Pentágono continua a fazer quase semanalmente reuniões de instrução com analistas militares selecionados. Muitos analistas dizem que as redes televisivas estavam apenas de leve cientes dessa interação. As redes, disseram eles, têm pouca percepção de quão frequentemente eles se reúnem com funcionários seniores do Pentágono ou do que é discutido. "Não acho que a NBC estivesse sequer ciente de que estávamos participando", disse Rick Francona, um analista militar de longa data da rede.

Algumas redes publicam biografias em seus sites na internet, descrevendo a experiência militar de seus analistas e, em alguns casos, fornecem pelo menos uma informação limitada sobre seus vínculos empresariais. Mas muitos analistas disseram também que as redes faziam poucas perguntas sobre seus interesses comerciais externos, a natureza de seu trabalho ou sobre a possibilidade desse trabalho criar conflitos de interesse. "Nada disso jamais aconteceu", disse Allard, um analista da NBC até 2006. "O pior conflito de interesse é a falta de interesse", disse ele.

Allard e outros analistas disseram que os dirigentes de suas redes também não levantaram objeções quando o Departamento de Defesa começou a pagar suas passagens em voos comerciais para viagens ao Iraque patrocinadas pelo Pentágono -- uma clara violação ética para a maioria das redes de notícias.  A CNB News declinou de comentar sobre o que sabia sobre os vínculos comerciais de seus analistas ou sobre que medidas tomou para se resguardar contra conflitos de interesse potenciais.

A NBC também declinou de discutir seus procedimentos para contratar e monitorar analistas militares. (...)

Jeffrey W. Schneider, um porta-voz da rede ABC, disse que embora os consultores militares da rede não fossem submetidos às mesmas regras éticas que seus jornalistas de tempo integral, a rede esperava que eles a informassem sobre qualquer complicação comercial externa. "Deixamos claro para eles que esperamos que nos mantenham bem informados", disse ele. 

(...) A CNN exige que seus analistas informem por escrito todas as suas fontes de renda externas. Mas, como outras redes, não provê seus analistas militares com o mesmo tipo de diretrizes éticas escritas e específicas que fornece a seus empregados de tempo integral para evitar conflitos de interesse reais ou aparentes. 

Entretanto, onde existe controle ele tem se mostrado às vezes frouxo. A CNN, por exemplo, disse que durante três anos não teve ciência de que seu principal analista militar, o general Marks, estava profundamente envolvido no negócio de conseguir contratos do governo, incluindo contratos relacionados com o Iraque. Ele foi contratado pela CNN em 2004, mais ou menos na época em que assumiu um cargo de direção na McNeil Technologies, onde seu trabalho era buscar contratos militares e de inteligência. Como exigido pela CNN, ele informou que recebia proventos da McNeil Technologies, mas essa informação não exigia dele mencionar o que estava envolvido em seu trabalho -- e a CNN falhou em não fazer uma avaliação ética adicional.]

PS - Como dito acima, a indústria da guerra e da paz é das mais poderosas do planeta e não por simples coincidência seus maiores exportadores e importadores estão diretamente envolvidos nos principais conflitos militares que matam milhares de pessoas e geram milhões de refugiados mundo afora, como mostra o gráfico abaixo:



Nada menos que 1,29 bilhão de euros (US$ 1,4 bilhão) será fornecido em bombas inteligentes pelos EUA à Arábia Saudita, que está em guerra contra o Iêmen. Desde a guerra Irã - Iraque em meados da década de 1980, a força aérea da Arábia Saudita é maciçamente equipada com aviões americanos.

A força aérea dos Emirados Árabes, que atua no Iêmen, na Síria e na Líbia, por exemplo, é também equipada com caças americanos. E por aí vai.







domingo, 6 de dezembro de 2015

Ecos dos atentados de Paris (III - final))

(Ver postagem anterior.)

Como mencionado na primeira das postagens sobre os ecos dos atentados em Paris,  o segundo grande dilema e enigma enfrentado pela França é identificar como e porquê foi possível que ocorressem as tragédias do 13 de novembro, apenas 10 meses após os traumáticos atentados contra o jornal satírico Charlie Hebdo e  um supermercado de produtos para judeus.

O governo francês rejeita veementemente qualquer hipótese de falha de seus serviços de inteligência, mas é impossível negar a evidência disso diante de uma abundância de detalhes que envolvem, por exemplo, a livre circulação de cidadãos já fichados como perigosos para a segurança do Estado e sua participação nos atentados de 13/11, e a estranha e absurda incapacidade da inteligência francesa de detectar qualquer indício de que algo estava por acontecer.  A polícia concluiu que havia pelo menos três franceses entre os sete terroristas camicases que perpetraram aqueles atentados, o que aumenta o mistério sobre a falha na segurança francesa. 

A polícia concluiu também que a Bélgica havia servido de base de retaguarda para parte dos comandos que aterrorizaram Paris. A atitude francesa de atribuir à inteligência belga a responsabilidade pela falha na segurança em relação aos atentados em Paris provocou a reação imediata de Bruxelas, que defendeu também com veemência a eficiência de seus serviços. Nesse jogo de empurra, as investigações se concentram em uma possível rede franco-belga de terroristas. 

Os atentados da sexta-feira desencadearam também reflexões amargas dos próprios franceses e da imprensa estrangeira sobre a França, seus líderes, sua atuação internacional contra o terrorismo, seu relacionamento com as minorias étnicas e sua visão sobre o Estado Islâmico e outros grupos terroristas. O jornal francês Le Monde classificou o governo de François Hollande como o mais belicista da V República. Houve acusações de que, na guerra contra o terrorismo, a França tem atuado muito a reboque dos EUA.

O atentado terrorista em um hotel internacional de Bamako, capital do Mali, em 20 de novembro (uma semana depois dos atentados em Paris), com 27 mortos, foi visto como outro fracasso da ação da França contra os terroristas. Ex-colônia francesa do final do século XIX até 1960, o Mali está sob intervenção militar da França desde janeiro de 2013 com apoio logístico dos EUA e de outros países europeus, a pedido da junta militar que governava o país desde o golpe de 2012.  

A mídia francesa foi impiedosa com a França, mesmo no trauma imediatamente após os atentados em Paris. Usando a palavra Daech em vez de Estado Islâmico (Daech é a sigla árabe para isso), o jornalista Éric Zemmour publicou um artigo pesado de página inteira na Le Figaro Magazine de 20/21 de novembro com o título "A França, eterno 'pequeno Satã'". Em seu texto ele diz que a França não é o único alvo do Estado Islâmico, mas é um alvo privilegiado por conta de seus caças Rafale que bombardeiam o Iraque e a Síria e de suas tropas de elite que frearam a expansão dos islamitas no Mali e na África Central. Segundo ele, os bombardeios franceses não ameaçam as atividades do Daech nos territórios que este conquistou. A França para eles não é um adversário, é um inimigo. O Daech não teme as armas francesas, mas quer vingar-se da história francesa.

Segundo Zemmour -- numa opinião compartilhada por outros jornalistas e intelectuais franceses -- a França, nessa perspectiva histórica, é vista não apenas como o país que que liderou as Cruzadas, mas também como aquele que fez em 1789 uma Revolução violentamente antirreligiosa, sem esquecer esta França moderna que, do Egito à Argélia, colonizou terras muçulmanas. "Cruzados, blasfemos e idólatras", eis os franceses para o Daech. A França (sempre segundo Zemmour) não é ainda uma "terra do Islã" mas está em vias de tornar-se uma -- ela é pois, de acordo com a terminologia do Corão, uma"terra de guerra". Essa é na realidade a única diferença entre salafistas e a Irmandade Muçulmana. Aqueles querem islamizar a França a ferro e fogo, segundo o modelo de Maomé. Os Irmãos Muçulmanos se apoiam na demografia para chegar ao mesmo resultado, pacífica e democraticamente. Boualem Sansal -- um conhecido romancista e ensaísta argelino, de expressão francesa -- diz que "um islamita é um muçulmano impaciente". Um salafista do Daech é um Irmão Muçulmano belicoso.

Diante da salafização maciça da juventude muçulmana francesa, arremata Zemmour, que permite aos soldados do Estado Islâmico viver como peixe na água no seio dos subúrbios franceses ou belgas, os políticos franceses alarmados e nervosos consideram sagaz fazer dos Irmãos Muçulmanos adeptos de um inencontrável "Islã da França", de um quimérico Islã "republicano". Nisso está todo o sentido de colocar em evidência um Tareq Oubrou, imã de Bordeaux e grande amigo de Alain Juppé [político francês que foi primeiro-ministro da França de 1995 a 1997, e prefeito de Bordeaux de 1995 a 2004]. Estratégia que seria ridícula e risível, se não fosse trágica e suicida. 

Na mesma Le Figaro Magazine que publicou o artigo de Éric Zemmour resumido acima há uma reportagem muito interessante de Jean-Marc Conin com o título "Daech, um inimigo misterioso", e com o subtítulo "A França está em guerra. François Hollande a declarou diante do Congresso. Manuel Vals [primeiro ministro] a reiterou, assim como Bernard Cazeneuve [ministro do Interior] e Jean-Yves Le Drian [ministro da Defesa]. Mas, em guerra contra quem?".

Na TV e na mídia impressa francesas surgiram inúmeros debates sobre o Daech, sobre sua nova estratégia internacional e sobre como enfrentá-lo, explicitando divergências. Há os que consideram que dar-lhe prioridade e montar todo um aparato de guerra para combatê-lo só faz legitimá-lo, e dá corpo ao seu objetivo de provocar o que chama de uma "guerra de civilizações". Em comum nesses debates, a perplexidade diante de um inimigo sem rosto que atingiu o coração da França nos atentados de Paris.

Os efeitos colaterais dos atentados de Paris sobre a União Europeia (UE) ainda não estão absolutamente definidos em variedade e conteúdo, mas os primeiros resultados são profundos e preocupantes e atingem o cerne da própria concepção da UE. A primeira vítima imediata foi o Espaço Schengen, um dos pilares da UE, que garante a livre circulação de cidadãos entre os países da União. O livre trânsito de terroristas entre a Bélgica e a França, e um passaporte sírio encontrado perto do corpo de um dos terroristas mortos no Estádio da França, em Paris, acenderam a luz vermelha e ligaram as sirenes contra Schengen e contra a livre entrada de refugiados na Europa -- o passaporte sírio foi rastreado até a ilha de Léros, na Grécia, um dos principais pontos de entrada de refugiados na Europa. Há gente de peso que considera que a União Europeia perde o sentido sem o Espaço Schengen. 

Outro efeito pernicioso dos atentados, estritamente do ponto de vista das normas da UE, foi o efeito dominó sobre os orçamentos de defesa no âmbito. A França anunciou 600 milhões de euros a mais em 2016 para reforçar sua segurança. O Reino Unido anunciou um reforço de 17 bilhões de euros para os próximos dez anos no seu orçamento de defesa. A princípio reticente, a Alemanha aprovou o envio de tropas à Síria em apoio aos franceses. 

Os atentados em Paris fizeram também brotar os problemas quotidianos enfrentados com muçulmanos na vida francesa. A RATP (Administração Autônoma dos Transportes Parisienses) informou sobre a série de problemas gerados com o aumento das reivindicações de seus empregados muçulmanos salafistas, que vão desde a recusa a apertar a mão de colegas mulheres a não aceitar viajar em ônibus dirigido por mulheres, exigir locais para suas orações, reclamar do cardápio da festa de Natal (com foie gras, vinho, etc) e exigir um cardápio de acordo com sua dieta religiosa. Os mesmos problemas, com o mesmo tipo de empregados, são relatados pela Air France, pelas Ferrovias Francesas e pelos Correios. Comunidades muçulmanas reclamam também da presença de carne de porco no cardápio das creches e escolas públicas, e querem sua mudança, mas isso tem sido rejeitado pelos órgãos que zelam pela laicidade do Estado francês. 

Por infeliz coincidência, a edição da semana de 7 a 13 de novembro (publicada portanto antes dos atentados de Paris) da revista The Economist teve como reportagem de capa "A europeia indispensável", com a foto de Angela Merkel. Focado na posição da chanceler alemã contra o estabelecimento de um limite máximo no número de refugiados que a Alemanha pode absorver, a revista diz que apesar de enfrentar seu pior desafio político até agora Angela Merkel permanece indispensável para a Europa e confronta sua liderança com a "pequenez" -- segundo a revista -- de François Hollande e David Cameron, entre outros. Na mesma edição, a revista publica o artigo "A França dispensável", em que diz que o país tem cada vez menos influência na União Europeia e tem medo de usar a que ainda lhe resta.

Os efeitos dos atentados de Paris de 13 de novembro sobre a França, a Europa e o combate ao terrorismo continuam ainda confusos, difusos, complexos e repletos de divergências. Como pano de fundo, uma preocupação quase unânime: novos e terríveis atentados deverão ocorrer.


quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Ecos dos atentados de Paris (II)

(Ver postagem anterior).

A radicalização de cidadãos franceses e sua adesão ao terrorismo são temas extremamente angustiantes para a França, que se encontra aturdida e visivelmente perdida quanto à abordagem a ser adotada para solucionar ou, pelo menos, minimizar esses problemas. Os números assustam: segundo o Le Figaro, existem hoje 571 franceses na Síria e no Iraque, e 141 já morreram na fronteira sírio-iraquiana; 16% dos radicalizados são menores de idade, 85 deles foram para o Iraque e a Síria; 25% dos radicalizados são mulheres, 199 delas estão atualmente na fronteira sírio-iraquiana; 3.800 descrições"pertinentes" foram cadastradas através do telefone anti-djihad.

No afã de tentar solucionar o problema da radicalização, o governo francês criou em outubro de 2014 com pompas e fanfarras um "núcleo de desradicalização" como demonstração de sua vontade de "pegar o touro do terrorismo pelos chifres". No verão deste ano, apenas alguns meses após os atentados de janeiro contra o Charlie Hebdo e o supermercado Cacher, esse núcleo simplesmente fechou suas portas.

Colocada  sob o controle do departamento de polícia de Paris, encarregado de aplicar na região parisiense o plano anti-djihad elaborado pelo Ministério do Interior, essa estrutura de "desdoutrinazação" era a primeira do gênero da França e chegou  a servir de modelo para outros países como a Bélgica, por exemplo, que montou uma unidade idêntica a ela. Mantida em um endereço secreto (?!...) exatamente em Saint-Denis, essa unidade francesa era composta de educadores, psiquiatras, mediadores, imãs e de vitimólogos, envolvidos em um trabalho de prevenção, em cooperação com as forças de segurança e os serviços de inteligência. 

A experiência fracassou porque o Estado jamais repassou à associação responsável pelo núcleo a verba indispensável para seu funcionamento, o que mostra a absoluta falta de diretriz do governo francês sobre o tema do combate à radicalização, apesar dos primeiros resultados alcançados pelo núcleo nos seus oito meses de vida. Nesse período, cerca de trinta famílias foram acompanhadas pelo núcleo, foram impedidos embarques para a Síria e dados de inteligência preciosos foram obtidos graças à proximidade com as famílias. Na opinião de Sonia Imloul, presidente da associação MPF (sigla francesa para Casa da Prevenção e da Família) responsável pelo núcleo, "a verdade é que o Estado jamais teve intenção de criar um verdadeiro dispositivo de luta contra a radicalização". 

Após os atentados de 13 de novembro, o primeiro-ministro Manuel Vals informou à Assembleia Nacional francesa a criação de uma nova estrutura para "jovens radicalizados"...

Os atentados da sexta-feira 13 exacerbaram os ânimos das autoridades e da população contra todos os possíveis focos muçulmanos de radicalização no país, colocando sob vigilância e ameaçando de expulsão do país os imãs considerados radicais. O Ministério do Interior francês estima que 3,5% das mesquitas e lugares de culto muçulmanos da França estão sob influência salafista, o movimento ortodoxo ultra-conservador do islamismo sunita, o que corresponde a 150 dos 2.500 desses locais existentes no país. Desde 2012, foram executadas 45 ordens de expulsão contra indivíduos, imãs ou outros, pertencentes a movimentos radicais do islamismo. Hoje porém, muitos especialistas consideram que a política de expulsão de imãs radicais preconizada pelo primeiro-ministro após os atentados recentes, por necessária que seja, não será suficiente porque o problema real dos vetores de difusão do radicalismo islamita se deslocou completamente. O doutrinamento dos jovens se faz hoje sobretudo pela internet.

No foco do anti-radicalismo foram colocados também os livros que pregam a djihad e a facilidade para adquirí-los em livrarias e shoppings. Após uma reportagem do Le Figaro em julho de 2014 sobre a presença nas prateleiras do Carrefour e da Fnac de livros preconizando a morte dos "hereges", e em seguida a uma petição com 17.000 assinaturas para a suspensão de sua venda, o Ministério do Interior explicou não possuir "os meios jurídicos para interditar tais livros". - "Há o apelo à djihad, mas não ao terrorismo", justificou-se ele à época.  MalikaSorel-Sutter, autora do livro "Decomposição francesa" protestou: "Mas isso acontece o ano inteiro! Nossos mortos não bastam para que tomem uma atitude? Eles sabem que hoje djihad = apelo ao assassinato dos "infiéis". Eles não podem mais portanto dar respaldo a isso. E hoje a legislação permite impedir que sejam divulgados apelos a assassinatos". Uma ação judicial a esse respeito foi apresentada em junho de 2015 pela organização Advogados Sem Fronteiras. 

Na última capa do livro La Voie du musulman (A Via do muçulmano), editado em 2014, lê-se que o autor, o sheik argelino Abou Bakr al-Jazairi "deixa transparecer aqui soluções conformes às exigências do mundo moderno". Ele preconiza: "É preciso que todos os muçulmanos, formando um único Estado ou vários Estados separados, se equipem com todos os tipos de armas. Eles devem também se aperfeiçoar e se aprimorar na arte militar defensiva e na ofensiva, para defender e atacar no momento oportuno para que o verbo de Deus triunfe e para propagar a justiça e a paz sobre a terra". 

Em seu livro Le Licite et l'Illicite (O Lícito e o Ilícito) (Edições al-Qalam, 2001), o sheik Youssef al-Qaradawi prescreve a eliminação dos homossexuais. No livro Les jardins des vertueux (Os jardins dos virtuosos), do imã sunita An-Nawawi, um capítulo é consagrado ao "mérito da guerra santa". Ali lê-se, por exemplo, que os crentes "combatem pela causa de Deus matando e se fazendo matar". 

O primeiro dos três livros citados não está mais em suas prateleiras, assegura a Fnac. Mas está disponível em seu site na internet, assim como o "O Lícito e o Ilícito". Quanto ao terceiro livro, ele foi localizado pelo Le Figaro em estoque com vários exemplares. Na área de avaliação no site -- a "nota do vendedor"-- lhe é atribuída a avaliação 4,69 sobre 5.

Além disso, uma obra nova apareceu nas estantes da Fnac: o "Livre de l'exhortation du bien et de l'interdiction du mal" (Livro de exortação do bem e interdição do mal), do teólogo do século XI al-Ghazali (publicado em outubro de 2014). Em um de seus trechos se lê: "Pode-se também conduzir à mobilização de soldados pela causa de Deus e para defender suas proibições. E como é permitido que os soldados se juntem para combater e submeter os incrédulos, consideramos igualmente permitido submeter e reprimir os corrompidos e os libertinos. Não há mal algum em matar um incrédulo, e o muçulmano que tomba em combate adquire o status de mártir". 

No Carrefour, afirma-se "não vender mais esse tipo de livro". Mas, em 2014 tratava-se de uma operação pontual para o ramadã. Não haverá mais a "operação ramadã"no ano seguinte? O Carrefour recusou-se a responder.

A Fnac explica que "não se pode assumir o papel dos poderes públicos", e que "não se pode censurar uma obra, qualquer que ela seja. Não há empecilho para que a Fnac faça nenhuma promoção ou qualquer exposição desse gênero de livro", insiste o serviço de comunicação da empresa. "Vê-se bem que certas obras merecem ser censuradas! Mas, seríamos atacados pelas editoras e, além de lhes dar publicidade, perderíamos a ação ...". 

Diretor do Observatório da Islamização, Joachim Veliocas, que solicitou a intervenção dos Advogados Sem Fronteiras, se diz "escandalizado com essa banalização do islamismo radical. Ao vender na seção "Islã" esses livros de extremistas salafistas ao lado de obras de vulgarização"-- enfatiza ele -- "a Fnac contribui para o amálgama entre os muçulmanos e o islã radical". 

Em sua queixa contra a Fnac por cumplicidade na provocação à violência, ao ódio racial  e aos atos de terrorismo, Gilles-William Goldnadel, presidente dos Advogados Sem Fronteiras, escreve que "essa disponibilização de "armas de guerra" ao grande público é ainda mais inaceitável porque seu alcance é colossal", em decorrência da grande presença da Fnac na França. 

Em uma correspondência de 12 de agosto de 2015 a Goldnadel, o ministro do Interior Bernard Cazeneuve afirmou que "nas obras de inspiração religiosa, se é possível exprimir-se com referência a passagens violentas existentes em um livro sagrado, os propósitos devem ser avaliados e devem respeitar as prescrições propostas pela lei francesa".  Mas a seção de imprensa do Ministério Público "muito reativa quando se trata de islamofobia", segundo Goldnadel, "se mostrou de uma inércia total no recebimento de nossa queixa".

O exposto acima nos mostra a variedade e a intensidade dos problemas acarretados pelo complexo relacionamento do governo e da sociedade franceses com o islamismo, radical ou não. Os muçulmanos radicais têm sabido usar à perfeição as principais armas à sua disposição para dominar o mundo: pela demografia (sua taxa de natalidade é altíssima), pelo doutrinamento e pelas armas. Quanto aos muçulmanos não radicais, o fator demográfico vem cumprindo muito bem seu papel de povoar o mundo com seus descendentes.

(cont.)